O Sertanejo/I/X
Era por formosa manhã de dezembro, a terceira que raiava depois da chegada do fazendeiro á sua casa da Oiticica.
Assomando sôbre o capitel da floresta erguida no oriente como o portico do deserto, o sol coroado da magnificencia tropical dardejava o olhar brilhante e magestoso pela terra, que se toucara de toda a sua louçania para receber no thalamo da creação ao rei da luz.
Na umbria da serra e da espessa matta que a cinge, a fazenda ainda permanece no crepusculo da alvorada, quando ja o dia fulgura pelas varzeas e campinas d'alem.
Mas ao fluxo da luz, que sobe e a inunda como a corrente de um rio caudal, aquella zona ensombrada vai rapidamente immergindo-se nos esplendores da aurora.
Com a irradiação da manhã derrama-se a aura que anima a solidão. Dessa terra combusta por longo e abrazado estio, ja reçumam os viços que annunciam a poderosa expansão de sua fecundidade.
Na noite seguinte á chegada, como previra Arnaldo, tinha cahido a primeira chuva. Desde então, com pequenos intervallos, passavam os aguaceiros do natal que são os repiquetes do inverno.
Embora falhem muitas vezes essas promessas, o sertanejo, como os animaes e toda a natureza que o cerca, recebe sempre com intenso prazer as alviçaras de bom anno.
A primavera do Brazil, desconhecida na maior parte do seu territorio, cuja natureza nunca em estação alguma do anno despe a verde tunica, só existe nessas regiões, onde a vegetação dorme como nos climas da zona fria. Lá a hibernação do gelo ; no sertão a estuação do sol.
A primeira gota d'agua que cahe das nuvens é para as varzeas cearenses como o primeiro raio do sol nos valles cobertos de neve : é o beijo de amor trocado entro o céo e a terra, o santo hymeneo do verbo creador com a Heva sempre virem sempre virgem e sempre mãi.
Nunca vi o despertar da natureza depois da hibernação. Não creio, porém, que seja mais encantador e para admirar-se do que a primavera do sertão. Aqui a transição se opera com tal energia que assemelha-se de certo modo á mutação.
Aquela varzea que ontem ao escurecer afigurava-se aos vossos olhos o leito nú, pulverento e negro de um vasto incendio, bastou o borraceiro da noite antecedente para cobri-la esta manhã da virescencia subtil, que já veste a campina como uma gaze de esmeralda.
Não ha em cada uma das raizes do capim secco e triturado mais do que um brôto imperceptivel ; porém rebentam os gomos com tanto luxo e abundancia que, á guisa dos tenues liços de uma teia cambiante, formam esse gaio matiz da primavera.
Aquella arvore tambem que ainda hontem parecia um tronco morto já tem um aspecto vivaz. Pelos gravetos seccos pulula a seiva fecunda á borbulhar nos renovos para amanhã desabrochar em rama frondosa.
Que prodigios ostenta a força creadora desta terra depois de sua longa incubação ! Della póde se dizer sem tropo que vê-se rebentar do solo o grelo e crescer, assistindo-se ao trabalho da germinação como á um processo da industria humana.
Nas abas da serra onde as arvores tinham conservado a verdura, sentia-se passar pela floresta um estremecimento como de prazer. A briza da manhã enredando-se pela ramagem rociada não mais arranca os murmurios plangentes da matta crestada. Agora o crepitar das folhas é doce e argentino, como um harpejo sorridente.
Não eram sómente as mattas, os silvaçaes e as varzeas que se arreiavam com as primeiras galas do inverno. O espaço, até ali mudo e ermo na limpidez de seu azul diaphano, começava por igual á povoar-se dos passaros, que durante a secca se refugiam nas serras e emigram para climas amenos.
Já se ouviam grazinar as maracanãs entre os leques sussurrantes da carnaúba e repercutirem os gritos compassados do cancan, saltando pela relva. O primeiro casal de marrecas, naquelle instante chegado das margens de Parnaguá, a centenas de leguoas, banhava-se nas aguas de um alagado produzido pela chuva.
D. Flor, retida em casa no primeiro dia pela fadiga da jornada e no segundo pelos chuvisqueiros que tinham encharcado o terreiro, aproveitou a bonita manhã para rever os sitios da infância depois de longa ausencia.
