O Piolho Viajante/XLI
Agora tenho para peras, para descrever a balbúrdia da casa desta nova cabeça. Uma nau em temporal não tem tanta agitação. Um dos negociantes grossos não tem tanto em que cuidar. Ali não havia livros, porque nada se lançava em deve, tudo era na de haver. A cabeça em que eu estava teria os seus sessenta anos e tinha mais de sessenta mil crimes. Uma irmã, que era sócia de portas adentro, sempre andava a lereque. Todo o dia empregava em levar umas a casa deste e daquele e ir buscar outras a casa daquele e deste. Também era compradora. Quando alguma saía das casas e trazia algum vintém, ela é quem ia distribuir-lho. Comprava-lhe a saia de baeta e a de chita, os sapatos, o lenço, enfim, arranjava-a e tinha gosto para isso. Seis moedas alheias na sua mão eram o mesmo que duas na de seu dono pelo modo com que as sabia distribuir. Dinheiro na sua mão era como caldo de galinha em estômago de doente que, ainda que o lance fora, sempre as paredes ficam untadas. E, então, que jeito que ela tinha para educar uma moça para ir servir? Aquela que tomasse os seus conselhos à risca, não durava mês e meio em casa de ninguém. Qual mês e meio! Nem oito dias e dou-lhe muito. Porque o negócio desta mulher consistia em que o género passasse a muitas mãos. Havia criada que em oito dias tinha estado em doze casas e ela, por cada uma, tinha recebido o seu cruzado-novo pela corretagem. Não lhe importava se se conservavam ou não se conservavam. Disso lavava ela as mãos! E tinha uma lábia, que podia andar pedindo para a caridade. Ora outra coisa: os conselhos que dava em casa não eram os mesmos para fora: — Filha, servir não é vida, vê se achas alguém que te ampare antes que sejas velha. Olha, agora vais para esta casa mas não sejas tola. Não estejas lá muitos dias. Se não houver coisa que faça conta ou de que tires algum proveito, põe-te ao fresco. Ao menos, enquanto a gente anda de casa em casa, trabalha menos e come melhor. Os amos, ao princípio, não são tão impertinentes e a minha porta, para ti, sempre há-de estar aberta. Não sejas escrupulosa. Olha, minha filha, coisa de suposição não te digo eu que tires, mas bagatelas não te atemorizem. Com o que tiveres é que te hás-de achar nas precisões. Muitas vezes são uns caloteiros e bom é que a paga já cá esteja. Nada de matar com trabalho. Cada um trabalha o que pode. É bom, logo, pô-los em bom costume. Nada de amassar. Que amassem eles e mais quem os embalou. Cria-se uma dor no peito e, se a gente adoece, põem-na no meio da rua e dizem, sem febre nenhuma, que e o mesmo que com muita fresquidão: Eu não tenho obrigação de lhe curar as mazelas. Oh!, não te esqueça também de tomar sentido nos costumes da casa e de lhes conhecer a vida a fundo que isto, às vezes, não parecendo nada, deixa mais que dez anos de serviço. Olha lá a Brígida que, por tomar o meu conselho, sabia onde o amo escondia os contrabandos. Foi denunciá-lo e ganhou alguns duzentos e tantos mil réis honradamente. Bom é saber dos podres alheios. A Rosália ganhou o outro dia seis mil e quatrocentos réis, por ir jurar no desquite daquele Fulano abóbora, aonde ela esteve, e sabia toda a arenga que nem que ela fosse a suplicada. Outra coisa também te recomendo, que não te esqueças de meter-te com vizinhas porque, assim, sabe-se melhor de uns e de outros. Há por aí moças tão tolas que servem um e dois anos numa casa e saem dela sem saber dizer duas palavras juntas a respeito da casa onde estiveram. Deus te livre de tal, filha. Antes não viver. Há coisa que divirta mais, quando a gente se junta com as companheiras, do que ter e saber que dizer das casas donde saiu? Que o amo era velhaco, que a ama lhe fazia os seus gualdripérios, que os filhos eram ladrões, que ali o que havia bom apenas eram as criadas. Isto é que consola e é o que distingue umas das outras.
