O Piolho Viajante/XXIV
Têm vossas mercês visto que eu tenho andado suficientemente por más cabeças. Mas como esta deste jogador, nenhuma. Esta era a quinta-essência das más cabeças. Não tinha tom nem som, nem esquerda nem direita, não se levava nem por bem nem por mal. Era uma confusão. Ninguém se entendia com ele, senão algum usurário. E ele não se entendia senão com algum que jogava.
O jogo era o seu comer, a sua moça, a sua quinta, o seu tudo. Não comia a tempo, não dormia a horas. Não cuidava em coisa nenhuma que lhe fosse útil. A sua família constava de um moço, um cão e eu.
Os dois primeiros, quando ele perdia, ficavam muito contentes. Mas eu é que o pagava porque entrava num frenesi e numa comichão que parecia doido. Eu estava sempre num contínuo susto, pois se me encontrava com alguma unha, tinha azar certo, apesar de não ser eu o que jogava. As avessas, o moço e o cão, que estavam alerta e apenas o viam entrar (lá por essa alta noite, já se sabe), fitavam os olhos nele, para conhecerem se tinha perdido. Que, a ser assim, tinham folgança certa que constava chegar o moço e perguntar-lhe. — Vossa mercê quer cear? Quero uma bala, era a resposta. Belo, dizia o moço consigo, temos ceia à fidalga. — Então quer que se esfrie ou que de novo acenda o lume para estar pronta quando vossa mercê quiser? — Não me deixarás, besta? Come-a, vai-te deitar e deixa-me. — Quer que lhe descalce as botas? — Não te irás com a breca diante de mim?
Ia-se o moço e o cão e mamavam a ceia do tolo. Daí a bocado tornava a saltar na cabeça com tanta força que eu julgava que a queria arrancar. Fechava-se a cena com um passo mui galante. Ia para o pé da cama, abria-a, chamava o cão (que lhe chamavam Noruega por ter vindo da América). Vinha o cão, acenava-lhe ele que saltasse para dentro da cama. Saltava o tal Noruega, abafava-o muito bem dizendo-lhe dorme, dorme. — Mereces mais dormir aí do que eu. Tu tens muito mais juízo, muito mais propósito, és muito mais honrado. Eu sou um desavergonhado, um tratante, um ridículo. Anda, dorme, dorme onde eu devia dormir. E isto afagando sempre o cão por cima da roupa e ele ia-se deitar sobre uns trapos onde o cão costumava dormir alguma noite em que ele não perdia. Eis aqui a função que tínhamos quase todas as noites, de que eu nada gostava pelos incómodos que passava. E porque até tinha dó dele. Porque é preciso advertir aos meus Leitores que, ainda que eu seja Piolho sou dotado de um bom coração, e ainda que fosse criado (sendo hoje do que vivo) a chuchar sangue, chucho quanto me basta para o meu sustento e não sou como muitos que por aí há, — e mais não são piolhos nem barbeiros —, que levam coiro e cabelo. Acordava de noite o meu pedaço de asno suspirando e sempre com a mão na cabeça e daí entrava a falar só consigo: — É muito, é muito! Dezoito azares sucessivos fiz com os dados na mão. Fui apontar à banca, pilhei dezasseis valetes na direita e aproveitei todos! Mas eu é que sou o tolo. Se sigo as damas, cairiam oito na esquerda e levava a banca à glória. Eu é que não sei jogar, não tenho que me queixar da minha infelicidade. Que tem a sorte com ser eu um asno? Encho-lhe o chorrilho e quando ele fazia azares, retirava o dinheiro. Eu não só sou infeliz, mas até venturoso. Não aproveito a ocasião. Que culpa têm os dados e as cartas disso? Mas não importa, eu tomarei emenda. Não hei-de perder mais que uma peça até quinto azar. Não hei-de arredar vintém. E sortes, ainda que façam um cento, não me hão-de levar mais que uma de três vinténs cada.
