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O Reino de Kiato/Capítulo 13

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CAPITULO XIII
O PARQUE DA MORTE


PATERSON havia corrido toda a capital, visto muita cousa interessante, original, mas faltava-lhe ainda uma surpreza.

Uma manhã, passeava pelo lado occidental da cidade, quando a rua desembocou em uma praça. Na parede da esquina á direita, a certa altura, uma placa embutida com esta inscripção:

Parque da morte.

— Exquisito titulo, pensou.

Era o primeiro distico que via. Percorrera a capital inteira e não encontrára uma rua ou praça com nome proprio; todas tinham numero. Estranha a arborisação, Cyprestes e chorões plantados em renques formavam alamedas, ruas espaçosas, que iam ao fim do parque.

Era día alto, o sol resplendia, afogando em luz aquellas plantas, em cuja ramaria o vento esfusiava, arrancando accordes de uma cadencia funebre.

Não se sabia qual mais triste, si o cypreste perfilado, com os ramos desfiados pelo vento, si o chorão com os galhos pendidos em funeral.

A estancia era triste.

Paterson foi entrando.

— Onde estariam os tumulos?

A casaria dos quatro lados da praça toda vasia, algumas ameaçavam ruina. Qual a causa de tamanho abandono? Não podia atinar.

Cemiterio?

Não podia ser.

Nem um transeunte a quem falasse.

Aventurou-se por uma das alamedas, parou a meio, estupefacto, deante de uma forca.

— Uma forca!...

E a machina de matar, ali perfilada havia seculos, continuava em seu mutismo de cousa. Paterson aproximou-se mais do instrumento abjecto, mais ignobil do que a guilhotina: pregada ao madeiro, em perfeito estado de conservação, apenas perfurada em diversas alturas pelo caruncho, uma placa com esta inscripção em alto relevo:

«Conservada para relembrar a maldade humana, seu falso criterio, e sua falta de senso. A morte nunca corrigiu, nunca exemplificou. Nos paizes onde existe a pena de morte, o crime não desappareceu. Este local ficou sendo um campo santo, abandonado pelos vivos, desde que o kiatense comprehendeu, purificando-se, que o homem não tem o direito de matar. Elevai, visitante, o vosso pensamento ao além, onde pairam os espiritos dos que aqui foram assassinados em nome da justiça».

Paterson sahiu arrepiado. Conservar aquelle odioso e vil instrumento, como uma pagina de historia antiga, só esta gente!

Chegando ao hotel, trocava idéas com Robert.

Contou-lhe o hoteleiro as homenagens que todos os annos prestava a população da cidade aos que haviam sido estrangulados ali. Não prestavam cultos aos mortos porque elles não morriam, acabavam-se. Tinham piedadde dos assassinados em nome da lei. Não sabendo onde repousavam os restos delles, fizeram da forca um lugar sagrado, aonde todos os annos iam em romaria levar-lhes o preito de sua lembrança e condemnação aos que os mataram.

Era uma enorme romaria. Iam em grande recolhimento, e, ao pé da forca, cada um lançava a sua offerenda, um ramalhete de flores. O que mais edificava naquella homenagem era o respeito com que todos se portavam. Que differença da romaria á morada dos mortos no dia de finados, nos paizes civilisados do resto do mundo! Que bachanal! O luto pesado dos visitantes — um escarneo aos mortos. Nem numa feira ha tanta irreverencia. Os mausoléos serviam de mesa ás vitualhas e vinhos do festim macabro!

Paterson, ainda impressionado com o parque da morte, dizia comsigo:

— Conservado o Forum, devia ter sido conservada, como foi, a forca. Esta é a consequencia d’aquelle. O assassino é uma consciencia que se desvairou ao serviço do mal. A justiça são consciencias desvairadas, que, sem responsabilidade, mandam matar. O assassino tem atenuantes; a justiça não.

O maior crime de 93 foi o assassinato de Lavoiser, sabio que valia mais que milhares de homens como Marat, seu assassino. A Revolução Franceza maculou esse delicto, infamou-a até a consumação dos seculos. Os beneficios que fez a sociedade não a remiram do attentado contra a humanidade, privando a sciencia de tão grande obreiro.

O assassino e a justiça a culpa os irmana. Ambos são réos, ambos mataram.

A ignobil machina era conservada como symbolo da decadencia de seus antepassados e um protesto de reprovação á lei, que em nome da justiça manda matar.

Porque a civilização não supprimiu a guilhotina? Porque a civilisação só aperfeiçoa o viver material do homem. A moral estaciona. As artes, as seiencias progridem, dando á humanidade mais conforto, mas deixando inculta a sua moral. Que é a guerra sinão a perversão da moral no grão mais elevado? A ultima guerra que foi sínão um formidavel ataque de epilepsia que convulsionou os paizes mais cultos do mundo? A sciencia deu-lhe armas pavorosas, como os gazes asphixiantes, os submarinos, os aeroplanos e um sem numero de machinas de matar.

No homem de bôa moral, a consciencia não se desvaira. Emquanto o homem matar seu semelhante, está muito longe da civilisação, que é a fraternidade humana. A sciencia encurtou as distancias, conquistou o espaço, viajou no fundo dos mares, alliviou-nos dores do corpo, deu-nos a palavra de um outro continente, tornou faceis e commodos os nossos meios de transporte, mas nada fez em pról da humanidade, porque não cultivou a sua moral.

O homem, emquanto destruir o seu semelhante, será um barbaro. O rei, o presidente da republica, o tuchaua, os dirigentes de homens, emfim, não têm o direito de attentar contra a liberdade de consciencia de seus subditos. Emquanto não lhes for defeso esse crime, o homem não será livre. Emquanto os governos obrigarem o cidadão a exercitar-se na arte de matar, a humanidade não progredirá.

Minha moral diz: — «não matarás». O governo obriga-me a entrar para o exercito, a fazer um curso, uma aprendizagem, cujo unico fim é aperfeiçoar-me na arte de destruir. A idéa de matar horrorisa-me. Tenho de aprender a manejar as armas para um dia satisfazer, talvez, aos caprichos do chefe da nação, bater-me, tirar a vida de homens de outras terras, de outros climas, que nunca me offenderam, ou de meus proprios irmãos. E’ horrivel. Si resisto, prendem-me, arrastam-me para o carcere, infligemme torturas, emquanto minha mulher e filhos padecem fome, porque lhes arrancaram o arrimo, o chefe da familia, porque este obedeceu á sua moral, seguiu os ditames de sua consciencia.

Os dirigentes de homens justificam as classes armadas para a defeza da patria, em caso de agressão estrangeira. Os grandes exercitos, pelo contrario, incitam a guerra. Um homem desarmado soffre melhor as offensas.

Tem-se uma idéa muito falsa de patriotismo. Quem ama a sua patria quer vel-a na paz, procura por todos os meios evitar os desastres de uma guerra, embora tenha a certeza da victoria. Governo patriotico é aquelle que conjura as crises internacionaes pela arbitragem, pela diplomacia e nunca pelas armas. A prova tivemos na ultima guerra. A Allemanha quiz esmagar a França, porque tinha um formidavel exercito. Entraram na lucta quasi todas as nações do mundo. Qual o resultado? Morreram milhões de homens e as nações que se bateram ficaram quasi anniquiladas, e tão cedo não se levantarão, E’ o caso de dizer: não houve vencidos nem vencedores.

O Kaiser e o tuchaua têm a mesma moral: matam os seus semelhantes.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.