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O Matuto/XXI

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O padre proseguiu assim a sua confidencia:

— Abro o livro da minha vida sacerdotal para lêr a triste e vergonhosa historia que te quero confiar. Custa-me por extremo volver a folha negra, em que está escripta, além desta historia, a minha propria condemnação. Mas fio que serás indulgente para os culpados. Na juventude, Marcellina, são vehementes e cegas as paixões, a carne obra como tyranna; a phantasia, mais tarde estrella de branda luz, não passa então de chamma afogueada—illumina, mas queima. Quando chega a idade madura, e o entendimento, como magistrado intimo, examinando, apreciando e julgando os actos da mocidade, descobre os montões de cinzas a que o fogo da paixão juvenil reduzio sentimentos e principios respeitáveis, e por baixo dessas cinzas fundos abysmos e tenebrosas sepulturas; quando a razão, já educada pelos annos e fortalecida com o conhecimento exato das coisas, transmitte á consciencia suas severissimas leis, e exige o preenchimento dellas, a fragil peessoalidade humana não tem para sua defeza outra voz além desta: «Perdão, ó homens! Perdão, ó Deus!» Presta attenção, Marcellina. É chegado o momento do terrível sacrificio. Vou emfim abrir a teus olhos o lugar mais recondito do meu coração. Não te aterres com o espetaculo, nem digas a ninguem que debaixo das cinzas de minha velhice se aninha uma serpente que me prende, como annel de fogo, ao inferno.

— Seu padre! exclamou a cabocla profundamente abalada. Juro-lhe que lhe guardarei segredo até á morte.

— Houve aqui ha annos uma terrivel epidemia de bexigas desde o Recife até á Parahyba. Morreu gente sem conta por esses povoados e estradas a fóra. Tu has de estar lembrada.

— Ainda me lembro dessa peste. Si eu estive ás portas da morte...

— Pois bem. Por esse tempo achava-me eu no convento de Iguarassú, donde, por ordem do bispo, parti para Tres-ladeiras, a fim de prestar os soccorros espirituaes á pobreza, que estava ahi morrendo no maior desamparo e impenitencia. Uma noite de muita chuva, tenho ainda na memoria bem frescos todos os passos, especialmente os primeiros do meu erro, quando eu voltava de um sitio aonde tinha ido ouvir de confissão um moribundo, senti-me de repente assaltado de tremedeiras tão fortes que não sei como não vim do cavallo em terra; estava pesteado. Felizmente alguns passos adiante havia uma casa na beira do caminho, e dentro della vi lume aceso. Pedi agazalho, o qual não se fez esperar. As moradoras, que me conheciam de ver-me passar todo dia pela porta, acolheram-me com as maiores attenções. Era uma mãi com sua filha, ambas viuvas. Não só durante o periodo agudo da enfermidade, mas durante a convalescença, que foi longa, nunca resfriou o zelo dellas. A filha era nova e mui gentil. Emfim, Marcellina, quando voltei um mez depois á minha casa, levava comigo dois inimigos crueis, uma paixão e um remorso. O primeiro destes inimigos pude vencer, pretextando cansaço e fraqueza, e voltando ao convento; o segundo porém nunca mais sahiu de minha consciencia; ha de baixar comigo á sepultura. Só Deus sabe, Marcellina, si esse crime não chamou sabre minh'alma a condemnação eterna.

— Deus tem sempre o perdão para os bons.

