O Matuto/XXV

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Cosme Bezerra voltou a esquina, acompanhado de ordenanças e parciais, entrou na Rua-da-matriz e foi descavalgar no Pátio-do Carmo, à porta de João da Cunha.

— Ufa! Ufa! O ladrão do mascate é insolente, mas não tem armas, por mais que diga que tem. E onde as teria ele que me escapassem? Não houve escaninho que não batessemos.

Tais foram as palavras que dirigiu às pessoas que se achavam reunidas na sala de visitas do senhor-de-engenho, onde fez a sua entrada já com luzes acesas.

Então contou miudamente tudo o que acabava de acontecer, e de que ai já tinha chegado vaga e confusa noticia.

Estavam presentes os principais nobres do lugar, que para esse ponto se haviam encaminhado às primeiras manifestações da desordem, como para a casa de Coelho haviam corrido os principais negociantes. E cumpre notar antes de tudo que Coelho interiormente estava satisfeito com as circunstancias que pareciam colocá-lo no mesmo plano do senhor-de-engenho e fronteiro a ele. ‘Se ele é sargento-mór, também eu o sou — dizia o negociante em sua mente escaldada pelo ódio e pelo despeito. Se o cercam seus amigos, a mim também me cercam os meus no momento difícil. Se projeta aniquilar-me, eu de há muito jurei reduzi-lo a cinzas. O futuro há de decidir qual dos dois ficará com a vitoria de seu lado.’ Por onde se vê que o alvo em que o português tinha as vistas era singular, único — João da Cunha.

Já não eram os mesmos os intuitos deste — abrangiam o mais vasto teatro. Esquecido inteiramente da origem principal do ódio com que o distinguia o mercador, ele explicava a oposição dos mascates atribuindo-lhes ambições de mando e fortuna. Nunca lhe passou pela imaginação que pudesse o amor contrariado dar inspiração e impulso àquele movimento.

A seus olhos Coelho era mais um instrumento dos mascates do Recife, instrumento cego e habilmente manejado por eles, do que uma mola importante, uma força de seu natural independente e vivaz do estranho artefato que perturbava a sociedade goianista. A verdade entretanto era justamente o contrario do que julgava o fidalgo. A ação de Coelho no movimento hostil à nobreza partia de se mesmo. A não ser esse amor contrariado, o moço português estaria ao lado dos nobres, como estiveram durante a guerra vários portugueses, por exemplo Martinho de Bulhões, genro de Matias Vidal.

Em verdade, seus sentimentos casavam-se mais com os daqueles contra os quais movia seus recursos, do que com os sentimentos daqueles com quem aparecia identificado tanto para a ofensa como para a defesa. A nobreza semelhava ainda então uma arvore de extensas raízes que penetrava profundamente no solo das sociedades, e cuja folhagem tinha a majestade das grandes alturas e das vastas sombras; a democracia era planta rasteira, sem raízes, sem ramas; era vegetação de vida duvidosa, incipiente; prometia, mas não assegurava assumir as proporções gigantes, com que um século depois sombreou o solo da pátria e abrigou as instituições a que este império deve a sua grandeza e o seu renome. Mas Coelho não tinha melhor motivo. O senhor-de-engenho julgava indigno e ingrato aquele que aliás fora atirado na luta pelo amor imenso e pelo despeito feroz.

Em casa de João da Cunha estavam sobressaltados não sem razão os espíritos. As noticias aterradoras que de momento a momento chegavam; os gritos dos magotes de povo que passavam, vociferando pela frente do sobrado ao principio desordenadamente, logo após organizados para o acometimento e a pilhagem; o rebate dado pelos sinos e pelos tambores; as famílias que fugiam amedrontadas e como sem saberem caminho nem carreira; os soldados que corriam, acudindo aos toques dos clarins; enfim, todo o medonho cortejo de circunstancias que se prende ao furor e à anarquia das turbas, e que são como o colear, o sibilar, o bote, a dentada e a peçonha de enorme reptil, solto, mas assanhado em espaço estreito, não podiam gerar no animo de quem se via, como os que ali se achavam, ameaçados de ser o alvo único da ferocidade da insurreição, impressões diferentes dessas.

