O Sertanejo/I/XIX
Os borraceiros do natal tinham continuado a cahir por volta da madrugada ; e o sertão de Quixeramobim, o mais formoso de todo o dilatado vale da Ibypiaba, vestia-se cada manhã de novas galas ainda mais brilhantes do que as da vespera.
A terra, que adormecia com o fechar da noite, já não era a mesma que despertava ao raiar do sol. Como se a houvesse tocado o condão de uma fada, ella transformava-se por encanto : e mostrava-se tão louçã e donosa que parecia ter desabrochado naquele instante, como uma flôr do seio da creação.
Ahi via-se realizada a graciosa lenda arabe dos jardins encantados, surgindo dentre os ermos e sáfaros arêaes à invocação de um nume benefico. A gentil feiticeira dos nossos sertões é a linpha, que, descendo do céo nos orvalhos da noite e nas chuvas copiosas do inverno, semeia os campos de todas as maravilhas da vegetação.
Era por tarde.
O capitão-mór Campello estava, como de costume, sentado em uma cadeira de alto espaldar, forrada de couro e colocada no largo patamal, que se prolongava de um e outro lado pelo alicerce, como um passeio.
O fazendeiro, terminado o jantar que naquele tempo era ao meio-dia, fazia regularmente a sésta até passar a fôrça do sol, como ainda hoje se usa pelo sertão. Depois do que, vinha sentar-se ali, no portico da casa, onde já se achava a sua cadeira senhorial, trazida por um pagem.
Abrigado pela sombra do edifício que ia cahir sobre o terreiro, entendia com os negocios da herdade e provia á tudo, quanto dependia de suas ordens. Se era preciso, montava á cavallo, e transportava-se ao logar onde se fazia necessaria sua presença, quaquer fosse a distancia, e devesse embora voltar alta noite ou pela madrugada.
Em tudo isto, porém, não se affastava uma linha daquella gravidade methodica e pausada, que formava a compostura de sua pessoa e que elle julgava um dever imprecindivel de sua importância e riquesa.
Nessa tarde logo ao sentar-se, despediu o capitão-mór o pagem para chamar á toda pressa o Ignacio Goes, que servia-lhe de vaqueiro da fazenda desde a morte do Louredo, pai de Arnaldo, o qual tivera por muitos annos esse emprêgo.
Chegou o Ignacio Goes quando o fazendeiro acabava de dar ordens a Manuel Abreu, o feitor.
— Que noticias nos traz da novilha, Ingnacio Goes perguntou-lhe o capitão-mór de chofre.
— Qual, sr. capitão-mór, a Bonina da senhora doninha disse o Ingacio Goes, embaraçado.
— A Bonina, sim ; desde hontem que desapareceu e até agora ainda não deu conta della. Que vaqueiro é um, Ingacio Goes, que não sabe por onde lhe anda o gado
— É uma cousa que não se explica mesmo, sr. capitão-mór. Já batí todo este matão, e nem signal de novilha. Nunca se viu uma coisa assim. Faz a gente imaginar !...
—Não tem que imaginar, Ignacio Goes ; se amanhã cedo a Bonina não estiver no curral, ficamos sabendo que nosso vaqueiro só presta para curar bicheiras.
O Ignacio Goes abaixou a cabeça e retirou-se humilhado em seus brios de vaqueiro pelo remoque do fazendeiro. Outros, mais graduados e mais atrevidos do que elle, não ousavam affrontar o senho do mandão de Quixeramobim.
D. Flor tinha assomado ao lume da porta, ainda a tempo de ouvir estas palavras.
—Não te afflijas ; disse o fazendeiro voltando-se para a filha ; que a Bonina hade apparecer até amanhã.
—Si Arnaldo estivesse aqui já elle a teria descoberto ; replicou a menina com um ligeiro enfado.
O capitão-mór ficara impassivel, como si não ouvisse as palavras da filha e entre ellas o nome de Arnaldo, cuja revolta provocara por vezes nos ultimos dias as explosões de sua colera.
Um phenomeno singular se havia operado no espirito do dono da Oiticica. A mesma estranhesa do facto inaudito de uma desobediencia formal á suas ordens, actuando em sentido inverso, desvanecera a primeira e violenta impressão produzida pelo accidente.
Essa anomalia explica-se mui facilmente ; era uma reacção. Passada a commoção, o capitão-mór tornára ao seu natural, e na soberba do mando absoluto, que avassalava todo aquelle sertão, nada mais natural do que abstrair-se da recordação importuna, a ponto de ter por impossivel o acontecimento.
Assim nos dias anteriores evitara toda a allusão ao caso inexplicavel ; e quando agora a filha pronunciara o nome de Arnaldo, elle já se tinha por tal modo imbuido da incredulidade, que o ouvira sem abalo.
D. Flor admirou-se dessa indifferença, a qual era para sorprehender apoz o formidavel arrebatamento que três dias antes excitara no velho a ultima evasão do sertanejo. O limpido olhar da donzella buscou no semblante paterno a significação daquelle gesto, e não achou alí sinão a calma e serena expressão da força em repouso.