— E eu fui bom? Fui pusillanime e réprobo. Tempos depois dentro de minha cella, recebi uma carta. Aquella, que me fizera cahir e que eu arrastára em minha queda, tinha sido mãi e pedia-me que olhasse por ella e pelo filho. A velha tinha fallecido, deixando a filha só no mundo, com o testemunho vivo do meu crime. Nos primeiros tempos olhei de longe pela infeliz e pelo fructo do nosso amor fatal; mas sabendo depois que ella se havia desmandado em sua vida, faltou-me generosidade para continuar-lhe os meus auxilios. Todavia eu não perdia de vista esses entes com os quaes o destino me prendera por inquebrantaveis cadeias. Quando ella se mudava de uma terra para outra, como muitas vezes aconteceu, eu achava sempre em o novo lugar pessoa de minha confiança a quem recommendar a criança que, rendendo a homenagem devida á decencia, eu dizia ser ligada comigo por parentesco remoto. Essa pessoa era o vigario ou outro qualquer sacerdote. Um dia recebo uma carta em que o vigario da freguezia onde a mulher e o menino estavam ultimamente residindo, me informava da morte da mãi e do abandono do filho. A carta fôra retardada, de sorte que quando me chegou ás mãos, mais de um anno tinha decorrido depois de sua data. Sendo-me então mais facil tomar o menino á minha conta, não só pelo fallecimento daquella que a elle tinha melhor direito do que eu, mas pela minha secularização, corro ao ponto em que o devia encontrar, impaciente por ver e conhecer aquelle que na fórma de espinho eu trazia incessantemente na consciencia. Oh que amargas desillusões não foram as minhas quando ahi cheguei! O menino tinha no lugar as mais tristes tradições, que se podem imaginar, e para cúmulo do meu desgosto, mão desconhecida o tirára violentamente, posto que com satisfação de todos os moradores.

— Meu Deus! Que está dizendo, seu padre? inquiriu Marcellina abalada e confusa destas noticias, que cahiam em seu espirito na forma de raios de luz.

— Tu sabes o resto, Marcellina.

— Eu, eu?

— Sim. Não te lembra o que fiz quando, de volta do engenho entrei em tua casa?

— Já me não lembra, seu padre.

— Pois lembra-me eu. Chamei Lourenço para junto de mim, metti-o entre as minhas pernas e abracei-o. Ah! era a primeira vez que eu via meu filho.

— Seu filho! Pois Lourenço é seu filho, seu padre! exclamou a cabocla, fazendo gestos e meneios, que acusavam intenso e subito prazer. Oh! meu Deus, como eu sou feliz!

As lagrimas saltavam dos olhos della, mas não eram desacompanhadas; o padre tambem chorava.

— Feliz foi Lourenço, feliz fui eu, disse ele. Si não fôras tu, alma privilegiada, mãe perfeita, honra das mulheres, brilho do lar, si não fôras tu, o que seria desse menino que vivia como animal immundo na povoação condemnada? Mas... estou ouvindo o rumor de passos. É talvez Lourenço, que se aproxima. Mudemos de assumpto. Não te esqueças, Marcellina, do que me prometteste. Não reveles a ninguem a minha fealdade moral.

— Ninguem saberá o que vosmecê acaba de contar, menos Francisco.

— Francisco? Tens razão. A Francisco, primeiro instrumento da Providencia para a mudança radical do destino de Lourenço, podes e deves referir toda esta historia. Agora uma ultima palavra. Retiro-me deste lugar sem saber para onde vou. Si eu vier a morrer antes de terminada esta guerra, que me aparta de vocês contra a minha vontade, logo que tiveres noticia, faze Lourenço senhor do seu proprio segredo e entrega-lhe este papel, que elle deve apresentar ás justiças. Não é meu testamento, é a doação, que lhe faço, de meu sitio e de todas as terras que me pertencem.

— O padre Antonio entregou a Marcellina o papel a que se referira. Era tempo. Lourenço entrava para dizer que seus serviços já não eram necessarios no sitio.

— Por derradeiro quero dar-te um conselho, Marcellina, disse o padre levantando-se. Ao que parece, está projectado um ataque ao engenho. Devem passar por aqui os assaltantes, e natural é que tentem algum desacato a vocês, por se vingarem das relações que Francisco mantém com o sargento-mór. Por isso prudente me parece que não pernoitem aqui por estes tempos. No engenho, onde ha mais força, deve haver mais segurança. Seu padre tem razão, respondeu Marcellina.

— Mas no engenho é que elles têm sêde, observou Lourenço.

— Pois façam o que lhes parece melhor, tornou o sacerdote.

— O melhor é irmos para a casa grande emquanto é cedo, disse a cabocla.

