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O Reino de Kiato/Capítulo 7

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CAPITULO VII
AGRONOMIA


O povo de Kiato, depois da decadencia, tornou-se agronomaniaco. A terra daria ao homem a vida do corpo e a paz do espirito. A humanidade voltaria ás primeiras idades, quando o genero humano, dividido em pequenos nucleos, tirava da terra o seu sustento e reinara a fraternidade humana.

O egoismo e a ambição, os maiores factores da perversão moral, não mais existiam porque o homem tinha o corpo são. Foi o egoismo que armou o braço do primeiro criminoso. O sangue de um innocente manchou a terra, ainda virgem, ainda pura, e desde esse dia a sua fertilidade, que era espontanea e assombrosa, desappareceu, só produzindo fructos quando regada pelo suor do homem.

Os habitantes de Kiato haviam conquistado a soberania de sua liberdade depois de mais de um seculo de reacção contra os usos e costumes resultantes da intoxicação alcoolica e syphilitica. Restaurada a saude e a moral, começou uma vida nova, o socialismo emfim.

As classes armadas não tendo mais razão de ser, forram dissolvidas. A marinha de guerra ficou reduzida a poucos vasos, para o policiamento das costas. O serviço militar fôra obrigatorio. O cidadão fazia o tirocinio em tres annos. Agora em vez de exercitar-se nas armas, exercitava-se nos instrumentos agricolas. Todo o cidadão era obrigado a cursar a escola de agronomia durante tres annos. A terra é que trazia a fraternidade humana depois do expurgo das taras, das diatheses que infectam a humanidade. O mais difficil problema social, a harmonia entre o proletario e o capitalista, havia resolvido a enxada.

Paterson, desejoso de conhecer a utilissima escola, foi visital-a. Era num dos suburbios da cidade. Num enorme pavilhão fazia-se o curso. O alumno, para ser admittido, apresentava attestado de francez, inglez, allemão, italiano, physica, chimica mineral e organica, historia natural e mathematica, principios de geologia e mineralogia

Paterson assistiu a uma aula em que o professor dissertava sobre adubos, seu valor e necessidade nos terrenos esfalfados. Explicou a composição chimica dos animaes e mineraes, sua applicação de accordo com as especies cultivadas.

Finda a prelecção, que durou uma hora, a turma de duzentos e tantos rapazes, acompanhou-o ao campo de demonstração, alguns hectares de terra cobertos de uma vegetação luxuriante, que attestava o poder do trabalho a serviço da sciencia.

Os estudantes começaram a labuta. Paterson admirava-se da perfeição dos instrumentos, alguns dos quaes eram aperfeiçoamentos, modificações dos já conhecidos. Outros eram modernos, descobertos em Kiato. Todo o trabalho era feito por machinas. O homem guiava-as apenas: Os arados, as machinas de semear, de mondar, de colher, movidas pela electricidade. Aquella gente era electrica...

Paterson commovia-se deante de tão edificante espectaculo. Ali não se notavam castas, nem hierarchias. Dois filhos do rei, um de dezoito, outro de vinte annos, de blusa e gorro, guiavam as charruas, ao lado de seus subditos.

Era a glorificação da terra pelo trabalho, a terra que, creada para todos, o egoismo havia conquistado, oppondo o direito da força á força do direito.

A Biblia, no seu rebuscado symbolismo, de cuja interpretação se originou o schisma, é a historia das primeiras agremiações humanas. Abel é um symbolo, como o matador Caim. Caim é a encarnação do egoismo. O homem, embrutecido pelo alcool, apossou-se da terra, dividiu-a, retalhou-a em lotes, não cabendo aos fracos uma nesga sequer.

Paterson assistia, naquelle rincão affastado do mundo, á restituição da terra aos seus primitivos donos, isto é, a todo o genero humano. O senhorio territorial, figura execranda das sociedades corrompidas, havia desapparecido com a regeneração do homem. A terra do Reino fora dividida em hectares e distribuida entre os que queriam lavrar, de accordo com o numero de pessoas da familia.

Paterson sahiu a percorrer o campo. As especies vegetaes pareciam outras: acompanhavam o vigor, a saude do cultivador. Tinha á vista um trigal, que o encantava pelo luxo da vegetação. Não vira jamais verde tão vivo nem amarello tão louro nas espigas. Os grãos eram enormes, não havia uma semente chocha, mal vingada.

Passou ao pomar. Dispunham-se as arvores, em alamedas, tão symetricamente plantadas e cuidadas, que se via a rua vegetal de uma extremidade a outra. Fructas pendiam dos galhos, perfumando o ambiente.

Um pouco adeante, a grande horta, alguns hectares de terreno cobertos por um extenso tapete de verduras. Havia toda a casta de hortaliças. A variedade de couves era extraordinaria: desde a couve anã, que crescia vinte centimetros, até á couve gigante que media um metro de altura... E tambem alfaces, rabanetes, cenouras, pepinos, aspargos, repolhos, um sem numero de variedades. Paterson conhecia o sabor e a maciez das hortaliças de Kiato. Nunca havia comido couves nem alfaces tão saborosas e tenras. Pela cultura e pela selecção, conseguia-se ali aperfeiçoar as variedades inferiores.

Passou ao jardim. Si a horta era uma belleza, o jardim era um primor. Emerito botanico, Paterson estava encantado. Não era a grande quantidade de especies o que admirava, eram as modificações, conseguidas em especies delle conhecidas.

Roseira que noutra parte dava rosas de petalas cor de vinho, dava-as ali de corollas coloridas, com gradações de tons até o rosicler.

Farto de tantas bellezas, frenetico admirador daquella gente, que representava a perfeição humana, Paterson voltou ao hotel.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.