João da Cunha e Cosme Bezerra, compreendendo a gravidade do momento, trataram logo de assentar nos meios de conjurar o cataclismo, que ameaçava engolir fortunas e vidas preciosas.

— O melhor meio — disse Cosme — é reunir as ordenanças e mandar varrer as ruas a panos de espada e a tiros de arcabuz.

— Não, não — disse Filipe Cavalcanti. Nem todos os que enchem as ruas são desordeiros. Procedendo assim, a força publica arrisca-se a ferir famílias inofensivas que fogem da anarquia, e até muitos que são por nós.

— Entendeis então que de outro modo tereis restabelecido o sossego publico? Enganai-vos. Em momentos semelhantes ao presente, quem se deixa guiar pelo coração corre o perigo de morrer às unhas inimigas. O raciocínio, a justiça, o sentimento de humanidade devem estar na ponta da espada, na boca do clavinote, nas patas dos cavalos. Que dizeis, Luiz? perguntou Cosme voltando-se para seu irmão Luiz Vidal, que, de pé, olhava, com mostras de quem tinha o espirito ocupado em acertar com o verdadeiro caminho, ora para o capitão de ordenanças, ora para o sargento-mór.

Em verdade não vejo outro meio de combater a insurreição, respondeu Luiz Vidal. Entendo, porém, que não há necessidade de levar-se a repressão ao extremo que vós indicais. A força publica deve apresentar-se imediatamente nos pontos em que a perturbação se mostrar mais veemente e ameaçadora; mas deve haver particular empenho em que sua presença sirva antes para serenar os espíritos do que exaltá-los ainda mais, e muito menos para proceder a excessos que possam trazer o sangue e a morte.

Com quem estou metido! exclamou Cosme. Que dois filósofos humanitários! Observasse eu estes preceitos de refinada brandura, que amanhã Goiana em peso estaria nas garras de Antonio Coelho e de Jeronimo Paes, e cada um de nós teria o seu gasnete entre as unhas do Lauriano, do Bartolomeu ou de outros vis instrumentos do ódio português. Basta, meus amigos; dispenso os vossos conselhos. Olá, Matias? Gritou ele a um soldado, que da porta da sala assistia, sem tugir nem mugir, como era seu dever, à conversação dos nobres senhores. Corre já à casa, e dize ao alferes Maciel que espere por mim com toda a força que lá tem sob suas ordens. Põe nova carga nas minhas pistolas e mete-as nos meus coldres.

— Luiz Vidal, tendo ouvido estas ordens do irmão, deu o andar pela sala e voltou ao ponto em que se achava um minuto antes. Faço-vos companhia, Cosme, disse ele.

— Muito folgo de o saber. Eu também vou, disse João da Cunha, encaminhando-se para a porta. Pois não hei de acompanhá-los? Não é o lugar dos cavalheiros o seio quente da família quando a pátria está em perigo.

Chegando à porta que dava para a escada, o sargento-mór chamou:

— Ó debaixo? Venha cá um de vocês.

Um negro apareceu logo após.

— Onde está Germano?

— Foi chamar Moçambique e Benedicto.

— E vocês estão todos aí?

— Estamos todos, sim senhor.

— Sela o meu cavalo.

Entretanto, d. Damiana chegara-se para onde estavam Cosme, Luiz Vidal e Filipe Cavalcanti e com eles conversava sobre os sucessos vistos e previstos.

Ides também percorrer as ruas, Sr. João da Cunha? Perguntou ela ao marido que, dada a ordem, tornara a seu lugar. Meu dever impõe-me este procedimento.