— Verdade seja—acrescentou o rapaz—que eu devo estar junto de Germano, para ver esse negro o que faz. Vosmecê bem sabe porque é que eu digo isto, minha mãi.

— Está assentado. Vamos já.

— Adeus, Marcellina. Deus te abençôe, Lourenço, disse o padre Antonio, limpando a furto duas lagrimas que lhe apontaram nos olhos, e encaminhando-se para a estrada.

Dahi voltou-se para dizer: —Escuta de lá, Lourenço. A chave da casa, na occasião de sahir mando pôr debaixo da porta. Quando voltares do engenho, achal-a-has da banda de dentro.

— Senhor sim.

Uma hora depois Lourenço e Marcellina tomavam para o Bujary. Não se metteu muito que o padre Antonio com seu escravo José deixou como elles a estrada, seguindo porém differente direcção. Era madrugada velha quando entrou pelo Cajueiro o Tunda-Cumbe com sua gente. Pedro de Lima bateu com o coice do bacamarte sobre a porta da casa de Francisco, e como d'ahi ninguem lhe respondeu, foi elle o primeiro que poz fogo nella. Outros bandidos o imitaram, tomados da volupia feroz que caracteriza os scelerados. A casa do padre foi poupada por ser de quem era. Mal sabiam elles que poucas horas antes tinham voltado d'ahi, inteiramente frustrados em sua expectativa e sem poderem explicar o facto que profundamente os contrariara, dois parciaes dos mascates mandados por Antonio Coelho com todo o necessario para acompanharem o padre á Parahyba.

Ao clarão do incendio, penetraram os malvados na mata, caminho do engenho, supondo que iam sorprender o sargento-mór. Este porém, advertido desde muitos dias atraz por differentes circumstancias, suspeitas e até boatos, tinha-se passado aquella tarde para o sobrado que costumava occupar, quando festas publicas ou negocios particulares exigiam a sua estada temporária na villa. Marcellina e Lourenço, não tendo encontrado a familia na casa grande, foram reunir-se com ella em Goyanna.

O sobrado estava situado no quarteirão fronteiro á igreja do Carmo. Ficava olhando para o cruzeiro de pedra que ahi se vê e do qual se diz que em seus alicerces se acha enterrado grande thesouro destinado pelo instituidor á reedificação do convento si succeder que venha a cahir em ruinas.

Esta tradição existia já em 1711 porque, por occasião de um dos oito motins de que, durante a guerra dos mascates, foi theatro Goyanna, um bando da gente do Tunda-Cumbe atirou-se ao cruzeiro, e a uso dos vandalos, que tudo destruiam, mutilou parte da larga e solida peanha, sobre a qual ainda hoje se mostra assente a cruz, e fez profundas excavações, afim de vêr si davam com o cabedal occulto. Não se sabe si a sua espectativa foi satisfeita ou illudida. Neste ponto a tradição nada adianta.

Com o sargento-mór tinha ido para Goyanna grande parte da escravatura; o restante ficára no engenho para o guardar e defender, sob as ordens de alguns moradores entre os quaes se apontava o Victorino, cuja intrepidez era por todos conhecida. A mudança fôra subita.

Quando a columna invasora chegou ao engenho, já era ahi esperada; e por isso foi recebida com todas as honras. A defeza tinha sido bem organizada por Victorino e seus companheiros. A casa grande semelhava uma cidadella fortificada. Mas infelizmente o animo que sobejava nos moradores, faltava nos escravos. Emquanto aquelles faziam prodigios de valor, estes defendiam as entradas frouxamente. Dentro em pouco tempo conheceram os assaltantes, superiores aos assaltados não só em numero, mas no manejo das armas, que a praça não tardaria em cahir debaixo do seu poder. Conscio desta verdade, o Tunda-Cumbe chamou de parte o Pedro Lima e o Gonçalo Ferreira, deu-lhes ordens á puridade, e, pondo as pernas ao cavallo, desappareceu por entre uns cannaviaes que do lado direito vinham morrer no cercado. Victorino que de uma das janellas tinha debaixo das vistas o movimento inimigo viu aos primeiros clarões do amanhecer, tomar o caminho de sua casa o chefe da quadrilha.

