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O Matuto/XXVII

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O sobrado foi fortemente atacado, mas á força exterior oppozeram os que estavam dentro nelle heroica resistencia, impossivel de descrever-se.

Nos ultimos momentos os negros dirigidos por Germano, tinham-se batido quaes féras. Promettêra-lhes o sargento-mór a liberdade a todos, e tanto bastou para que os guaribas lutassem como si foram leões.

Mas Germano devia ser punido da sua perfidia. Defendendo a facão e a chuço com os parceiros uma das portas que os invasores tinham logrado romper, elle cahira traspassado de golpes. Com o sangue e a vida resgátara a culpa.

Tanto que considerou perdida a esperança de salvação, o sargento-mór pediu a Filippe Cavalcanti e a Luiz Vidal que puzessem a salvo sua mulher.

— E porque não nos salvaremos todos? inquiriu um delles. Roberto póde resistir com os negros que restam, ainda alguns minutos. Teremos tempo de ganhar a cavallariça. Tomaremos os animaes e ficaremos fóra do alcance dos malvados.

— Desamparar a minha casa seria uma covardia, que eu nunca havia de perdoar-me, disse o sargento-mór. Ide vós. Correi, correi, senhores. Salvai-me Damiana, e não vos importeis comigo. Hei de resistir até á minha derradeira. Talvez que nesse entrementes chegue Cosme.

Mal tinha acabado estas palavras que poderiam considerar-se inspiradas pela intuição do momento final, quando as outras portas que ainda estavam de pé, cahiram debaixo do pezo dos machados e alavancas fortemente vibrados pela turba sedenta de vingança. Na primeira linha dos atacantes viam-se movendo os terriveis instrumentos differentes frades carmelitas, que assim entendiam dever resarcir a perda do jesuita.

A vista desta scena extrema, não havia mais que hesitar. Os dois fidalgos, dois sós, porque João da Cunha ficava embaixo, resistindo ainda, lutando sempre! atiraram-se de escada acima a fim de tentarem a fuga, com a senhora-de-engenho, pelos fundos do sobrado, unica communicação para uns casebres com frente para a Rua-do-meio. Mas qual não foi o seu espanto e tristeza quando se encontraram com as mucamas de d. Damiana que, espavoridas e chorosas, corriam de escada abaixo pedindo soccorro?

Uma malta, não inferior a cincoenta homens, entrando justamente pela parte da casa por onde Felippe e Luiz tencionavam escapar-se, tinha já tomado o andar superior.

— A senhora?! Onde está a senhora?! perguntaram os fidalgos, passados de impaciencia e afflicção indescriptivel.

— Não sei—responde uma das escravas.

— Fugiu, responde outra.

— Trancou-se por dentro em um quarto, —acrescenta a terceira.

— Negras do diabo! exclamou Luiz Vidal.

E atira-se com Felippe, desesperado, agoniado, na direcção que levava. A indignação e o vexame faiscavam-lhes dos olhos. Mas do topo da escada não passaram elles. Parte da multidão veiu ao seu encontro e embargou-lhes o caminho.

— Afastai-vos, miseraveis! gritou Luiz Vidal. Vou a salvar uma dona honrada. Para o lado, villões! Para o lado.

— A quem vás tu salvar, mazombo infame! perguntou-lhe o sujeito que vinha na frente da onda.

Os fidalgos reconheceram o que lhes dirigira este apodo acerbo. Era o Belchior.

— Será a escopeteira? perguntou outro sujeito em quem elles reconheceram Manoel Rodrigues—o taverneiro.

— A escopeteira! A escopeteira! articulou terceiro com ares de mofa. Está nas unhas do nosso commandante, o bravo Antonio Coelho.

Quem assim fallava era o alfaiate Manoel Gaudencio.

Coelho de feito, entrando no sobrado do momento em que de fóra ainda se pedia o coração, a cabeça de d. Damiana em paga da vida do frade, correu á senhora-de-engenho e disse:

— Senhora, senhora minha, si não vos entregais em minhas mãos, mata-vos a multidão!

E dizer-lhe estas palavras foi o mesmo que tomar pela mão a senhora-de-engenho, atravessar com ella por entre o seu proprio sequito, accomodando os mais exaltados e exigentes, com a promessa de que ella pagaria a sua culpa ás justiças, e desapparecer por onde havia entrado na casa do sargento-mór.

Irritados pelo pouco caso e mofa que mostravam os invasores, os fidalgos precipitam-se contra elles, resolutos a abrir caminho por cima de cadaveres. Seus golpes não conseguem mais do que ferir alguns mascates. Accende-se logo prompta e terrivel represalia. Tomam-n'os ás mãos, arrebatam-lhes as armas, descarregam sobre elles pancadas e cutiladas, assacam-lhes mil improperios.

