O Matuto/XXVI

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Não tinha ainda amanhecido de todo, quando as balas dos assaltantes já sibilavam pelas urupemas do sobrado de João da Cunha, como pelas enxárcias de navio no alto mar esfuziam as lufadas de atroz procela.

Porque fora esse o lugar escolhido para as primeiras honras do assalto? Porque, em vez de correr imediatamente à cadeia, forçá-la, quebrar-lhe os ferrolhos, soltar os sentenciados, tinha Luiz Soares tomado para o pátio do Carmo, deixando entrever a intenção de atacar a habitação do fidalgo antes do que qualquer outro ponto?

A resposta é fácil. Antonio Coelho sabia a hora precisa em que Luiz Soares teria de entrar na vila. Sabia o lugar onde essa entrada devia efetuar-se: era aquém do Tanquinho, e quase fronteiro ao oitão da igreja do Senhor-dos-martirios. Tomando essa direção, escapava às trincheiras de Manoel de Lacerda, como aconteceu.

O negociante, tanto que viu aproximar-se o momento, montou a cavalo e para lá se encaminhou, seguido de cerca de cem homens. Este troço era composto em grande parte de europeus. Era o corpo de sua especial confiança. Coelho o denominava seu estado-maior. Partiram da Rua-de-rosario, ao mesmo tempo que a multidão capitaneada por Jeronimo se dirigia para o lugar onde estacionou.

Quando a gente de Luiz Soares, rompendo os últimos matos, saiu na Rua-dos-martirios, que não era então mais do que o caminho do Tanquinho, achou já ai para o receber o estado-maior dos mascates.

Vendo o comandante da tropa, Coelho correu a ele, chamou-o de parte e falou-lhe à puridade. Quando a cabo de alguns minutos se separaram, estava assentado o plano do ataque. Luiz Soares devia levar suas primeiras investidas contra a frente da casa do sargento-mór, enquanto o negociante a atacaria pelo lado oposto. Entre dois fogos, o soberbo fidalgo cairia no poder dos inimigos sem grande custo, e tanto bastaria para que cessasse a resistência, visto que nenhum dos outros, nem Cosme nem Filipe, nem Jorge Cavalcanti, nem Manoel da Lacerda, em uma palavra nenhum deles tinha gente para fazer frente a seus adversários. Então tudo tornar-se-ia fácil. O povo já estava solto; a vila abandonada por mais da metade dos habitantes pacíficos; seguir-se-ia a revolta como se seguiu. As tropas invasoras engrossariam com os subsídios que desse a insurreição, e tomariam sem perda de tempo o caminho do Recife, a fim de romper o cerco.

Estas foram as razões que publicou Coelho para autorizar o seu plano. Ele porém tinha a sua razão particular em querer que prevalecesse este a outros planos indicados pelo destemido Paraibano. O leitor já sabe qual ela seja. Acabar com João da Cunha era o seu fim, a sua preocupação de todo o instante. Acabado ele, poderia finalizar a guerra, que ele não teria por isso pesar nem descontentamento.

No momento em que, dando a volta da rua, descobriram os fidalgos, aos primeiros clarões da manhã, a vasta multidão, superior a seiscentos homens, uma idéia assaltou incontinenti o espirito de Bezerra. Com sua lúcida previsão a que devia tantos sucessos felizes no período de agitação de que se trata, concebeu logo ele um projeto de oposição.

— Um cavalo já para Lourenço.

E voltando-se para o rapaz, disse-lhe:

— Tu me acompanharás. Não preciso de mais ninguém.

— Aonde tencionais ir, Cosme? perguntou Filipe Cavalcanti.

— Vou a Jorge Cavalcanti, que já pode abandonar a sua fortificação, visto que as forças inimigas, a que ele pretendia impedir a entrada, já estão tomando conta da vila. Lourenço correrá ao Tanquinho a dizer a Manoel de Lacerda que venha em nosso socorro. Com a gente que cada um destes amigos tiver junta, bateremos esses bandidos. Só o que desejo me façais, João da Cunha, é que sustenteis a resistência até que eu chegue. Bastam-me cinquenta, quarenta, vinte goianistas da gema para levar estes salteadores a panos de espada, este canalha a patas de cavalo. Em menos de dois minutos, Cosme e Lourenço, tomando pela Rua-do-meio, corriam à desfilada. O momento era decisivo.