O capitão-mór erguera-se um instante, e observava além na varrea, que dilatava-se em volta da encosta, alguma coisa, que lhe excitara a attenção.
Desceu então a donzela ao terreiro e foi sentar-se nos bancos à sombra da oiticica, onde a acompanhou Alina ; enquanto D. Genoveva tomava o seu lugar em uma cadeira rasa ao lado do marido.
O Agrela, que desde o apparecimento do fazendeiro na porta, aproximara-se como de costume para estar ás ordens, conversava com o Padre Telles, a alguma distancia, recostado ao socalco do alicerce.
Assim completou-se o painel de familia que ordinariamente, fazendo bom tempo e não sobrevindo incidentes, observava-se no terreiro da fazenda da Oiticica, à primeira hora da tarde, logo depois da sesta, quando o sol ainda forte não permittia o passeio aos varios pontos da herdade.
D. Flor parecia triste. A expressão já séria de seu formoso perfil estava nessa ocasião ainda mais nitida e correcta. Era sempre assim. Quando a alma assumia-se em profundo recolhimento, as gentis feições, que ela animava em sua expansão apresentavam uns tons purissimos, como se fossem cinzeladas no mais fino jaspe.
Desde a vespera desapparecera do curral a Bonina, uma novilha de alvura deslumbrante, que entre outras o capitão-mór escolhera por sua belleza para dar a filha, e desta recebera o nome de uma flor predileta.
Este sumiço e ainda mais a circunstancia de não encontrar-se o rasto da rez, o que fazia presumir a morte da mesma, eram sem duvida a causa da tristeza da donzella ; mas essa perda não bastaria para preoccupar-lhe o espirito com tanta insistencia.
D. Flor tinha bom coração ; e sem duvida alguma distribuia a sua affeição com os brutinhos, seus companheiros de solidão. Como em geral todas as moças, ella gostava de cercar-se desses confidentes discretos e alegres socios de travessura.
Ella tinha amisade ao seu cavallo ; gostava de ver e affagar os bezerrinhos e novilhas seus preferidos ; fazia saltar as cabrinhas e erguerem-se direitas sobre os pés até a altura de seu rosto, para receberem uma carícia ; queria bem às suas graúnas e sabiás ; gostava de garrular com o seu periquito.
Mas as effusões de ternura, em que se derrama o coração affectuoso de outras moças, que fazem de um passarinho um idylio e de uma corça um romance ; é o que não tinha D. Flor, não fria, mas esquiva e commedida na manifestação de seus sentimentos.
Seu pai inspirava-lhe profunda veneração ; e sua mãe extremos de amor ; entretanto esse affecto sincero, capaz da maior dedicação, apenas denunciava-se pela meiguice inalteravel com que ella deixava-se adorar por esses entes queridos.
Acaso pressentia ella que não podia dar-lhes maior jubilo e felicidade do que essa de confiar-se ao seu amor ? Talvez ; mas era sobretudo effeito de indole. Sua alma delicada e altiva tinha um recato natural, que a resguardava, e impedia de abrir o intimo seio aos olhos, ainda mesmo dos que mais queria.
D. Flor affligira-se quando soube do desapparecimento da novilha ; mas essa magoa já se teria desvanecido, se não encontrasse alimento.
Quando um pesar qualquer nos afflige e, desprendendo o espirito das impressões exteriores, obriga-o ao recolho ; muitas reminiscencias e pensamentos sopitados na memória adormecida, surgem aos olhos d'alma então voltados para o intimo.
Assim aconteceu á donzella. O facto ainda recente da revolta de Arnaldo foi o primeiro que despertou em seu espirito e absorveu-lhe as scismas.
O sertanejo era seu collaço e camarada de meninice. Embora depois de certa epocha suas existencias, a princípio unidas pela intimidade infantil, se tivessem apartado na adolescencia, que as chamava cada uma ao seu diverso destino ; todavia ella ainda conservava ao seu companheiro a amizade que lhe consagrara em criança. Demais, bastariam para incomoda-la, a afflicção que essa desavença causava à Justa, sua mãi de leite, a quem ella muito queria, e a desconfiança do desgosto que seu pai sentira com a ingratidão do filho do Louredo, criado por elle, e tão estimado sempre.
Destas magoas recentes, o espirito da donzella remontando insensivelmente aos acontecimentos anteriores, recordou a visita de Marcos Fragoso com seus amigos à Oiticica ; e d'ahi enleiou-se pelas reminiscencias ainda vivas de sua viagem ao Recife, e das festas que lá assistira.
Então, já desvanecida a sorpreza que essas novidades deviam causar-lhe, à ella filha do sertão, acodiram-lhe à mente idéias envoltas e ignotas, que sua imaginação candida não sabia formular, e lh'as apresentava apenas em vago esboço.
Muitas daquellas donzellas, e das mais formosas, que haviam concorrido às festas, tinham seus cavalheiros, que si nesses jogos as tomavam para rainhas de suas façanhas e gentilezas ; antes e fóra d'ahi lhes rendiam o culto de seu affecto e viviam captivos de sua belleza. De algumas soubera que já eram noivas, e de outras que não tardariam a ser pedidas.