Então já as duas multidões, pondo-se em communicação pela escada, formavam um só corpo, uma como serpente immensa, irrequieta, assanhada, que se esfregava pelas paredes, sacudia-se pelas salas, sumia-se pelos quartos a dentro, penetrando nos pontos mais secretos da casa do fidalgo, emquanto este desarmado, ferido, coberto de baldões, via-se com seus proprios escravos entre os primeiros cabos da força de Luiz Soares, e era apontado por elle, que não occultava a sua satisfação, como o seu primeiro tropheu.

De todas as que estavam na casa de João da Cunha, só uma pessoa pôde escapar-se com sua liberdade. Foi Marcellina, que corrêra, não por fugir, sinão por acompanhar d. Damiana, no momento em que com ella rompia Antonio Coelho por entre os seus partidarios.

— Hei de ir com ella até ao infinito! Dizia a cabocla correndo após a senhora-de-engenho. Não hei de perder de vista a pobre senhora. Meu Deus! Como tudo se mudou!

Mas a Coelho não fazia conta ser acompanhado por essa terrivel testemunha, e cêdo achou um meio de afastal-a de suas pizadas, por mais que a senhora-de-engenho pedisse depois que a deixasse passar. Para penetrar no quintal do sobrado, tinha Coelho feito caminho por um dos casebres que abriam sobre a Rua-do-meio. O mascate estugou os passos, atravessou o casebre, e, quando se achou com sua presa na rua, trancou pelo lado de fóra a porta. Marcellina não era mulher a quem semelhante obstaculo cortasse a carreira em que ia. Mas quando, desimpedida a sahida a poder de esforço e violencia, ella passou da outra banda, Coelho e d. Damiana tinham desapparecido.

— Pobre senhora! exclamou a cabocla em lagrimas. Que não fará com ella o barbaro?

Seriam então oito horas da manhã. O dia, risonho e esplendido, appareceu aos olhos da cabocla como a carranca de um malvado. A viração, que brincava com as folhas dos mamoeiros dos quintaes, soou a seus ouvidos como a ameaça de um assassino, o riso infernal de um demonio.

Marcellina tinha até certo ponto razão deixando formar-se em seu espirito esta illusão mentirosa. Era geral o destroço, lugubre o espectaculo que seus olhos descobriram na rua. Homens de feia catadura passavam carregados dos despojos da noite. Outros agora é que iam a colher os fructos que sabe a pilhagem descobrir no meio do desamparo, e por entre as lagrimas dos afflictos. Dos armazens, onde alguns senhores-de-engenho tinham recolhidos seus assucares, sahiam sujeitos maltrapilhos arrastando saccos e caixas, que deixavam pelas calçadas rastilhos brancos ou amarellados. Varios troços da força de Luiz Soares, tanto que fôra conhecida a victoria, espalhavam-se derribando as portas de novos armazens, invadindo as casas de familias affeiçoadas á nobreza que tinham fugido para pontos desconhecidos, e d'ahi tirando tudo o que tentava sua cubiça e podia aprazer a sua voracidade. Essas hordas passavam impunemente, sem que ninguem se atrevesse a ir ao seu encontro; porque os proprios grupos que na vespera se tinham organizado em favor dos nobres e durante a noite haviam sido em muitos pontos obstaculo ao saque, desfizera-os a noticia de que o sobrado do sargento-mór, que era como a praça-forte dos nobres, fôra tomado pelo partido contrario. A plebe tomára conta da villa e levava por diante a sua obra de destruição e rapina. Emfim o que Marcellina tinha diante dos olhos era o saque em toda sua hediondez—o saque, serpente de vasta guélla e insondavel estomago, que tudo engole, viveres, joias, moveis, roupas, e o que não lhe apraz ingerir, despedaça, destróe, inutiliza, como faz a enchente de um grande rio quando inunda um ponto habitado.

Marcellina vagou sem norte, tendo o juizo em quasi completa confusão, pelas ruas cheias de figuras sinistras, e de vozes e ruidos ingratos. Lembrou-se de Lourenço e de Cosme Bezerra. «Que será feito de meu filho?! Quem sabe o que não lhe terá acontecido? E seu Cosme que foi buscar gente e nunca mais appareceu?»