Chegando à sala, Filipe Cavalcanti, Luiz Vidal e João da Cunha deram com um espetáculo novo e singular. Cada uma das mulheres que ai se achavam — eram oito, a saber d. Damiana, Marcelina e seis mulatas escravas — mostrava-se aparelhada para travar a luta homérica. A capitoa era a mulher do sargento-mór. Seu espirito belicoso tinha-se comunicado a todas as outras, excetuada Gertrudes, velha que a amamentara e que a um canto da sala tremia de medo. Sobre os bufetes, as mesas, os estrados viam-se açafates cheios de cartuchos, obra das suas mãos e das de algumas de suas mucamas durante os dias e as noites anteriores.

— Que é isto, senhora? perguntou o sargento-mór à sua mulher, tanto que seus olhos leram na face dela a expressão da energia intima, reflexo do seu sangue e do seu orgulho.

— De que vos admirais? Mandei trazer para a sala as armas e munições que estavam nas camarinhas. Será ainda cedo para aparecerem?

—Cedo não é, disse o sargento-mór. Mas é que em mãos de uma dama e de escravas elas se me afiguram postas com muita antecipação. Em ocasiões como esta, e em havendo ainda homens, as mulheres não devem usar outras armas que os seus rosários.

— Tem vosmecê razão, seu sargento-mór, disse a velha. Eu cá por mim não posso entender-me com armas de fogo. As minhas armas são d’água — são as lagrimas. As de fogo, quando alguma vez as tenho, como agora debaixo das mãos, já me parece que vão estourar e despedaçar-me.

Gertrudes tinha de feito nesse momento a mão posta sobre o cano de um mosquete, que estava a seu lado sobre o estrado. Mal acabara de falar, um estrepito estranho e inesperado rebentou perto dela. A anciã recuou espavorida. Pareceu-lhe que se confirmava seu receio. Dera causa ao ruído uma bala inimiga que, batendo no espelho da sala, o pusera em farelos.

— Credo! Virgem santíssima! Exclamaram quase ao mesmo tempo as mulheres.

D. Damiana tinha corrido para junto do marido, como quem queria defendê-lo.

—Correis aqui perigo de vida, disse Felipe Cavalcanti. O meu parecer é que vos retireis ao interior da casa, onde estareis mais resguardadas das balas perdidas. Ide aí encomendar nossas vidas a Deus, e pedir para as nossas armas a vitoria.

A senhora-de-engenho não quis parecer obstinada. Deu o andar para dentro com sua antiga aia, Marcelina e as mucamas. É, porém, certo que seus espíritos, alvoroçados com a eminência do perigo, não se deixaram lá ficar, antes vieram emparelhar-se a João da Cunha, vigiando sobre ele, estremecendo por sua existência, a qualquer detonação, a qualquer vibração suspeita de lhe ser ofensiva.

Quando se acharam sós, correram os três fidalgos às urupemas a examinar o aspecto do campo inimigo.

— Estais vendo, Felipe? Inquiriu Luiz Vidal.

— Que quereis dizer?

— Aquela mó de gente de negro que se move do lado de lá do cruzeiro?

— Estou vendo. São frades, ao que parece.

— São os próprios frades do convento — disse João da Cunha — que distribuem armas e munições pelos matutos esfarrapados e imundos. Oh! os frades, os frades do Recife e de Goiana têm tido grande parte nesta guerra!

Tendo dito estas palavras, o senhor-de-engenho deu o andar para descer.

— Para onde ides? perguntou-lhe Luiz Vidal, carregando o mosquete de que lançara mão.

— Vou mandar subir para cá a metade dos negros. Precisamos dar logo sinal de nós, rompendo o fogo sobre aqueles magotes ferozes. Prudência, amigo, prudência! Observou Filipe. Vede bem não vá esta provocação decidi-los a acometer logo o sobrado.