— Não sei se seria mais prudente não vos expordes às iras dos vossos inimigos. Penso, ao contrário, que devo ir ao encontro deles a fim de os castigar. Mas é que em vossa ausência podem vir atacar o sobrado, observou Filipe Cavalcanti.

— Meus escravos estão aí para defendê-lo. Não nos há de faltar nem pólvora nem bala.

— E não há de ser só a escravatura que o defenda. Eu também sei pegar de uma espingarda e dispará-la, disse graciosamente a jovem senhora-de-engenho.

— Bonito, prima! exclamou Cosme Bezerra, sorrindo. Quisera estar de parte a ver a galhardia desta valente amazona.

— Não façais pouco em mim, Sr. Cosme, respondeu d. Damiana. Bem me conheceis. Se entrardes na sala das mulheres, ficareis admirado do armamento que lá existe. Há mais de uma semana não tinha eu no engenho outra ocupação que fazer cartuchame. Podeis pois levar tranqüilo vosso espirito. Na casa de João da Cunha só penetrará mascate depois que Damiana da Cunha tiver exalado o ultimo suspiro.

A gentileza com que a senhora-de-engenho dizia estas palavras não se descreve, nem se imagina sequer. Outros fossem aqueles a quem ela se dirigia nesse momento, que teriam por vã e ridícula bravata essa afirmação a que a autorizava o conhecimento intimo do quanto valia o seu animo. D. Damiana era de feito perita em atirar desde os quatorze para os quinze anos. Manhãs inteiras levava ela por junto das capoeiras próximas do cercado do engenho a passarinhar por distração. Mais de uma aposta ganhou a parentes seus com quem atirara ao alvo. As detonações das armas de fogo, longe de amedrontá-la, levantavam seus espíritos. Sentia nelas certa voluptuaria harmonia que lhe trazia deleite. Naquela forma juvenil, graciosa e fresca havia ânimos viris, que se impunham à vontade e condição feminil como leis fatais e impreteríveis. Enfim, era tradicional esta qualidade da mulher do sargento-mór, e lhe acarretara entre o povo certa alcunha, com que as más línguas supunham injuriá-la. Chamavam-na — a Escopeteira. Longe, porém, de se dar por ofendida, a mulher de João da Cunha não perdia ocasião de mostrar praticamente que esta alcunha lhe era agradável e que a ela tinha indisputável direito.

— Bem sei quanto valeis, senhora prima, tornou Cosme. Mas é que difere muito atirar em rolinhas e sanhassús de atirar em salteadores afeitos a torcer o corpo às balas e aos mais mortais golpes.

— Seja como for, Sr. Cosme. Guardem os negros o baixo da casa, que eu guardarei o alto. Mas receio por meu marido, porque sei quanto o odeiam os mascates e a plebe.

— Nada o há de ofender. Demais, vamos apenas dar uma volta pelas ruas mais agitadas, disse Luiz Vidal.

E estaremos dentro em pouco tempo de volta, acrescentou João da Cunha. Como a esse tempo estavam já prontos os cavalos, desceram a montá-los os cavaleiros presentes. Antes de sair, João da Cunha entrou no armazém.

— Todos estão ai, Roberto? Perguntou ele, Roberto era o feitor. Todos, menos Germano, que ainda não voltou do engenho.

— Tem cuidado, Roberto, enquanto volto.

— Senhor sim. Não há de acontecer nada. Nesse momento, de um bando que passava pela frente do sobrado, partiu um grito insultuoso, que veio ferir o senhor-de-engenho no coração:

— Morra o assassino! Morra a escopeteira !

João da Cunha, a modo de gelado de cólera, mal pode ir ter com os amigos que à porta da casa punham os pés nos estribos.

Conhecestes aquela voz, Sr. João? Perguntou-lhe, já montado Cosme Bezerra, mal podendo conter a raiva que o assaltara. Há de ser de algum vendido ao dinheiro de Coelho ou de Paes.

— É a voz desse rábula infame que imagina fundar em Goiana uma republica ateniense.

