Saltar para o conteúdo

O Piolho Viajante/XXXVIII

Wikisource, a biblioteca livre

Caí na cabeça de uma velha que tinha um V de menos e um V de mais. Faltava-lhe virtude e sobejava-lhe vaidade. Julgava-se formosa, bem-feita, eloquente e dizia, e até teimava, que ainda não era muito velha, que era entre moça. Entrava nas contradanças, botava o seu mote, namorava suficientemente, notava o seu escrito admiravelmente, vestia-se no último gosto da moda, quero dizer, andava quase nua. Tinha a constante Florinda, em peso, toda na cabeça, e justamente na cabeça era o que tinha. As raparigas podiam-na fazer prender por ladra, sem escrúpulo nenhum, porque ela, com todo o descaramento, roubava-lhes o que só à mocidade é consentido. Mas se fora só isso! Eram muitas mais as prendas! Era mentirosa no superlativo. Levantava um testemunho que era uma suspensão. Fina como um alambre, sabia a vida, crimes e milagres de todas as velhas e moças do seu bairro que nem um escrivão do crime a quem, de ofício, lhe pertence. Aquela sua conhecida, que casasse, era preciso ter cuidado em si para ter os filhos a tempo competente, que ela tinha uma folhinha de luas que um parteiro astrólogo, e seu parente muito chegado, lhe tinha deixado e não lhe escapavam estas bagatelas.

Que extremos tão opostos são estes das velhas! As de boa conduta (de que há muitas), as de probidade, quanto servem para a instrução da mocidade que mal conhece a carreira do mundo! Elas, com o seu exemplo, encaminham as moças à virtude, com os seus conselhos fazem-nas felizes, com as suas histórias cheias de graça e moral, formam-lhes o coração. As avessas, aquelas de uma qualidade como esta em cuja cabeça eu estou. Esta, com a sua vaidade, fazia-as vaidosas. Com os seus costumes, relaxava-lhes o coração. E então o demo da velha até era uma má cadela de caça: não sabia trazer à mão, comia-a. Eu, umas poucas de vezes, me vi desesperado na cabeça da tal minha senhora. E então que trabalho para lhe dar uma mordidela no casco. Era tão duro, por velho, que parecia um calo.

Tinha uma sobrinha, a quem ela tinha educado e ainda vivia debaixo da sua tutela, que era um pasmo, obra daquela tia. No meu tempo tinha ela dois amantes, um por sua conta e outro por conta da tia, um a quem a rapariga queria bem e outro a quem a tia queria que ela quisesse. Mas a velha sabia de ambos e andava sempre a ralhar com a rapariga, que tomasse outro. No meu tempo, dizia ela, cheguei a ter uma dúzia e todos andavam contentes e satisfeitos e mais, nunca fui namoradeira, com bem o digamos. Olha lá, não me vissem de dia à janela. Em sendo alta noite é que eu fazia as minhas. Uma porta de um quintal que tínhamos, e um burro que servia a casa, são duas pessoas a quem nunca pagarei as obrigações que lhes devo. A porta, porque por ela é que eu falava e introduzia os suplicantes. E o burro, porque rinchava quando eu a abria. 0 demo da porta rangia que parecia que cantava. Eis aqui como eu fazia as coisas. E não falar de janela abaixo, que o vê e sabe todo o mundo e dizem muitas vezes o que não é! Tive noite que falava a dois ao mesmo tempo, sem saber um do outro. As raparigas, agora, são umas tolas. Passam o seu tempo a chorar e a emagrecer e não lucram nada.

Tive muito casamento. Se não casei, não foi por minha culpa. Foi porque nenhum deles quis, mas da minha diligência não tenho que me queixar. Um esteve quase caindo. Desviou-se, porque lhe disseram que eu era muito habilidosa e que sabia pentear muito bem. A pena que eu tive, foi ele não me cair na mão, mas ao menos tive o gosto: casou com uma que o trazia pelo cabresto. Era pena não saber pentear.