— Que tem que venham? Tenho forças bastantes, não só a resistir-lhes, mas a batê-los.

— Não estareis enganado? Demais não será mais acertado nada tentarmos contra eles, antes de chegarem os reforços que Cosme foi buscar? Se aquela gente toda, reunida com a que está na frente da cadeia, vier assaltar-nos, achais que poderemos ficar vencedores?

— Só por milagre, ajuntou Luiz Vidal. Mas olhai que a força inimiga, Filipe. Não compreendeis aquela manobra, ordenada por Luiz Soares?

As forças deste caudilho tinham-se dividido em três grandes pelotões. O do centro, formando uma extensa linha ao longo da praça, parecia querer adiantar-se até ao cruzeiro, e de feito se encaminhou para ai; os das extremidades, mais numerosos e compactos, desceram, correndo a marche-marche a tomar as embocaduras, ao norte e ao sul da rua.

Claro está o plano do caudilho, disse o sargento-mór. Atentai nele. A linha do centro manterá sobre nossa frente incessante fogo, enquanto as outras duas, ganhando os lados, vêm reunir-se com ela no ponto comum, que não é outro senão as nossas portas. Houve um momento de silencio. Os fidalgos, por trás das rotulas, olhavam para um lado e para outro, como quem estava estudando as posições inimigas. Enfim Luiz Vidal voltou-se para o senhor-de-engenho e lhe disse:

— Não percamos mais um momento. As forças aí vêm. Se não resistirmos, em dez minutos estaremos no poder dos rebeldes. Descei, descei, e mandai a gente para cá. O forte dela deve ficar lá em baixo. Cá em cima precisamos unicamente de quem saiba carregar e descarregar sua arma. Lá em baixo requerem-se ânimos viris. Será lá o nosso posto de honra.

João da Cunha desceu e tornou logo. Vinham com ele o Roberto e mais dez negros.

— Vês aquela linha de homens que ali vem avançando e atirando para cá? Perguntou o sargento-mór, indicando ao feitor a parte da força que era comandada pelo próprio Luiz Soares. Estou vendo, sim senhor.

— Sobre ela devem ser feitas todas as pontarias. De lá debaixo, quero ver cair aqueles alteadores atravessados pelas balas dos meus escravos. Senhor sim, disse Roberto.

Os negros foram distribuídos pelas janelas. Pelos interstícios das urupemas introduziram os canos dos bacamartes, e espararam a voz de — fogo. O sargento-mór, tanto que viu as armas abocadas na direção conveniente, ordenou uma descarga. Queria por seus próprios olhos ter uma prova, antes de descer ao outro pavimento, do valor e da disciplina da sua gente.

No mesmo instante um só e infernal estampido encheu o âmbito da sala, e foi revoando pelos aposentos e salas imediatas. A casa, em que predominava a pesada alvenaria daqueles tempos, estremeceu, não obstante, como se fora de taipa de sebe, desde os fundamentos até ao teto, de cujo estuque se desagregaram partículas calcinadas. Dir-se-ia que ali o mundo acabava de ter uma das suas medonhas comoções, um desses terríveis cataclismos que se resolvem no aparecimento de mais um vulcão, na abertura de mais um abismo. Misericórdia! Misericórdia! Gritaram dentro algumas mulheres aterradas. Quando iam descendo, ouviram os fidalgos o estrondear de uma forte descarga do lado de fora. Era a resposta que os da rua davam aos do sobrado. Era mais do que uma simples resposta; era principalmente intimação, feita pelo fogo, a que se rendessem, senão a acerba ameaça de que dentro em pouco tempo não passariam de vencidos e prisioneiros.

A luta estava terrivelmente travada. Em alguns minutos ninguém mais pode entender-se. a mosquetaria atroava os ares com suas vozes assustadoras. As descargas sucediam-se incessantemente umas às outras. Contra os paredões e muralhas de solida e antiga fortaleza não batem com mais fúria as balas de canhões inimigos do que as dos mosquetes dos matutos contra as paredes, as portas, as janelas do sobrado do sargento-mór em que eles consideravam encastelado o despotismo, o orgulho e a maldade de um senhor feudal.

