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O Piolho Viajante/XXIII

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O meu gotoso não passava mal, tomando por desculpa a gota, ainda que não lhe passasse dos pés. A única coisa com que a curava era com o cabelo do mesmo cão. Gota e mais gota. A gota que tomava por cima, como era mais que a gota que tinha por baixo, fazia aquela peso sobre esta e não a deixava subir para cima daquela. Isto é uma razão clara, que qualquer a entende, por isso não me canso mais em explicá-la. Ali pelo mês de Março é quando o tosquiavam mais as dores, que na verdade eram insofríveis. Dava às vezes cada berro que parecia um boi no matadouro. Eu, na verdade, tinha dó dele e ele também o tinha de si. Sempre estava de dieta, não comia senão carne e peixe. Tinha o ofício de Inquiridor, porque tinha dois criados a quem sempre estava perguntando quanto se passava na vizinhança. E dizia ele que era a única coisa com que disfarçava as dores (era remédio simpático). Pessoa que o ia visitar, vinha cansado da inquirição que ele lhe fazia. Muitos desejavam já de boa vontade que a gota lhe chegasse à língua, mas disso havia poucas esperanças, porque a de baixo, como já disse, estava embaraçada de subir, e a que ia pela boca, ia com tanta velocidade e jeito que nem à língua chegava.

Tinha também uma fábrica de curtir e curtia dores como ninguém. Mas tinha pouca extracção. Uma Parteira é quem lhe comprava algumas lá para as suas freguesas quando as precisavam, e alguém que comprava para algum presente. Mas elas para isso não prestavam. Eram como as bichas más, que não pegam. Que a pegarem as tais dores, não havia ninguém a fazer melhor negócio do que ele. Que gosto não seria poder a gente enviar uma dor a um amigo ou a qualquer pessoa a quem fosse obrigado? Um estupor que fosse, quanto mais uma dor! Eu não sentia moléstia nenhuma, vivia muito à minha vontade. Estava como caseiro de quinta que é o verdadeiro dono. O meu gotoso não lhe importava a cabeça para nada e mesmo para nada lhe servia. Ele tinha outras coisas de muito mais interesse e cuidado. Um negócio em que ele andava metido, se o conseguisse tinha feito a sua fortuna. Era o de fazer pastéis de enxúndia de galinha e tinha morto, por amor disto, mais de mil e já tinha reduzido a enxúndia a nata. Andava vendo se fazia das penas manteiga e já as tinha também reduzido a leite. A coisa estava por um triz.

Era um grande Químico. Tinha feito de arféloa camurça e mandado vir, por sua conta, cem pipas de melaço para apanhar moscas, para cujo fim compôs um tratadinho do modo de as apanhar sem meter prego nem estopa. Também se não fora as dores que ele passava, era um dos homens mais cheios de coisas novas e boas. Já sabia o modo de pegar a gota em pano, que é das melhores coisas que têm aparecido neste género. Em ele morrendo, há-de ter muito valor, é mesmo um original. Mas de nada lhe serviu tanta habilidade. Uma noite foi atacado tão fortemente que o julguei morto. Ficou de cama muito tempo. Vinham alguns amigos diverti-lo, fazer-lhe companhia e jogar com ele.

Entre estes vinha um rapaz muito bem-feito e muito bem desempenado. Era-lhe obrigado e, diziam as más-línguas, havia de ser seu herdeiro. Mas era um jogador acérrimo, não podia estar sem jogar. O gotoso dava-lhe imensos conselhos e ele fazia-lhe mil protestos que todos lhe esqueciam mal que dali saía. Uma noite, indo cear com ele, chamou-o ao pé de si e entrou a tratá-lo de filho (que muitas línguas, como já disse, diziam que sim) e o amor que lhe mostrava dava-o bem a entender. Mas isso é questão, fosse ou não, sua alma, sua palma. Quem boa cama fizer, nela se deitará, nem isso tem coisa nenhuma com o que eu quero dizer. Se não chora o penitente, para que chora Fr. Tomás? E suponhamos que era seu filho? Deixá-lo ser. Que temos nós com isso ou que nos importa? Gastámos alguma coisa com a criação ou somos seus padrinhos para tomar conta na criação? Olhe que é forte história! Há gente que em tudo se mete. E a mãe, diziam não tinha maus bigodes. Mas, enfim, tivesse ou não tivesse, seja ou não seja seu filho, sei que o pôs ao pé da cama. E eu não estava para ficar com a gota porque, já disse, diziam que se pegava. E demais eu nunca tinha tido dores, nem de cabeça, e tinha andado sempre com as minhas pernas sem inchação. Safei-me para a cabeça do filho... torno com o filho, vejam! Que me importa a mim se é filho ou não! Safei-me para a cabeça do tal mocetão e pus-lhe a minha