— Quem? O Belchior?

— Ele mesmo, esse velhaco, essa pústula do foro, que vive especialmente de promover a alforria dos negros dos engenhos para passar as unhas no magro cobre deles e fazer pirraça aos senhores. ninguém ainda se inculcou tão amante da liberdade, tão independente, tão probo como ele: a verdade, porém, é que ele não passa de um saltimbanco audaz, um charlatão formado em tretas e torpezas que despertam nojo. Mal acabadas estas palavras, novo bando que vinha nas pisadas do primeiro, parou diante da casa e repetiu o pregão, que ainda soava aos ouvidos dos fidalgos:

— Morra o assassino! Morra a escopeteira!

— Quereis saber, Sr. Cosme? disse subitamente o sargento-mór. Ide vós a vosso destino, que eu fico. Há de vir terceiro grupo parar em frente de minha casa, e é preciso que eu esteja presente para dar-lhe a resposta que merecem. Roberto, Roberto? Gritou João da Cunha da porta que punha em comunicação o armazém com a entrada. Carreguem as armas e venham colocar-se todos vocês em seus postos. Ao terceiro insulto quero ouvir soar o fogo.

— Os cavaleiros partiram, enquanto o sargento-mór, quase fora de si, subia para junto de sua mulher. Por seu gosto estaria nas ruas, promovendo a reação ou a contrarevolta. Mas compreendia que naquele momento não lhe era licito arredar-se de casa. Preste atenção, Sr. João da Cunha, disse-lhe d. Damiana, chegando a uma das janelas da sacada onde estava o marido. Não ouvis ruído de pancadas contra as portas na Rua-direita?

— Estou ouvindo. Quem sabe se já não é o saque?

— O saque!

— Quando a plebe se solta, é aí que vai parar. Mas onde está e o que tem feito desde a tarde Antonio Rabelo com sua força? Oh não poder eu sair!

Enquanto assim falava o senhor-de-engenho, Cosme corria à Rua-do-meio a tomar o comando da pequena força que se achava sob as ordens do alferes Maciel. Seus grandes espíritos não se compadeciam com a reação morna e frouxa. De caminho, ele descavalgava aqui para dar uma ordem, ou combinar uma providencia; arrojava-se acolá temerariamente sobre os adjuntos e impunha-lhes que se desfizessem. Se era atendido, passava; se não era, empregava meios indiretos de o ser. Esses meios eram a brandura, a persuasão, a ameaça. Faltava-lhe gente para desempenhar satisfatoriamente o papel que teve nesse, como nos principais motins de Goiana; mas todas as faltas supria admiravelmente sua intrepidez por todos reconhecida de há muito e glorificada depois pelo historiador.

Logo que tomou o comando da força, encaminhou-se com ela à cadeia, para onde tinham ido Luiz Vidal e Filipe Cavalcanti a reunir-se com Antonio Rabelo, receosos de que os amotinados tentassem soltar os presos.

Antonio Rabelo foi de parecer que se não procurasse dissolver os ajuntamentos.

— Onde temos nós gente suficiente para dissolver essas multidões numerosas, Sr. Capitão? Perguntou ele a Cosme. Guarnecem a cadeia dezesseis praças unicamente. Se daqui arredarem o pé, o povo levantado virá abrir as prisões, e aumentará com os criminosos o seu numero e a sua ferocidade. Vós não tendes ai convosco mais de vinte ordenanças. Julgais que com tão pequena força poderemos bater os rebeldes e ficar senhores do campo?

— Basta uma corrida forte e violenta sobre os inimigos, para que, cobrando medo, se dispersem.

— Estais enganado. Eles são muitos e não lhes faltam armas. Armas? Não as têm.

— Têm-nas, Sr. capitão., têm-nas. Reparai nos que passam. Haveis de ver cada um com seu arcabuz. Os mascates fizeram e fazem larga distribuição delas por seus asseclas. O que me espanta é que ainda não se tenham lembrado de vir atacar este posto, tão fraco quão arriscado.