— Germano? Germano? Chamou o sargentomór, ao penetrar no vasto aposento em que tinha o grosso de sua tropa. Onde estás, moleque? Não vês que as portas da entrada se acham desamparadas? Para a frente, demônios!

João da Cunha trazia na cava do colete um punhal, no cós dos calções uma pistola, e na mão esquerda um clavinote curto. Por cima do gibão de seu uso corria-lhe, cingindo-o, o talim, donde lhe pendia uma espada de ponta direita. Do ombro esquerdo para o quadril direito caia transversalmente uma correia lustrosa na qual se via segura uma patrona cheia de cartuchos fabricados por sua mulher. Trazia na cabeça chapéu de palha de largas abas. Com o trigueiro do rosto contrastava a barba grisalha, com o longo nariz aquilino os olhos pequeninos e redondos, como os de pomba. Em sua fisionomia liam-se sentimentos encontrados e violentos: a temeridade para avançar, a firmeza para resistir.

À voz do senhor, Germano chamou os outros e tornou com eles para as portas. Por trás destas tinham sido colocadas diversas caixas-de-açúcar com dobrado fim — amparar as entradas e dar aos atiradores posição sobranceira.

Subiram às caixas os negros, e nos pequenos olhais, acinte feitos nas portas por ordem do sargento-mór, puseram eles as bocas das armas.

Então o sargento-mór deu ordem para atirar. As pedras bateram nos fuzis, algumas escorvas arderam, mas nem um tiro soou.

João da Cunha, espantado, surpreso, olhou sucessivamente para os negros e para os dois fidalgos. Rápida lividez passou pelas faces destes últimos. Uma só idéia, uma suspeita cruel que lhe atravessara o cérebro, fez chegar ao rosto deles a sombra de sua asa negra.

Puseram os escravos novas escorvas nos mosquetes, que levaram novamente aos orifícios das portas. À voz de — fogo! — as escorvas arderam, mas, como da primeira vez, nenhuma arma disparou seu tiro.

Fora de si, o sargento-mór vai cair de um pulo junto de Germano, enquanto Filipe Cavalcanti e Luiz Vidal, desembainhando suas espadas, se colocam em atitude ameaçadora diante dos outros escravos.

— Negro infame, quero saber o que têm estas armas. Confessa a verdade, senão te atravesso da outra banda. João da Cunha parecia uma visão infernal. Todos os músculos do rosto, as mais delicadas linhas de seus olhos despediam duras e mudas ameaças, que falavam mais claro do que seus gestos e expressões violentas. Senhor, as armas estão molhadas, respondeu Germano. Não fui eu que as molhei, foi ele; mas já pagou.

— Molhadas as armas! exclamou Filipe. Traidores!

— Ele quem? Ele quem? Dize já quem foi o autor deste crime.

— Moçambique.

— Eis o que se tinha passado depois da subida do Roberto e dos seus companheiros para o andar superior.

Moçambique chegou-se a Germano e lhe disse:

— Que esperas, moleque? Daqui a pouco o branco vem chamar-nos para o sobrado, e nós levamos as armas enxutas. Bota logo água dentro delas.

— Cala a boca, tio Moçambique. Estás doido? Água dentro das armas! Para que fim?

— Ah! Tão depressa te esqueceste da promessa que fizeste a seu Pedro de Lima?

— Eu nada prometi, Moçambique, eu nada prometi do que você está inventando ai.

— Pois já te não lembras da conversa que tiveste ontem de tarde no mucambo?

— E que prometi eu, negro velho tonto? Melhor será que você cale sua boca. Calou Moçambique a boca um momento, mas seu espirito embrutecido, seu interesse, que sua ignorância o fazia supor muito bem amparado pelas promessas de Pedro de Lima, alteou dentro em sua mente cada vez mais as vozes falazes e persuasivas. O negro deu uma volta, como para disfarçar a intenção serpentina, dirigiu-se ao canto onde estavam encostadas as armas, e começou a esvaziar no cano de cada uma o coco, que enchia no pote d’água destinada a matar-lhes a sede.