Olha, rapariga, faze o que quiseres mas se não tomares os meus conselhos vais perdida. Fica certa de que contra a experiência não há nada.

Nunca entregues o coração a um homem. Nunca lhe fales verdade. Nunca lhe digas os teus sentimentos e saca-lhe a camisa, se puderes. Todos os que te arrastarem a asa, corta-lhes as guias. O mesmo a todos, amor a nenhum. Em sendo pobre, foge dele como de peste. Tu não sabes o que é um pobre a querer bem. É um carrapato. Como não tem que fazer nem que gastar, quer uma mulher pelo beiço. Ciúmes fervem, amor sobeja, destemperos não faltam, queixas, choros, suspiros &c. E uma rapariga sem prática do mundo, cai facilmente nestas corriolas. O desvanecimento de ser amada parece-lhe moeda corrente e ela é falsa. Não deixa senão consumações. Nada, minha sobrinha, amor, agrados e lágrimas de uma mulher, são ouro. Quem não tem ouro para trocar por este, fica sem ele. Ao menos, deve ficar, ainda que tudo isto nos custe pouco a fingir. Estes são os nossos cabedais. Se os damos de graça, a paga que temos no fim são desprezos. Por isso te aconselho e digo que dois amantes é muito pouco. O menos, o menos, sete. Um, que não seja tolo, para nos instruir. Outro, tolo, para nos aturar. Um, que tenha graça, para nos divertir. Outro, valente, para nos desagravar. Um, bem-feito, para o vermos. Outro, corcovado, para nos rirmos. E um que toque o coração, mas muito ao de leve. Que todos sejam ricos, já se sabe. Nunca te metas com vizinhos que é quem bota a perder as raparigas. Nada! Sempre gente de longe. Outra coisa tenho eu a dizer-te... Se casares... Mas não! Esta guardo eu para mim. O bom mestre sempre guarda o melhor golpe para si. Quem sabe ainda o que me sucederá. E vocês são umas tolas e umas chocalheiras que contam tudo às outras.

Assim falava a minha velha que, na verdade, não tinha pevide na língua. E a sobrinha tomava a lição à risca e era o retrato da Senhora sua Tia.

Um dia que eu estava bem descuidado e mesmo sem tenção de sair tão cedo daquela cabeça, sucedeu um caso que fez com que eu passasse para a cabeça de uma rapariga que teria dezasseis anos, linda como o Sol e com um juízo claro como o mesmo. Morava ali perto um homem que tinha ficado por testamenteiro de outro e que dava suas esmolas por conta do defunto. Pediu-se-lhe um dote para uma donzela, mas era preciso, para ele o dar, informar-se primeiro da vida e costumes da que queria ser dotada. A dita, sim, era vizinha, mas o tal era um homem que não se metia senão consigo e não sabia nada da vizinhança. Um criado, que havia em casa, e que via o amo naquela diligência, aconselhou-o a que chamasse a velha em cuja cabeça eu morava, e que ela lhe daria conta exacta do que ele pretendia saber. Porquanto ela sabia o feito e o por fazer.

Chamou-se a velha que pontualmente depôs o que sabia mas que, no entanto, por se meter, quis falar às Senhoras que eram a mulher e a filha do dono da casa. Fez-lhes muita festa, houve muita conversa e, ou fosse força de falar, ou tivesse que suceder, deu na minha velha um desmaio que a tivemos por morta. Deitaram-lhe fumaças, borrifaram-lhe muito a cabeça e a cara, até que tornou a si mas, achando a cabeça tão molhada, quis enxuga-Ia, para o que pediu um pente e uma borla com pós. A filha da casa, que era uma rapariga de muito bom coração, foi-lhe buscar tudo mas não consentiu que ela o fizesse. E ela mesmo, por sua mão, a penteou e lhe enxugou o cabelo. Eu, encantado de ver uma menina tão linda e de tão bom modo, passei para ela e é esta a Carapuça.