Estas interrogações tinham resposta facil. Cosme, quando vinha com os poucos trabalhadores e escravos de Jorge Cavalcanti, encontrou-se com o bando de Tunda-Cumbe—aquelle mesmo que saqueara o engenho—Bujary—, e foi batido. Voltou então, com Jorge Cavalcanti, derrotado e ferido. Mas ainda assim dirigira-se ao engenho Jacaré, a fim de ver si decidia o respectivo proprietario, até então indeciso, a tomar o partido da nobreza e a vir em auxilio da villa com sua fabrica e aggregados. Quanto a Lourenço, tendo preenchido a commissão que o levára ao Tanquinho, lembrou-se de correr ao engenho Bujary a fim de chamar a gente que ahi ficára. Mal sabia elle o negro drama de que tinha sido theatro a risonha propriedade de sargento-mór.

Andando sempre sem destino, ora para um lado, ora para o outro, por fugir das turbas revoltas que não cessava, em seu phrenesi, de botar a baixo portas, roubar o que lhe aprazia, despedaçar o que não fallava á sua ambição, quando Marcellina deu acordo de si estava no oitão de uma igreja. Era a da Misericordia. Seriam nove horas. No lugar, com ser deserto, passavam com intervallos, maltas de homens, vociferando, gritando, muitos delles já nos braços da embriaguez.

De repente ella viu vir correndo a marche-marche, pela Rua-das-porteiras, em procura do oitão da igreja, onde ella se sentára, uma longa fileira de soldados, os pés nús, as calças arregaçadas. Capitaneavam-os dous cavalleiros.

— Virgem Maria! exclamou ella tomada de novo horror. Aonde irá isso parar! Goyanna hoje arraza-se, acaba-se de uma vez.

Suppondo que era novo reforço de bandidos, correu a metter-se dentro de um fechado de arbustos que havia a um lado do oitão. A pobre mulher estava possuida de terror. Em todos via inimigos.

Abaixou-se quanto pôde, e nesta posição ficou immovel, quieta, rezando baixinho a Magnificat.

Quando estava nisso, passou por junto da moita o bando sempre a correr. Não fallavam. Pareciam mudos. Todos corriam apressados. Adiante ia um official e atraz outro, acompanhado de um paisano. Estes tres vinham a cavallo.

Subito uma voz soou aos ouvidos da cabocla.

— Veja, seu ajudante. Olhe como corre o povo sôlto lá embaixo.

Estas palavras tinham sido ditas pelo paisano ao militar, apontando o que as dissera para o largo das Portas-de-Roma.

Ellas produziram em Marcellina o effeito de um choque electrico. Tinha reconhecido a voz de Francisco.

Marcellina não se pôde ter mais occulta um só instante. Correu de dentro dos arbustos, gritando:

— Francisco, Francisco, foi Nossa-senhora que te botou por aqui.

Não se póde descrever o prazer que tomou o matuto. Saltar do cavallo abaixo e correr, louco, delirante ao encontro de sua mulher foram actos que elle praticou a modo de impellido por uma mola magica. Apertou-a entre os braços extasiado. Por cima de suas barbas que iam pintando, mas ainda negras, desceram-lhe duas lagrimas nitentes. Sobre seus labios crestados perpassou sorriso de ineffavel contentamento.

— Marcellina, meu amor, que andas fazendo por aqui só, escondida? Estás com mêdo dos mascates, já sei. Ah! Marcellina, Deus se lembrou de mim. Vim fugindo dos facinorosos. Os mascates estão senhores de toda a villa. Seu sargento-mór, tenho que já o mataram. As forças de Luiz Soares atacaram o sobrado e levaram tudo a ferro e a fogo. Nós resistimos, mas por fim não podemos mais, e demos os braços.

— Já sei de tudo, Marcellina. Lá embaixo soubemos logo do que havia. Esta tropa, que estás vendo, vem de Itamaracá por ordem do governo de Olinda para acabar com os mascates. Eu vinha fóra de mim, minha mulher. Nem tu sabes o que fizeram os ladrões, ao passarem pelo Cajueiro.

— Que fizeram eles?

— Queimaram a nossa casa, mulher, a nossa casinha, que nunca lhes fez mal.

— A nossa casinha! Que dizes tu, Francisco? Pois esses endemoniados chegaram a queimar a nossa moradinha de casa? Oh meu Deus! Cada um havia de ter sua parte nessa desgraça geral?! Até o nosso suor havia de pagar pelos males dos outros?! Mas isso não ha de ficar assim. Deus ha de castigar esses malvados, essas féras malfazejas!

— E que novas me dás tu de Lourenço?

— Anda ahi mesmo pela villa com seu Cosme lutando com os mascates. Mas a minha casa, a minha casinha, tão bonitinha! Tudo queimado e destruido! Ah! malvados do inferno! A luz ha de faltar a vocês na hora da morte.