Germano deu pela operação, no momento precisamente em que Moçambique molhava o ultimo mosquete.

Correr ao negro velho, tomar-lhe a arma da mão, exprobra-lo, foram atos que o moleque praticou em um momento.

— Tio Moçambique! Você sempre fez o que queria?! exclamou na realidade aterrado Germano.

— Fiz o que tu prometeste, mas não tiveste coragem para fazer, respondeu Moçambique. Negão safado! Tu ouviste eu prometer alguma coisa?

— Ouvi, sim. E se tu quiseres agora negar, eu tudo contarei ao senhor — disse Moçambique, dando mostras de querer envolver em sua queda o parceiro.

Germano era fino. Viu de um lance d’olhos todo o horror da situação, toda a imensidade do seu infame procedimento. Compreendeu que se o senhor-de-engenho saísse daquele aperto e viesse a ter conhecimento do que se passara no mucambo, a forca seria o seu fim, se não fosse a morte nos açoites. Então lembrou-lhe uma idéia, única que o podia salvar do abismo à borda do qual cambaleava mais morto do que vivo. Era destruir a única testemunha da sua entrevista com Pedro de Lima. Morto Moçambique, estaria ele livre da responsabilidade que o negro queria repartir com ele, e poderia até, se a vitoria pertencesse aos mascates tão completamente como figuraria Pedro de Lima, exigir deste o preenchimento da promessa feita. Tanto que esta ordem de idéias se acentuou bem em sua mente, para o que não foi preciso mais do que um instante, o moleque puxou resolutamente do facão que consigo trazia, e com ele traspassou o parceiro.

Tendo contado pela rama esta fatal acontecimento a João da Cunha, Germano para dar inteira autoridade ao que dizia, indicou o canto do armazém onde se achava morto, dentro de uma poça de sangue ainda quente, o negro que punha sentido nas carvoeiras.

O sargento-mór soltou então o moleque, dizendo-lhe estas palavras:

— Em recompensa da ação que praticaste, Germano, dou-te a liberdade. Do ora por diante já não és meu escravo, mas meu amigo. Estás forro.

— Eu forro, eu livre senhor! exclamou, duvidoso ainda o negro, como quem não podia acreditar fosse senhor do sumo bem a que aspirava desde que tivera o uso da razão, mas cuja posse só em sonho considerava possível.

Estás livre. Palavra de João da Cunha. As lagrimas saltaram dos olhos do moleque, mas uma sombra, escurecendo-lhe o espirito e aguando o contentamento inefável que o repassava, volitou diante dos seus olhos. Esta sombra tinha a forma de um espectro agoureiro e medonho. Parecia com o negro morto, mas não era senão o remorso, porque, em consciência, o moleque se reconhecia traidor e assassino.

Nesse momento Roberto apareceu no armazém.

— Pólvora, senhor, queremos pólvora — disse ele. acabaram-se todas as munições que havia lá em cima. E que fazem os inimigos? Interrogou Filipe Cavalcanti.

— Avançam, respondeu Roberto. Estão já batendo nas portas. Pólvora, Germano! Gritou o sargento-mór. E uma idéia sinistra, semelhante à sombra do inferno, atravessou seu espirito atribulado. — Se Moçambique molhou a pólvora, que será de nós?- pensou ele.

Germano corre ao barril que primeiro se lhe mostra. O sargento-mór, sobressaltado, impaciente por saber imediatamente a sorte que lhe estava reservada naquele tremendo apuro, correu após o moleque. Germano para diante do barril, abre-o com arrebatamento nervoso, e voltando-se imediatamente ao sargento-mór que tinha os olhos postos nele, exclama:

— A pólvora está molhada, senhor!

— Molhada! Molhada! Exclamam quatro vezes ao mesmo tempo, quatro vozes que se confundiram na mesma angustia, e que pareciam um só grito de maldição e de horror. Eram as vozes de João da Cunha, Filipe Cavalcanti, Luiz Vidal e Roberto.