Não foi preciso mais para comprehender a intenção do bandido.

A honra de suas filhas, único thesouro, unico dote dellas e principal orgulho da familia afigurou-se-lhe, não sem razão, ameaçada de imminente desastre. O almocreve esqueceu o sobrado pela palhoça. Naquelle estava uma fortuna de grande valor, consistente em joias, moveis e outros muitos objectos preciosos; nesta havia a pureza de duas graciosas donzellas, que representavam a seus olhos annos de trabalho, de sacrificios, e de bem querer. Em seu coração, em sua alma tinham muito mais pezo os risos gentis, as graças meigas, o amor modesto, de Marianninha e Bernardina do que toda a prata, todo o ouro, todos os brilhantes de João da Cunha e de d. Damiana. Victorino desceu a modo de impellido por sopro de tempestade, montou em seu cavallo, que, por cautela retivera amarrado no vão do sobrado, e por uma aberta que fez na cavallariça pôde ganhar os cannaviaes sem ser visto pelos assaltantes.

Antes de chegar á casa, encontrou-se com Joaquina que já vinha, como louca, em procura delle.

— Corre, corre, Victorino, que talvez ainda pegues o malvado, o Tunda-Cumbe, que nos vai roubando a nossa filha, gritou a pobre mulher, os cabellos desgrenhados, as faces cobertas de lagrimas, e no semblante os traços violentos do maior desgosto que ella tinha sentido até esse momento na vida. Eu tudo vi da casa grande, disse elle. Miserável!

E logo acrescentou, descobrindo umas cincoenta braças adiante de si o Tunda-Cumbe, já a perder-se de vista, pela veloz corrida do cavallo, por entre o mato com a Bernardina atravessada sobre as pernas:

— Ou tu me matas, ou tu morres!

— Ah! minha filha, minha querida filha! dizia Joaquina, carpindo-se na sua grande afflição. E onde está Marianninha? Ó Marianninha? chamou a agoniada mãe.

Dentre umas moitas emergiu então a alguns passos de Joaquina a rapariga, por quem ella acabava de chamar. Os matos tinham-lhe rasgado a coberta em que se envolvera na occasião de fugir com medo do malfeitor.

Vinha chorando, e estava pálida, triste, trêmula. Do grande susto o coração parecia querer sahir-lhe pela boca. Ella semelhava rolinha espantada por tiro de caçador.

— Minha mãi! minha mãi! Que desgraça foi esta?

— Não podia ser maior, minha filha.

— Não fale assim, que ainda pode ser peior, minha mãi!

— Olha. Lá vai o malvado com tua irmã.

E Joaquina apontou para uma baixada, onde nesse momento appareceu o Tunda-Cumbe.

— E lá vai meu pai, lá vai meu pai já a pegar seu Manoel Gonçalves. Oh meu Deus! Que é que me está dizendo baixinho, minha mãi?

— Nada, Marianninha. estou rezando, para que Deus se lembre de nós neste cruel transe.

De repente, aquella mãi e aquella filha, como si tivessem a mesma impressão, e a mesma idéa, ou se deixassem vencer pela mesma força intuitiva e fatal, deram alguns passos violentos para diante, com os olhos, para não escrevermos o coração, a alma, postos nos dois cavalleiros que corriam na baixada. Ambas tinham visto o que ia na frente, voltar arrebatadamente o animal e esperar o segundo; tinham visto este atirar-se para aquelle com sua arma de fogo em uma das mãos e na outra o facão desembainhado; tinham ouvido a detonação de um tiro á qual se seguira uma nuvem de fumo que envolveu os dois contendores.

Mas não se metteu muito que as mulheres recuaram espavoridas, levantando alto brado de dôr, que atroou todo o deserto. O Tunda-Cumbe acabava de desapparecer no mato com sua presa, emquanto Victorino ficava cahido na baixada, estorcendo-se nas convulsões da morte.