Mal tinha Antonio Rabelo acabado estas palavras, quando uma massa negra começou a aparecer no principio da rua.

Deus queira que eu me engane. Mas, ao que parece, vem ali gente para nos dar que fazer toda esta noite — disse Antonio Rabelo.

E logo mandou dobrar as guardas, e à frente da cadeia estendeu o restante da força.

— Quereis ir ao encontro do bando, Sr. capitão? perguntou Diogo Maciel, impaciente por atirar-se ao tumulto onde mais tarde praticou atos de distinta bravura. - Não; agora não enfraquecerei este ponto com a minha ausência. Os rebeldes vêm direitinhos para cá.

De feito, não tomaram eles outra direção.

O bando, passante de cem homens, vinha preparado para entrar em fogo e era capitaneado por Jeronimo Paes e seus filhos. Sua intenção era a que já tinha sido prevista — a de soltar os criminosos.

Obra de cinquenta passos antes, Antonio Rabelo intimou-lhes que passassem de largo.

Jeronimo Paes, sem se importar com esta voz, deu ainda alguns passos para diante. Rabelo mandou distribuir cartuchos e carregar. Então a multidão fez alto a respeitosa distancia.

Que querem, bandidos? Perguntou fora de se Cosme Bezerra, mal podendo suster as rédeas ao cavalo, pela cólera que o tomava. Bandido sois vós — respondeu Jeronimo Paes.

— A esta voz, Cosme pôs as pernas ao cavalo, cravou-lhe as esporas com movimento nervoso e atirou-se para a frente da multidão. Quando parou a três passos de Jeronimo Paes, trinta bacamartes tinham as bocas voltadas para ele. A seu lado tinham arrancado como arrastados no ímpeto vertiginoso da sua carreira, Diogo Maciel à esquerda, Filipe Cavalcanti e Luiz Vidal à direita, e atrás deles cerca de dez ordenanças bisonhas, mas animosas.

Podeis assassinar-me — disse Cosme. É o mais que podeis fazer, porque é só o que sabeis, miseráveis. Mas ainda que corra perigo a minha vida, como se me achasse diante de feras bravias, nem por isso hei de deixar passar sem oposição a vossa rebeldia. Quem fala em rebeldia! disse Jeronimo. Rebelde és tu, mazombo infame! disse para Cosme um dos filhos de Jeronimo.

E cinqüenta, oitenta, cem vozes gritaram:

Tu é que és o rebelde, tu é que és o perturbador da ordem. Fora, fidalgos! Fora. Quando esta alarida serenou, ouviu-se a voz de Cosme Bezerra. Tinha todos os tons de cólera mal sofreada.

Goianistas, goianistas, gera em mim extremo pesar este vosso procedimento! Eu não falo aos mascates, falo a vós, povo de Goiana, que meia dúzia de estrangeiros ingratos tem desnorteado e pervertido.

Cala-te, cala-te, mazombo. Não te queremos ouvir. Sai de nossa presença, se não te queres arrepender. Infame canalha! Exclamou fora de se Cosme Bezerra, desembainhando a espada, e dando mostras de quem queria investir. Cosme, contende-vos, disse Filipe Cavalcanti, entrevendo os perigos que levantava contra se por suas palavras e gestos o capitão das ordenanças.

Seu aviso já não produziu o efeito saudável. O magote atirou-se sobre todos eles como vara de porcos do mato salta sobre imprudente caçador. Alguns tiros foram disparados, mas nenhuma morte se seguiu a eles. Os que pretendiam tirar a vida ao destemido capitão, cedo tiveram a prova de seu engano, vendo Cosme de espada nua abrindo caminho por entre a multidão. Seu cavalo, esse tinha sido derrubado pela descarga.