Para se certificar, o sargento-mór meteu suas próprias mãos dentro do primeiro barril, do segundo, de todos eles. Retirou-as cobertas de uma camada espessa e úmida, semelhante à lama da rua, que se lhes aderira. Não havia mais que duvidar. O tremendo drama caminhava rapidamente à sua ultima cena.

Mas Germano, que não gritará, que não se surpreendera com esse grande desastre, parecia não obstante haver ele penetrado mais profunda e dolorosamente do que nos outros. Havia nisso o efeito de uma lei fisiológica, senão moral. Fora ele, ele próprio quem tinha derramado água nos barris, logo depois da morte de Moçambique. Então nem sequer lhe passara pela imaginação a idéia de ser alforriado por seu senhor. pensava porém no que lhe dissera Pedro de Lima. Para justificar-se perante João da Cunha, se este vencesse, tinha ele o seu procedimento com o parceiro; matara-o: não podia dar melhor prova de sua lealdade. Para aparecer diante do bandido com direito a ser livre, necessário lhe era algum fato de grande alcance, cuja responsabilidade pudesse atribuir a se próprio, no caso de saírem vencedores os estrangeiros, em nome de quem o cabra prometia essas grandes recompensas. Eis porque pusera água na pólvora.

Mas a inesperada generosidade do senhor tornara-o perplexo, confuso, sem saber o que fazer. O remorso, o arrependimento, o pesar, a dor abafada e temerosa o tiveram por um momento fora do uso das suas faculdades. Germano não era mau negro. Tinha sido até ao momento de se entender com ele o Pedro de Lima, muito dos seu senhores. Ainda depois nós o vimos como arrependido em conseqüência das reflexões que lhe fizera Marcelina. Desencabeçado, porém, em nome da liberdade, atirara-se naquele escabroso despenhadeiro a modo de fatalmente.

Vendo agora de perto os resultados de sua perfídia; conhecendo-se assassino, sem ter nunca pensado sê-lo; vendo seus senhores sujeitos aos duros azares que a vitoria dos contrários poderia trazer; vendo a ele próprio sem ação, sem meios para afastar todos aqueles horrores, vencer todas aquelas cruéis fatalidades, encher o grande abismo que ameaçava engoli-los, enfim reparar aquela imensa desgraça de seu natural irreparaval, só faltou ao negro completar o seu martírio mudo e imponderável, cortando com suas próprias mãos o fio da existência a que um momento se haviam rasgado horizontes cor de rosa, logo após convertidos em profundas e infernais escuridões. Ó liberdade, quanto pareceste dolorosa nesse transe ao pobre escravo, vitima da natural ambição de te possuir!

O estampido de uma nova descarga, abalando violentamente todos os espíritos, veio como reacender a perdida veemência do de Germano. Sua impetuosidade etiópica rebentou pujante, como a catadupa que jorra subitamente de solo frio e pedregoso.

O negro tivera uma inspiração grandiosa, digna da heroicidade romana. Pondo-a em pratica, reabilitava-se perante sua própria consciência e dava manifesto testemunho ao senhor-de-engenho da sua gratidão. ]- Senhor, senhor, - disse ele a João da Cunha, tendo na mão desembainhado o facão com que tirara a vida a Moçambique — a água molhou as armas e a pólvora, mas não molhou o facão de Germano. Ainda que estivesse molhado, era agora a ocasião de o enxugar nos corações dos mascates. Se senhor dá licença, vou esperar os inimigos da banda de fora com meus companheiros.

— Quantos estão aqui?

— Dezenove, respondeu Germano.

— Não, agora somos trinta, respondeu ao pé do sargento-mór o Roberto, que descera. Nesse momento nova descarga soou na sala do sobrado. João da Cunha, espantado, perguntou a Roberto:

— Quem é que ainda atira lá em cima? Não estão vocês todos cá embaixo?

De feito, todos os negros, que Roberto capitaneava, achavam-se com os outros no armazém.

— É a senhora d. Damiana, com as negras.

— Que loucura! E onde acharam munições? Onde acharam munições?

— Lá em cima. A senhora d. Damiana tinha muitas dúzias de cartuchos guardados. Cada um de nós tem já a patrona cheia.

