O Saci (8ª edição)/2
II
O sitio de dona Benta
O sitio de dona Benta era no jeito de todas as velhas fazendas do Brasil de dantes. Porque ha tambem o Brasil de hoje, muito mais sem graça. Havia a casa, uma espaçosa casa muito fresca, caiada de branco, tendo á frente um terreiro que tia Nastacia conservava muito bem varridinho. A casa tinha varanda com trepadeiras e vasos de avenca. Do lado esquerdo ficava a horta e do lado direito o jardim. O pomar ficava atrás.
Que jardim simpatico, aquele! Só flores do tempo de dantes, umas flores que já não se encontram hoje nos jardins das cidades. Flores do tempo da mocidade de dona Benta, já fora da moda. Esporinhas, maravilhas, alecrim, suspiros, orelha-de-macaco, dama-entre-verdes e até cravo-de-defunto, que é a flor mais triste que ha. Narizinho vivia querendo arrancar dos canteiros essa flor amarela, de cheiro enjoativo, só porque se chamava cravo-de-defunto. Mas dona Benta não consentia.
— Deixe o coitado aí. Que culpa tem de ser feio? Os feios tambem têm o direito de viver.
— Mas alem de feio é de defunto, vóvó, dizia a menina fazendo careta.
— Ora, ora! replicava dona Benta. Todos nós não vamos virar defuntos tambem, um dia?
E o cravo-de-defunto ia ficando.
O pomar, sim, não tinha uma só arvore que Narizinho quisesse arrancar. Muito velho, mais velho ainda do que dona Benta, pois havia sido plantado pelo pai dela. Havia quanto pé de fruta ha no mundo, desde a jaca, que é a maior de todas, até a marianeira, que é menorzinha. Cambucás, mangas, pitanga, jaboticaba, grumixama, cabeluda, sapoti... tudo, tudo!
As arvores, porém, eram tão idosas e tão cobertas de musgos e parasitas que os vizinhos caçoavam. Costumavam dizer: “O pomar de dona Benta está tão velho que qualquer dia começa a caducar. A jaqueira pega a dar pitangas e as pitangueiras pegam a dar jacas”. Mas dona Benta não fazia caso. Não admitia que se cortasse uma só arvore, porque cada uma delas lhe lembrava uma porção de coisas do seu tempo de mocidade.
E tinha razão, porque era impossivel haver no mundo um lugar mais sossegado, mais cheio de passarinhos, mais agradavel da gente passear nele e ficar ali, na sombra duma arvore, pensando na vida e deixando o tempo correr.
Não sei se contei que no terreiro havia um mastro de S. João. Pois havia, sim. Um mastro que Pedrinho renovava todos os anos, quando vinha pelas ferias de Junho. Ele mesmo cortava o pau no mato, ele mesmo descascava-o e pintava-o inteirinho, desenhando no roliço da madeira rodelas vermelhas, amarelas, azues e verdes. Para o alto do mastro ia, cada ano, uma bandeira de S. João novinha em folha, que durava até o tempo das chuvas, lá por Setembro. Dessa epoca em diante a bandeira começava a desbotar, para, por fim, ficar reduzida a farrapos que brincavam com o vento.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.