Cerca de dez minutos durava já a luta desigual de treze homens contra cem, que os queriam enlaçar, quando ao lado do Carmo apareceu uma mó de gente que corria para o ponto do conflito. Era uma parte da escravatura de João da Cunha que, com ele à frente, vinha a socorro dos parentes e amigos. Os tiros tinham servido ao senhor-de-engenho de aviso da luta próxima. Acompanhavam-no o feitor e outros moradores. Lourenço ficara com Germano, já então no sobrado e o restante dos escravos no armazém, guardando a casa.

No momento em que este auxilio chegou a Cosme, o conflito já tinha tomado feição diferente. Como a intenção principal da multidão era abrir as portas da cadeia, a fim de saírem com os criminosos, dois mascates, Braga e Bernardino, ai recolhidos por delitos comuns, ela atirou-se em peso contra as entradas. Cosme, Felipe, Maciel e os demais que tinham resistido ao furacão insurrecional, agora, escapos de seus novelos, serviam, com Antonio Rabelo e sua brava guarnição, de baluartes inexpugnáveis ante os quais se quebravam as investidas dos insurgentes. Achando seus parentes e amigos salvos, João da Cunha, que estava impaciente por tomar parte na luta, veio colocar-se ao lado deles. Tornou-se assim quase impossível aos revoltosos lograrem o seu principal intento. Mas isto os não dissuadiu dele. Colocados em frente da cadeia, vociferavam contra os sustentadores da ordem. Alguns jogavam projeteis imensos e mortais sobre os que defendiam o importante passo. Garrafas vazias, grandes seixos da rua iam a mude batere despedaçar-se nas portas e grades, impelidos pelas mãos dos amotinados. Seus estilhaços continuados feriam os impávidos defensores.

De repente um homem, que vinha das bandas do Carmo, procura a cadeia. Alguns dos amotinados, suspeitando nele um mensageiro da nobreza, atravessam-se diante dos seus passos. Loucos que foram esses! Um jagunço enorme, que o desconhecido manejava tão facilmente como se fora delicado espadim, prostrou dois deles por terra sem sentidos. Corre então a seu encontro maior numero, que não tem sucesso melhor. O desconhecido não é muito alto, nem muito corpulento. Mas sua força muscular faria inveja à mais possante fera. Quando seu braço descarrega a arma, semelha este troço de mármore e abate a seus pés os maiores obstáculos.

Ele atira-se de ombro sobre um dos mais alentados de formas e dá com ele em terra. Consegue, enfim, derrubando e ferindo os que pretendem cortar-lhe a passagem, chegar ao pé do sargento-mór.

— Lourenço! Que vens fazer aqui? Alguma novidade por lá?

— Vim chamar vosmecê a toda pressa. Do lado do rio dirigem-se para o sobrado forças numerosas. No sobrado se diz que são as forças de Luiz Soares. Luiz Soares! exclamou o sargento-mór.

— Luiz Soares! repetiram Felipe e Cosme Bezerra.

— E que faremos agora? Inquiriu João da Cunha.

— Sabendo do que havia, Antonio Rabelo aproximou-se e disse-lhes:

— Podeis ir, senhores. Eu defenderei o meu posto até exalar o ultimo suspiro. Pois bem. partiremos a cortar-lhe a vanguarda — disse Cosme a Antonio Rabelo. Mas ao vosso lado, senhor capitão, ficará o alferes Diogo Maciel. Tende certeza de que estareis bem acompanhado.

Com as espadas nuas nas mãos, os fidalgos afastaram-se, formando uma mó impenetrável.

Alguns dos do bando de Jeronimo Paes, que lhes saíram ao encontro, caíram ao peso da terrível massa de Lourenço, o qual ia na frente abrindo caminho temerariamente.

Seguiam após eles as ordenanças de Cosme Bezerra e os escravos de João da Cunha.

Penosa, mas rápida, tinha corrido a noite.

Raiava, enfim o dia 23 de agosto de 1711, que ficou sendo memorável nos fastos de Goiana.