— Graças, meu Deus! exclamaram os fidalgos. Mas então porque desceram, porque abandonaram seu posto? perguntou o sargento-mór.

— Foi ela que nos mandou para baixo. Ela disse que havia mais necessidade de nós cá embaixo onde nenhum tiro se disparava, do que lá em cima. E a senhora d. Damiana teve razão — disse Filipe Cavalcanti, que, tendo ido olhar pelos olhais, voltara correndo ao lugar onde estas coisas se passavam. Acudam todos. Os bandidos batem-nos à porta. Uma descarga agora contra eles deve ser de grande proveito para nós.

Correram todos os que tinham as armas carregadas. Um estampido imenso ecoou dentro do vasto armazém. No chão da rua caíram vários dos assaltantes — muitos feridos, alguns mortos. Era o primeiro sinal de vida que dava de se para o lado de fora o armazém.

Tomando por estratégia o silencio que até então ai reinara, recuaram os assaltantes amedrontados, mas não o fizeram tão prontamente que ficassem logo fora do alcance de novos tiros disparados do sobrado, desta vez mais certeiros do que das outras. Novas perdas contou a força invasora.

Quando cessou de todo o estrondo da ultima descarga, uma voz vibrou nos ares, forte e pujante, por entre as exclamações de dor dos feridos. Partia ela do cruzeiro e parecia dirigir-se aos do sobrado.

Mulheres ímpias, mulheres ímpias, que atirais contra a cruz do redentor, vede lá não venhais rasgar as veias sacrossantas daquele que em espirito está aqui pregado nela. Ergueram-se todas as vistas ao ponto donde tais palavras caiam.

Um vulto vestido de negro destacava sobre a larga peanha do cruzeiro. Estava de pé, o braço esquerdo passado em torno da haste pétrea, enquanto o direito destendido parecia acompanhar e completar a direção e o eco de sua voz. A cara branca e macilenta, o perfil negro e esguio, a voz fina e vibrante davam aquele vulto certa aparência majestosa e patética. O que sobressaia nele, cercando-o de uma como virtude misteriosa e fatal, era o animo terso, a temeridade a modo de barbara, a fé passiva e animal que o fizera levantar-se diante das balas inimigas, que em torno de se cortavam o fio de muitas vidas. Esse vulto, esse espectro, esse animo que excedia a medida humana, era um membro da Companhia-de-Jesus. Era o padre Henrique Celini. Fora mandado expressamente do Recife para pregar contra os nobres e a favor dos mercadores. Seu nome devia figurar depois na carta monitoria em que o bispo cometia ao Padre Manoel Lopes todas as necessárias faculdades a fim de que ‘notificasse certos clérigos para aparecerem em sua presença, e os corrigisse da escandalosa missão de andarem seduzindo os ânimos dos que os ouviam a seguirem por seleta e segura a nova doutrina sustentada pelos conjurados do Recife, com a qual agitaram o povo e deram tanto abalo a toda a terra.’

Apenas ouviu as primeiras palavras do jesuíta, o sargento-mór correu à sala superior. As balas paraibanas tinham deixado ai traços medonhos. Viam-se nas paredes, por entre superficiais escoriações, profundos ferimentos. Parte do estuque do teto estava por terra. Das rotulas algumas se mostravam despedaçadas, outras com imensos rombos por onde do pátio se via grande parte do que se fazia na sala. A frente da casa poder-se-ia comparar com a careta de um homem vesgo e desdentado.

D. Damiana, de pé por trás de uma das rotulas mais destruídas, olhava para o pregador por um dos rombos, no momento em que seu marido entrou na sala. As outras mulheres imitavam a senhora-de-engenho das outras janelas. Vinde ouvir, Sr. João da Cunha, vinde ouvir o pregador — disse ela. Ainda está falando ai essa sombra do inferno? Perguntou ele, lançando as vistas para o pátio, por cima do ombro da mulher. E rapidamente levou ao rosto o clavinote, como quem o queria desfechar sobre aquele novo sustentador da desordem e da destruição que aludiam a sua posição e o seu poder.