— E as lagrimas arrazaram os olhos de Marcellina, que tinha nas faces pallidez mortal, nos olhos a expressão de profunda e entranhável dôr.

— Não chores, mulher. Foi-se uma, faz-se outra casa.

— E a minha caixa teria ardido tambem?

— Qual caixa?

— A nossa caixa, aquella onde tu guardavas o dinheiro.

— Si não a tiraste antes, ardeu tambem. Tudo lá estava em cinzas.

— Ah Lourenço, lá se foi a tua fortuna. Era na caixa que eu tinha guardado o papel que me deu seu padre Antonio no momento da despedida.

— Que papel era esse?

— Vamos ao Cajueiro, Francisco. Talvez ainda se possa salvar alguma coisa.

— Tem paciencia. Agora não é possivel o que queres. Vou aqui servindo de guia á tropa. Mas se queres ir, vai. Aqui te deixo o cavallo, coitado! que já não pode andar de enfadado. Vê como vás, Marcellina. Si vires alguem que te possa offender, mette-te no mato. Eu hei de dar comtigo onde estiveres.

— Vou direitinho á minha casa. Mas antes que me esqueça, quero dizer-te uma coisa: Vê si podes descobrir sinha d. Damiana que seu Antonio Coelho prendeu e levou comsigo para entregar á justiça. Pobre senhora!

Francisco alcançou logo adiante a tropa, emquanto Marcellina, tendo arregaçado as saias, saltára sobre a cangalha e pozéra o cavallo para traz.

A tropa que Francisco tinha guiado não era sinão uma parte das forças commandadas pelo ajudante-de-tenente.

Tinha este planejado, antes de entrar na villa, formar um como cêrco que avançasse das ruas de fóra para as de dentro, afim de apertar e suffocar a insurreição de modo que ella não tivesse por onde escapar.

Obedecendo a este intuito Gil Ribeiro dividiu as forças em duas columnas, e ficando com a mais forte, entregou o commando da outra ao ajudante Filippe Bandeira com o alferes Carlos Teixeira. Elle fez a sua entrada pelo lado do occidente, e um quarto de hora depois entrava no Pateo-do-Carmo pelo lado do rio. Ao mesmo tempo a columna commandada pelo ajudante Filippe Bandeira, e habilmente encaminhada por Francisco, desembocava ahi pelo Beco-do-limoeiro. As forças inimigas estavam ainda no Pateo-do-Carmo, tendo á sua frente Luiz Soares, Gonçalo Ferreira, e os mais importantes mascates seus parciaes.

João da Cunha, Luiz Vidal e Filippe Cavalcanti, eram conduzidos á cadeia por Jeronymo Paes no momento em que as duas columnas desembocaram no pateo. Elles deviam ficar alli ocupando o lugar dos criminosos que a multidão ainda não tinha podido soltar, em consequencia da tenaz resistencia de Antonio Rabello. A demais nobreza menos Cosme Bezerra, Jorge Cavalcanti e Manoel de Lacerda que já se achavam de volta novamente á villa para bater os invasores, tinha fugido para o mato. Todavia Gil encontrou já uma nova reacção principiada contra os amotinados. Grande numero de cidadãos pacificos, indignados com a scena do saque, tinham-se armado, e começavam a bater os que continuavam a pratical-o. De sorte que, alguns pontos por onde passaram as duas columnas, as receberam com vivas demonstrações de contentamento.

Emfim seriam dez horas da manhã quando o ajudante-de-tenente atacou os revoltosos. O povo é vário, como as ondas. Não foi preciso muito para que operando-se o quasi fatal reviramento logo se declarasse pelos vencidos.

Rompeu vivissimo fogo de uma parte sobre a outra. Mas os matutos bisonhos, cansados, e quasi famintos que constituiam as forças de Luiz Soares, não podiam resistir por muito tempo ás forças frescas, adestradas no manejo das armas e impacientes por darem tremenda lição, que trazia Gil.

Luiz Soares, em pouco tempo convencendo-se de que a sua estrella attingia o occaso, tratou da retirada.

Esta operou-se por dentro do proprio convento do Carmo. Os frades ainda desta vez com as armas nas mãos, protegeram a causa dos estrangeiros.

Mas não foi pequeno o numero dos mortos e feridos que deixavam os que fugiam com medo de sua propria sombra.

No mais acceso do combate, Francisco corrêra a soltar os tres fidalgos que eram conduzidos por um troço dirigido por Jeronymo Paes e seus tres filhos.

— Eu nunca matei ninguem, meus senhores—disse Francisco ao bando. Mas para salvar esses homens, mato e morro; faço tudo, contanto que lhes dê a liberdade.