Eis aqui como o diabo, ou para melhor dizer, o vício, o enganava de novo. Levantava-se, acendia a luz, punha-se à banca com o copo na mão a jogar consigo só. Então estava galante. Sacudia o copo, botava os dados e dizia:
— Seis e cinco? Sorte. Não me pilha mais de três vinténs, não senhor. Cinco e dois? Outra de três. Seis e az? Mais três. Seis e cinco? Irra, é muito botar de sortes. Vai uma de doze. Quatro e três? É forte coisa, até ensaiando-me a brincar. Isto é sina, isto é fado, isto é uma bala que me atravesse.
Tornava a deitar-se o endemoninhado, mas sem sossego. Volta para aqui, mexidela para acolá, cabeça te valha e, ultimamente, apenas luzia o buraco, ei-lo levantado, e logo eu, o moço e o cão entravam numa roda-viva. Fazia duas e três cartas a mandar buscar dinheiro, que às vezes todas iam também para a direita, porque não vinha nem vintém. Apenas traziam em resposta, boas palavras como v. gr.:
Meu rico amigo do coração. Quanto ao dito custa-me não poder remeter-lhe o que me pede mas morreu-me minha avó ontem, para cujo enterro foi preciso pedir dinheiro hoje.
Muitas vezes tal avó não havia, nem morreu e quando morresse ia enterrar ao cemitério. Outra trazia em resposta:
Cordial amigo. Perdi ontem trinta peças de resto, que devo infalivelmente dar hoje, quando já não tenho nem a quem pregar uma, razão por que não posso passar por esta que Vossa Senhoria me quer pregar.
Tendo começado por cordial, acaba por Cicuta. Outro, que é mais verdadeiro, responde:
Como quer que lhe remeta mais dinheiro, se vossa mercê me tem faltado a tudo o que comigo tem ajustado? Mas que muito é que faltasse a mim, se a si mesmo já vai faltando.
Depois destas e doutras iguais respostas que são recebidas com dois bofetões no moço, dois pontapés no cão e quatro murros em mim, entra a passear a sua meia hora, esfregando a testa, como Médico que quer receitar, quando o doente está em perigo. É outra vez chamado o moço mas já com muito melhor modo do que fora despedido, apesar de que ele tem muitas dúvidas na vinda pelas tornas do costume. Mas, enfim, resolve-se, chega-se e depois de algumas palavras entre os dois, como:
— Vossa mercê para que me deu? Que culpa tenho eu do outro não lhe mandar dinheiro?
— Tens razão, anda cá, tem paciência, não sabia o que fazia &c. Vai-me a casa daquele esfolador, que empresta dinheiro sobre trastes, — dando, ao mesmo tempo, conselhos que se não botem a perder!, para que se empenham!, vossas mercês, para que gastam mais do que têm!, e outras orações, juntando também aquela de levar oito tostões por cada moeda contanto que o traste não esteja lá mais de um mês, e valha o tresdobro! —, leva-lhe este relógio de ouro que te empreste duas peças por oito dias, no fim dos quais, a não ires tirá-lo, o poderá vender mandando-me o resto, que há-de ser pouco ou nenhum. Que ele guarda-me tanto respeito que poucas vezes tem comigo demasias!