Mas no mesmo instante sentiu-se apertado entre dois braços fortes, roliços e deliciosos. Sentiu uma macia mão pegar-lhe do pulso e obrigá-lo a abaixar a arma. Ouviu uma voz terna, aflita, plangente pedir-lhe que não atirasse.

Não atireis, não atireis, Sr. João da Cunha, sobre o padre. Seria um grande pecado. Atreveis-vos a dizer-me estas palavras, senhora? exclamou o fidalgo. O que ali está não é um padre, um ministro de Deus. É o espirito de Satanás. É um perverso que deve cair atravessado por uma bala. Peço-vos também eu que não atireis, seu sargento-mór — disse-lhe outra voz ao pé de si. João da Cunha voltou-se e deu de face com Marcelina, que dava mostras de quem ia ajoelhar-se. Alongando os olhos algum tanto mais, viu todas as mulatas na mesma atitude, acusando sua fisionomia os mesmos sentimentos manifestados pela senhora-de-engenho e pela cabocla. A forte guarnição que até aquele momento mantivera nutrido e mortífero fogo sobre os invasores; desamparava as posições, abaixava as armas à voz de um padre; e quando ele trovejava contra elas próprias, corriam medrosas a impedir, com suplicas e prantos, que lhe tirassem a vida.

O jesuíta entretanto prosseguia assim a sua terrível jaculação.

— Atirastes sobre a cruz do redentor. Estais por isso condenadas às profundas dos infernos. Suspendei, suspendei, filha de Satanás, a vossa impiedade. A maldição de Deus pesará eternamente sobre vós, se ousardes levantar ainda armas infernais para o lado onde está o símbolo da fé e da religião católica. Batei nas faces, mulheres ímpias. Pedi misericórdia a Deus. Misericórdia! Misericórdia! Exclamaram irresistivelmente todas as mulheres presentes. E suas mãos ainda quentes dos canos das armas, flagelaram, a modo de impelidas por oculta e fatal força, as faces há pouco afogueadas, agora pálidas, senão lívidas.

Um dos traços característicos daqueles tempos era a fé cega no padre e na sua doutrina. O sentimento religioso confundia-se com a superstição e dela recebia a influencia que ainda em nossos dias alenta no lar do rico e do pobre, do pequeno e do grande, crenças deletérias e hábitos fatalissimos. D. Damiana, educada no seio da família católica, ao paladar da fé antiga — misto de sombra e luz, como a nuvem que no deserto guiava o povo de Israel — sentia-se fraca diante do sacerdote, não obstante ter-se mostrado um momento antes brava, senão temerária, diante das forças e das armas rebeldes, porque ela estava acostumada a ver no padre o representante de Deus na terra; a considerar suas palavras como sentenças do código divino.

Mas o sargento-mór, que já não pensava assim, ergueu o clavinote e disparou-o. A bala foi bater nos pés da cruz, e arrancar uma lasca de pedra. No mesmo instante uma fila de sangue vivo escorre do lugar onde a bala deixara profunda e alongada ferida. Viram todos o sangue descer pela pedra. Era o do padre Henrique, cujo corpo caíra traspassado aos pés do cruzeiro.

— Meu Deus, que horror! Exclamou d. Damiana. Estamos perdidos. Deus não há de ser mais por nós.

E inclinou sobre as mãos, pequenas de mais para ocultarem o horror que lhe vinha do intimo, o rosto desfigurado e abatido.

O senhor-de-engenho, como se sua própria obre tivesse excedido a medida da sua intenção, teve por momentos os olhos, pasmos e desvairados, sobre o traço vermelho que descrevera um como hieróglifo ou símbolo infernal na pedra secular do símbolo santo.

Nesse momento diziam da rua:

— O tiro, que o matou, veio do sobrado onde estão a mulher e as negras do malvado. Sim, sim, veio de cima; veio.

— Foi a escopeteira que atirou.

— Foi ela, foi ela. Morra a escopeteira!

— Morra, morra. Ao sobrado, ao sobrado! Gritaram os frades em torno do cadáver do jesuíta. Ao sobrado! respondeu a multidão.