Neste momento desce esquiva e ligeira os degraus da varanda e desapparece por entre o arvoredo do pomar, volvendo um olhar na direção da casa, para certificar-se que não se apercebiam de sua ausencia.
Não entrava nesse cuidado da donzella o receio de uma falta. A ingenua altivez de sua indole não a deixaria nunca praticar acto que ella julgasse reprehensivel, nem recorrer á disfarces para esconder suas intenções.
O que a fizera esgueirar-se pelo quintal não passava de uma phantasia de moça. Quando sahia á passeiar pela fazenda era costume abalar-se meia casa para ter o contentamento e a fortuna de acompanhar a doninha.
Não havia aggregada ou escrava que não disputasse a honra de abrir-lhe o caminho, leva-la á sua palhoça, para offerecer-lhe o presente que lá tinha guardado. As mais moças brigavam á quem lhe daria a fructa mais bonita ou lhe descobriria o ninho de beija-flor. Depois vinham as crias que tambem porfiavam nas cabriolas e algazarras com que festejassem a marcha triunphal.
Em outras ocasiões D. Flor deleitava-se no meio dessa procissão, que lhe formava uma corte de princeza daquelles sitios ; nessa manhã desejou passeiar só, talvez que para estar mais presente nos sitios queridos que ia percorrer, e dos quaes andara separada tantos mezes.
Trajava a donzella um roupão de sarja, guarnecido de fraldelim pardo, que debuxava a galba palpitante de seu talhe gracioso. A fimbria ao de leve arregaçada por causa da orvalhada, mostrava o pé de menina calçado por um borzeguim preto com o salto escarlate.
Trazia, ainda na mão, uma capelina de soprilho com rocais da mesma fazenda e franjas de alvas rendas de Guimarãens. Logo que chegou ao quintal cingiu a cabeça com esse toucado, que abrigava-lhe a cutis mimosa dos raios do sol, moldurando-lhe o rosto gentil, como uma grande magnolia silvestre de cuja corolla surgisse sua belleza.
A donzella, deixando o pomar, deu volta ao redor do edificio e foi sahir proxima ao casalinho da Justa, para onde se encaminhou.
A sertaneja estava neste momento sentada na soleira da porta, e acabava de ordenhar suas cabras. Perto della via-se um alguidar onde ia deitando a conta de cada uma. As chuvas das ultimas noites haviam enchido as tetas, que já difficilmente apojavam com a secca.
Quando a Justa viu á poucos passos sua filha de criação, levantou-se com impeto de contentamento e abriu os braços de modo á receber Flor, que lancçou-se-lhe ao collo. Para estreita-la ao peito, a sertaneja, que não tivera tempo de se desvencilhar do tarro seguro na mão esquerda, nem de lavar a mão direita humida de leite, cruzou os pulsos, affastando-os de modo á não tocar a menina.
Este movimento aproximou da espádua de D. Flor o pucaro no qual a donzella, enquanto deixava-se abraçar, punha os labios e bebia á rir uns goles de leite. Justa, á quem os brincos da filha querida faziam mais menina que ella, prestou-se á travessura e prolongou-a para gozar da ventura de conservar a moça por mais tempo abraçada.
— Que bom leite, mamãi Justa ! E que saudades que eu tinha delle ! O de lá é aguado, não se parece com o nosso ! De qual é ? Da Cambraia ?
— Não, meus carinhos, é da Mochincha. A Cambraia está amojada.
Esqueceu tudo quanto tinha que fazer a boa sertaneja, no alvoroto de receber a filha. Não havia no casalinho maior festa, desde a Circuncisão até S. Silvestre, do que lhe trazia D. Flor sempre que ahi vinha.
A cabana constava de três peças : uma servia de varanda, outra de dormitorio, a ultima era a cozinha. Todas as portas e janellas estavam abertas, de modo que o ar e a luz entravam francamente com a fragrancia dos campos. O chão era de massapê, mas tão rijo e varrido que não se via signal de poeira.
À exceção da cozinha, cada aposento tinha uma rêde de algodão muito alva. No dormitorio a rede faz as vezes de cama ; na varanda faz as vezes de sofá, e é o lugar de honra que o sertanejo, fiel às tradições hospitaleiras do índio seu antepassado, oferece ao hospede que Deus lhe envia.