Parte o moço em continente, não se demora nada, porque o tal amigo é prontíssimo em dar dez sobre o valor de trinta, como já disse. Eis o meu jogador já de outro ar. Já não se lembra senão que vai ganhar e divertir-se. Dá oito vinténs ao moço para as despesas da casa porque ele nisso é muito económico e torna para o fadário muitas vezes sem almoçar. Os amigos estão à espera dele para o meterem na atafona. Tapam-lhe os olhos, põem-lhe a cabeçada e azorrague em cima e o toleirão sem perceber, nem doer-lhe. Se eu tivesse forças, eu, eu é que havia de lhe dar com um bom chicote. Enfim, acabada a tarefa torna para casa com a limpeza da véspera. Torna o moço a mamar a ceia, o cão a dormir na cama e o maruto com as mãos em cima de mim e comichão dobrada! Que tal é a vida para um pobre piolho que não é jogador nem tem vícios, nem outra coisa de que viva, nem outras quintas senão o pobre casco de uma cabeça e de uma cabeça tal como esta, que não sabe às quantas anda. Pois já lá vai o relógio mas, apesar disto tudo, nada de emenda, graças a Deus! Entra-se-lhe a meter na cabeça que tinha muita roupa branca e chama o moço para que lhe vá vender uma dúzia de camisas ainda em folha, para acudir àquele grande vexame em que está, de não ter dinheiro para o jogo. Que lá para comer e pagar dívidas, isso não tem maior pressa. O caso é acudir ao indispensável. O moço entra a grunhir, que não conhece adelo!, que será preciso fiador! O amo enraivece-se e o princípio da venda começa por dois bofetões. O moço larga a roupa, começa a fugir, bota a gritar, diz que lhe pague, e este que lhe pegue na roupa para lha ir vender. Por fim, voltam às pazes e vai o fato à rua e daí à feira da ladra onde é vendido por menos da avaliação, atendendo a não haver fiador e pode ser furtado. O que justamente é, pois que ainda não está pago e furtar por força ou por estratagema, creio eu que tudo é furtar, ainda que eu nisto não posso falar nada, pois não há tradição que nenhum da minha raça morresse enforcado por ladrão. E chuchar sangue não sei que seja crime, que eu não mato ninguém para lho tirar e tenho visto muitos matarem um porco, com todo o vagar, para melhor lhe sacarem o sangue só porque gostam de chouriços. Numa palavra, cada um no que foi criado. O cavalo come cevada, o pombo ervilhaca, o passarinho, alpista; o piolho chucha sangue &c. E uma vez que se vive é preciso que se sustente, contanto que eu, para me sustentar melhor, não seja preciso que morram seis à fome, não senhor. O seu a seu dono, vivamos todos, cada um com o que lhe pertence. E sempre eu a embaraçar-me com coisas que não vêm ao caso! Tomara perder este maldito costume! Mas tarde será, tomei esta manha de minha mãe que, para dizer "fulano é mau" dizia primeiro mal do seu Avô e seguia até encalhar nele.
Enfim, vinha o dinheiro do fato que tendo custado cinco moedas ficava reduzido a seis mil réis. O que são os tempos! Comia-se alguma coisa e, untando-se de novo o meu jogador com esta pequena parcela, transformava-se em lobisomem e tornava para o fado que muito pouco tempo durava. Pois já se sabe que, em gastando o azeite, apaga-se a candeia por maior que seja a torcida. Tal sucedia ao meu fulano, que ainda que a vontade de jogar fosse um Gigante, o dinheiro era um Pigmeu. Tornava a casa e, então, a sua maior pena era já não ter ao menos com que comprasse uma corda para se enforcar, de que eu seria, com boa vontade, o carrasco. Porque matar um jogador é o mesmo que matar um lobo e até se lhe devia dar quatro mil réis pela cabeça. Sim senhor, o vício do jogo é o vício que abrange em si os outros vícios. E eu o provo. O ser ladrão é mau, mas é ser ladrão só; ser matador ainda é pior, mas bem pode ser um homem matador e não ser capaz de ser ladrão; ser mentiroso, ninguém se fia nele e a perda é só sua; ser bêbado é um vício alegre e nessa ocasião se podem fazer mil coisas boas. Um bêbado entusiasma-se às vezes num herói, umas vezes é liberal, outras vezes valente, algumas Poeta e quase sempre engraçado &c., mas o jogador é um animal que começa logo por fazer mal a si. Gasta o que tem, pede o que não pode pagar, furta quando se lhe acabam esses dois meios e está pronto para toda a qualidade de má acção só para ter dinheiro e encher o vício, o vício que reúne em si todos os outros. Que tal o divertimento? Chicote e mais chicote. E eu outra vez a encalhar no diabo da murmuração. Ora protesto que não me hei-de chegar mais à costa, hei-de me pôr ao largo que nem sequer hei-de avistar terra.
Este pobre jogador chegou ao ponto de andar descalço. Ocupava-se em fazer alguns recados e quando esses produziam algum vintém, imediatamente o ia jogar. Eu andava tão desconsolado que, contra minha vontade, passei para a cabeça de um Galego, de uns poucos que viviam na mesma casa com o tal meu tareco em cuja cabeça eu era o único morador, pois até os mesmos piolhos o tinham deixado. Uma noite de luar em que dormiam, fiz esta passagem e nela verão a