Teria ella, Flor, tambem algum dia, o seu cavalheiro, que fizesse proezas para merecer-lhe um olhar ? Possuiria o bello parecer e outras prendas do Marcos Fragoso ? Ou o excederia no garbo da pessoa e gentileza das ações ?
Depois imaginava que esse cavalheiro, ainda seu desconhecido, chegava a Oiticica ; ella o via fallando na sala com seu pai ; era elegante, vestido a primor, e de uma nobreza de gesto como só a podiam ter os reis ; mas não lhe via o rosto. Então seu pai a chamava ; as palavras que lhe dizia e o mais que se passava, nunca o adivinhou seu espirito que neste momento perdia-se em um tropel de confusos pensamentos, enquanto leve rubor acendia-lhe a nivea tez.
Alina tambem estava triste ; mas as suas proprias magoas a preoccupavam menos do que a melancolia scismadora de sua companheira. A orphã, ao contrario da filha do capitão-mór, tinha uma dessas naturezas que não sabem viver em si e para si, mas carecem de transportar-se para outras, em que se diffundam, e de quem recebam o estimulo que não encontram no próprio seio.
Ao inverso das parasitas, que absorvem a seiva estranha e nutrem-se della, estas naturezas, prodigas transmittem a sua substancia. São como as flores privadas de estigma, que só viçam para communicar o seu pollen ao seio das outras, e como estas não dão fructo na propria arvore, tambem ellas não sabem sentir senão as alegrias e as tristezas dos seres a quem amam.
Alina chegando ao terreiro ainda vira o Inácio Góes e perguntou a D. Flor :
— Que disse o vaqueiro, Flor ?
— Nada, respondeu concisamente a outra.
— Então não há esperança ?
D. Flor respondeu com a cabeça, fazendo gesto negativo.
— Coitada da Bonina ! murmurou a orphã.
E mais pesarosa da perda da novilha do que a própria dona, levou a mão aos olhos para esmagar as lágrimas que borvulhavam ; e ficou-se a olhar para a companheira, buscando adivinhar-lhe os tristes pensamentos para repassar-se delles.
Logo que as duas meninas se haviam sentado nos bancos da Oiticica, o Agrela que as vira de esguelha dirigirem-se para aquelle ponto, achou jeito e tornar ambulatoria a sua pratica, e principiou a percorrer o terreiro ao lado do capellão.
Sua direcção apparente era o muro ensosso, especie de barbacam, levantado em volta do terreiro. Tinha elle, porém, uma linha objectiva, que seu olhar indicava a cada instante fitando-se rapido, mas vehemente, no formoso semblante de Alina.
Por isso a cada volta, a linha declinava, formando um ziguezague, que não tardava cortar em uma de suas projecções a área coberta pela copa frondosa da oiticica. Padre Telles, que talvez por indicios anteriores percebera a estratégia do ajudante, prestava-se de boa vontade à manobra ; mas com disfarce para não acanhar o rapaz.
Foi mais adiante a complacencia do capellão, pois ao passarem junto dos bancos, deu-se por fatigado, e sentou-se indicando ao companheiro o logar, que ficava-lhe à direita entre elle e a moça.
— Aqui, disse, travando familiarmente do Agrela pelo braço ; vamos descansar um tanto.
O mancebo ao sentar-se roçou de leve e sem querer a saia de Alina que, distrahida e voltada para Flor, não se apercebera da aproximação dos dois passeadores. Sentindo o frolido de suas roupas, a moça acodiu surpresa para retrahir-se com um movimento mais assustado e evasivo do que exigia a circumstancia.
Comprehendeu Agrela a significação dessa repulsa e ergueu-se de promto :
— Não foi minha a culpa, mas do Sr. capellão ; disse elle com um azedume, que debalde buscou diluir no tom galhofeiro.
— Tem logar murmurou Alina.
Com estas palavras a moça erguera os olhos ; e fitou-os no semblante de Agrela com um gesto tão meigo e compassivo que parecia exprobrar a si mesma de o ter magoado.
— Esse lugar é de outro, eu sabia ; respondeu o mancebo com a mesma acrimonia.
Alina corou, curvando a fronte como para subtrair-se ao olhar que penetrava-lhe os seios d'alma.
Padre Telles tinha se aproximado de D. Flor a pretexto de a consolar da perda de sua novilha favorita ; mas talvez para deixar em liberdade o ajudante de quem era camarada e cujos amores desejava favorecer.
Aproveitando o ensejo, Agrela dirigiu ainda algumas palavras rapidas à moça.
— Essa melancholia é pela ausência delle Não se afflija ! Tenho ordem de descobri-lo, vivo ou morto.
— Arnaldo ? balbuciou Alina.
— Sim, Arnaldo. A ordem, eu a cumprirei em sua intenção. Não me agradece ? concluiu o mancebo com ironia.
A moça não póde fallar, mas exprimiu seu pensamento por um gesto eloquente, cerrando ao seio as mãos enlaçadas para a prece.
Nessa occasião voltava o padre Telles, e Agrela apartou-se com elle do grupo das duas moças.