O primeiro cuidado de Justa foi correr ao quarto e tirar da sua mala de couro uma rêde tambem de algodão, porém de ramagens encarnadas, com dois palmos de renda na franja matizada. Imediatamente substituiu a outra por esta, que ella ainda não achava bem chibante para sua filha querida.
— Agora póde sentar-se, meu bem, disse a sertaneja abrindo as dobras.
D. Flor encostou-se á aba da rede, e fincando no chão a ponta do borzeguim, começou á embalar-se, enquanto a ama ia buscar tudo que tinha de melhor em casa para offerecer-lhe :
— Prove dêste queijo que está tão fresquinho ! É o primeiro deste anno. Agora com as chuvas as cabrinhas sempre deram para um coalho.
Depois do queijo fresco, que ainda estava no chincho, vieram os balaios de biscouto, as rosquinhas de cariman, flores de alfenim, em summa toda a provisão de gulozinas que a sertaneja havia feito á espera de sua filha de criação.
D. Flor beliscou em tudo como uma rôla para dar à sua mamãi, de cada cousa que provava, um novo prazer.
— Agora basta, mamãe Justa ; não faça de sua filha uma gulosa que é muito feio.
— Iche !... respondeu a sertaneja com o seu muchocho especial. Em D. Flor tudo é bonito.
— Está me deitando a perder.
— Torno á dizer ! O que nos outros é feio e não se atura, se meu chuerubim fizesse, todos haviam de ficar encantados.
— E si eu não lhe quizesse mais bem ? Era bonito, diga, mamãi Justa ?
— Isto não póde, ainda que queira ! disse a sertaneja sorrindo.
Justa arrastara um estradinho coberto de couro e sentara-se defronte da donzella para conversar. Emquanto fallava, levada pelo habito de sua vida laboriosa, tirara um fuso da cintura, e por distracção mais do que para aproveitar o tempo, começara á fiar as pastas de algodão que estavam dentro de uma cabaça suspensa á parede.
D. Flor abandonou a rêde, e tirando das mãos da mamãi o fuso, acomodou-se mui sem cerimonia no colo da sertaneja, que já não cuidava em outra coisa sinão em ninar o seu chuerubim.
— Espere, mamãi ; deixe-me ver seu rosario, disse D. Flor, desatando o pequeno ramal de contas pretas que a sertaneja trazia ao pescoço.
Deitando-o no regaço de seu roupão, tirou do bolso um pequeno embrulho de tafetá, atado com um torçal de prata. Havia dentro um grande rosario, todo elle de contas de ouro, com os padre-nossos de coral e as corôas de marfim. A cruz era de azeviche com o Cristo de Jaspe.
A donzella cingiu o pescoço de sua mamãi com cinco ou seis voltas do rosario e deixou-lhe á final pender sobre o peito a cruz, que teve o cuidado de collocar de chapa, mostrando a imagem do Redemptor.
— Aqui tem ! É um rosario completo com duas corôas e mais um misterio. Assim não carece de passar duas vezes, quando resar sua novena.
Justa não dava sinal de si. Ficara maravilhada com a riqueza e formosura daquele mimo e estava em extase, immovel como uma estatua, receiosa de que o seu menor gesto maculasse aquele primor.
Acabando de arranjar o rosario, affastou-se D. Flor para observar o efeito :
— Está uma dona, mamãi !
Foi então que Justa despertando correu à menina, e como costumava em seus momentos de effusão, suspendeu-a nos braços, tomando-a ao collo da mesma fórma que fizera quando a trazia aos peitos, e affogando-a de beijos e caricias.
No dia seguinte ao da chegada, quando se arrumou a bagagem, tinha-se feito uma distribuição geral de presentes pela gente da fazenda. Cada uma das pessoas que ficaram havia recebido uma peça de vestuario, um traste de uso, ou qualquer outra lembrança. Os homens o receberam da mão do capitão-mór ; as mulheres da mão de D. Genoveva ; as moças e meninas da mão de D. Flor.
Mas a donzella além daquelles presentes, tinha tres especiaes, que havia reservado para mais tarde : um era o de Alina, sua companheira de infancia, outro era o da sua mãe Justa. Faltava-lhe dar o terceiro.