Miguel ouvindo estas palavras decisivas, partiu contra elle com o facão, e Victor imitou-o. A esse momento estavam já com o matuto algumas pessoas de Goyanna, que descarregaram terriveis golpes sobre os aggressores. Aproveitando a confusão, Francisco consegue chegar-se aos prisioneiros e cortar-lhes as cordas que lhes prendiam os pulsos. A um dá o facão, a outro a arma de fogo. Então elles investem terrivelmente. Pareciam féras soltas das jaulas. Em poucos instantes Jeronymo cahe como morto; tinha sido alvo de golpes tremendos a que não pôde resistir. Os filhos, porém, ainda que feridos levantam o procurador do povo (Jeronymo Paes dava-se esta denominação) e fogem com elle. João da Cunha quer perseguil-os, mas de repente pára, como si o mundo lhe desabára aos pés tanto que ouviu estas vozes de Francisco:

— Seu sargento-mór, os mascates estão vencidos. Mas o principal para nós está ainda por fazer. Sinha d. Damiana...

— E que é feito da senhora d. Damiana?

— Que é feito? Está no poder do principal dos mascates.

— Quem? Antonio Coelho?

— Sim, senhor.

— Oh! Não me digas isto, Francisco. E eu ainda aqui. Vamos, corramos. Mas aonde iremos? Para onde correremos?!

— Para a casa do mascate.

Correram os fidalgos e o matuto como loucos pela rua a fóra. João da Cunha levava o inferno no coração. Aquella triste nova dava-lhe a esgotar as fezes do calix de amargura que bebia desde a vespera. Em toda a sua vida nunca sentira tão profunda, tão desumana dor penetrar-lhe a alma.

Todas as portas, tanto as inferiores como as superiores estavam hermeticamente fechadas. Do lado de dentro o silencio era profundo. Tudo indicava que na casa não havia viva alma.

A João da Cunha, perdido em cogitações e incertezas, só faltava desesperar.

— Meu Deus, meu Deus, que hei de fazer? Onde irei descobrir o infame? Onde irei achar minha infeliz mulher?

Estiveram um momento curtindo silenciosos de pé, a modo de privados do exercicio da razão aquella angustia sem nome.

Subito uma detonação que parecia partir do interior do sobrado, veiu resoar do lado de fora.

— Estão ahi, estão dentro. Matou-a o malvado, exclamou o sargento-mór. Adivinho tudo. Quiz violental-a, ella resistiu e elle matou-a. Mas eu o matarei tambem. Matarei o villão.

Lividos, como cadaveres, atiraram-se á porta que lhes pareceu menos resistente. A coices de arcabuz, conseguem mettel-a dentro. Voam de escadas acima como quatro sombras, quatro espectros phantasticos. A claridade do dia chegava ao interior da casa como luz crepuscular; mas aos olhos delles o que se apresentava eram trevas profundas. Francisco foi o primeiro que abriu uma das portas, e João da Cunha o que se atirou para o interior da casa, que não conhecia. O cheiro da polvora e a nuvem de fumo ainda ondulante, indicaram a direcção que elles deviam tomar. Chegam emfim ao dormitorio do negociante. Uma voz enfraquecida fez ouvir então estas palavras:

— Não me matem, não me matem.

Aos pés do leito havia um vulto sentado e outro estendido.

— Por Nosso-Senhor-Jesus-Christo, não acabem comigo.

— Quem és tu, miseravel? Perguntou o sargento-mór.

Era Bartholomeu o barcaceiro.

Contou tudo. Tinha estado na vespera com o negociante. Tinha concertado esperar por elle na Borboleta; mas tendo visto os dobrões que o negociante inadvertidamente lhe mostrara projectou logo apossar-se delles furtivamente. Esteve na barcaça até a hora em que a sorte pareceu ser pelas armas dos mascates; mas tanto que soube da entrada da tropa do governo, correu ao sobrado, calculando que Coelho seria morto, ou ao menos preso. Chegando ahi, fechou-se por dentro para afastar qualquer suspeita, e forçou a burra. Quando a tampa cedeu á violencia, um tiro partio de dentro, e o ferio acima do ventre. Era o tiro que elles tinham ouvido. Em vão procurou o dinheiro que o tinha tentado. O que encontrou foi uma pistola presa ao cofre por occulto apparelho, ali posto intencionalmente para a fazer disparar sobre quem o violasse.

— E a Borboleta?

— Deve de estar ainda no porto á minha espera. Os quatro amigos atiraram-se immediatamente fóra do aposento e ganharam a rua em violenta carreira para o porto.