Esta boa mestra depois de ter ensinado assim uma criada, saía com ela para a levar a uma casa para onde tinha a encomenda e, depois de ter recebido o crúzio, punha-se-lhe a dar conselhos por outro método e vinha a ser:
— Ora, filha, já que acertaste com tão boa casa, conserva-te. O andar de casa em casa bota a perder o abrigo às criadas, ganham muito má fama e nunca tomam amor às suas amas. Não sejas preguiçosa, que a preguiça é mãe dos vícios. O ser fiel e honrada é o crisol de uma boa criada, qual eu te julgo. Porque, se assim não fosses, não te havia eu de trazer para casa destes senhores a quem sou obrigada. Olha que esta casa não é aí como as outras por onde tu tens andado. Isto é outra qualidade de casa. Faze a vontade à senhora e sê muito séria com os teus amos. Assim como te estimares, assim te estimarão. Não dês confiança a moços e vive em boa paz com as tuas companheiras. E olha que se saíres daqui não me tornes a procurar, que a minha porta, para ti, fechou-se. Isso não! Lá me não hás-de tu pôr o pé, ainda que eu soubesse que perdia em ti milhões. Pobre sou eu, mas ao menos sou agradecida. Não! Que esta casa muitas e muitas vezes me tem dado, em lugar de um cruzado-novo, oito tostões, e a gente não há-de ser ingrata. Toma tu os meus conselhos que não te hás-de perder. Ainda que eu seja má, tomara que todo o mundo fosse bom, quanto mais aquelas pessoas que eu inculco. Tira, tira a capa, dobra o lenço, perde a vergonha e vai para dentro.
Apenas a criada virava costas, soltava outra perlenga para a ama, dizendo-lhe:
— Olhe, minha Senhora, não sabe que criada lhe trouxe. Tem moça para toda a vida. É muito cristã, muito asseada, muito séria. De tudo tem muito. Saiu agora desta última casa, onde lhe queriam como a uma filha, porque a andava desinquietando um filho da casa. E ela foi uma rapariga tão calada que nunca quis dizer porque saía, por mais que lho perguntassem. O que respondia é que não podia com o trabalho. Olhe, desta espero eu que me dê os agradecimentos. Não se encontra uma dúzia desta qualidade de raparigas. Destas já há poucas, tudo está perdido. O outro dia levei uma rapariga a uma casa, perfeita como um sol, era a primeira vez que servia e fez coisas que até eu tenho vergonha de dizer. E o mais é que perdi aquela casa, que era uma das melhores, não desfazendo na de vossa mercê. Nunca me deram menos de dois pintos e então, de quando em quando, a mão-cheia de arroz, o lenço de farinha-de-pau, porque o marido andava sempre lá por esses mares de Cristo. E que fartura de casa! Tinham uma despensa que nem a melhor loja de mercearia e a dona da casa morria por mim. Tem-me mandado mais de quinhentos recados, mas eu não tenho cara com que possa lá ir. E mais, eu não sou culpada. Mas não está na minha mão.
E assim, com estas perlengas gerais, chupava muito bem das amas e criadas e daí a dois dias tinha a moça em casa outra vez.
Agora vamos à confusão de nomes. Saía uma criada de uma casa onde se chamava Andresa, amanhã ia para outra chamar-se Casimira. Outras vezes dizia que era donzela uma que era casada e a outra, que era donzela, chamava-lhe casada. Nem ela mesma sabia quais eram as casadas, nem quais eram as donzelas.
A tal corretora também algumas vezes se metia em seu casamento. Mas nisso era muito infeliz. No meu tempo nenhum se concluiu. Nunca passaram de ajustes. Era tão ladina que, quando alguma criada se desacomodava e lhe vinha para casa, ao ver-lhe o fato, conhecia o que ela trazia furtado e, se podia, (e quase sempre podia) furtava-lho também. Pois se a pobre trazia dinheiro! O jantar daquele dia era à sua custa e sempre havia um brinde que dizia: — A saúde de quem te há-de meter numa boa casa!
Veio ali uma vez uma rapariga de dezasseis anos chorando porque lhe tinha sucedido uma história. Pôs-se também a chorar com ela e pareciam duas Madalenas. Teve-a oito dias em casa, vendeu-lhe um cordão que ela trazia, para a sustentar, e pô-la a servir numa casa que, dizia ela, era um paraíso. Enfim, criada que lhe caía em casa era ovelha que saía tosquiada a morrer com frio. Muitas já tinham zanga com ela, mas não tinham outro remédio. Era uma mulher bem estabelecida neste negócio, tinha muito conhecimento e era tão procurada como se fosse uma pessoa de muita dependência. Eu não estava mal, porque sempre gostei de barulho. E demais a cabeça tinha bom provimento e a casa era do meu génio, porque ali todos os dias se estavam ouvindo novidades. Quis, porém, a desgraça que lhe entrasse a nascer um leicenço na nuca e a pobre mulher passava frios, e febres, que cheguei a ter dó dela. Mandou-se chamar um vizinho, que era curioso, e fazia as suas curas pelo amor de Deus. Veio o dito e observou que a tal borbulha ainda não estava no estado de se poder comer, porque, dizia ele, estava muito verde. Até que veio um dia que a achou madura e deu-lhe a sua lancetada de graça. E eu, que sempre tive medo de ferro, não esperei que ele lha espremesse, fui-me passando para o tal curioso de Cirurgia, e nele acerto a carapuça XLII.