O Sertanejo/I/XX
O sol transmontara.
As sombras das collinas do poente desdobravam-se pelos campos e varzeas e cobriam a rechã desse candor da tarde, que em vez da alegria da alva matutina tem o desmaio, a languidez e a melancolia da luz que expira.
Por aquellas devesas já envôltas no umbroso manto, só destacam-se as copas das arvores altaneiras ainda imergidas nos fogos do arrebol, e que de longe parecem as chammas de um incendio rompendo aquí e ali do seio da matta.
O gado espalhado pelas várzeas solta os profundos e longos mugidos com que se despede do sol, e que propagam-se pelo ermo, como os carpidos da natureza ao sepultar-se nas trévas.
Respondem as vacas nos curraes, e os bezerros misturam seus berros descompassados com os balidos das ovelhas e borregos, também já recolhidos ao aprisco.
Lá das mattas rebôa o surdo estridor em que se condensam os cantos de todos os passaros e o grito de todos os animaes, para formar a grande voz da floresta, que exhala-se, sobretudo nessa hora, abafada e sombria das espessas abobadas de verdura.
No meio, porém, desse concerto e do borborinho que ainda levantava a labutação diaria, atravessava o espaço uma nota dorida, plangente, ressumbro de saudade infinda. Si a alma da solidão se fizesse mulher, ela não tiraria de seu mavioso seio, um suspiro tão melancolico e tocante como o arrulho da jurity ao cahir da noite.
Nessa hora a lida jornaleira das fazendas torna-se mais pressurosa, como para aproveitar os ultimos instantes do dia.
Os lenhadores voltavam do mato carregados de feixes, enquanto os companheiros conduziam a bolandeira cestos de mandioca, ainda da plantação do anno anterior, para a desmancharem em farinha durante o serão.
As mulheres livres ou escravas, umas pillavam milho para fazer o xerem ; outras andavam nos poleiros guardando a criação para livra-la das raposas ; e os moleques as ajudavam na tarefa, batendo o matapasto, ou dando cerco às frangas desgarradas.
As cozinheiras, encaminhando-se para a fonte a fim de lavar alí na agua corrente a louça de mesa e fogão, assim como as cassarolas ; cruzavam-se em caminho com as lavadeiras que já se recolhiam com as trouxas de roupa na cabeça.
Nos curraes tirava-se o leite, acomodavam-se os bezerros, e cuidava-se de outros serviços proprios das vaquejadas, que já tinham começado com a entrada do inverno, porém só mais tarde deviam fazer-se com a costumada atividade.
Era á este, de todos o mais nobre dos labores ruraes, que o capitão-mór costumava assistir regularmente, para o que todas as tardes à hora da sombra transportava-se elle do seu posto no patamal da casa, e vinha com a família sentar-se defronte do curral na mesma poltrona, que o pagem levara apoz si.
D. Genoveva entendia mais particularmente com o leite, o qual ali mesmo distribuia ; uma parte entregava-se às doceiras incimbidas dos bolos e massas ; outra repartia pelas crias, e o resto era levado à queijaria. Isto quando não tinha chegado ainda a fôrça do inverno, porque nesse tempo havia tal abundancia, que enchiam-se todas as vasilhas e até os coches onde os cães do vaqueiro iam beber.
O narrador desta singela historia teve em sua infancia occasião de ver na fazenda da Quixaba, próxima à serra do Araripe, esse alluvião de leite, na maxima parte desaproveitado pelo atrazo da industria, e que podia constituir um importante commercio para a provincia.
Enquanto a mulher occupava-se com esses misteres caseiros, o capitão-mór percorria os curraes, tomando contas aos vaqueiros, mandando apartar os novilhos que era costume reservar para bois de serviço ; indicando a rez que se devia matar para o gasto da casa ; e assistindo a esfolar e esquartejar, no que se comprazia com a pericia dos carniceiros.
No tempo da férra, tratava de apurar os garrotes apanhados na safra do anno anterior, escolhendo os da propriedade para deixar o disimo do vaqueiro, segundo as condicções do trato, que ainda são actualmente as mesmas em voga no sertão da provincia.
Com estes e outros serviços das vaqueijadas deleitava-se o capitão-mór, que achava nessa vida activa e agitada as emoções das lides e façanhas guerreiras, para que o attrahia sua indole.
Mais de uma vez, quando algum touro bravo resistia aos moços do vaqueiro e acuado pelos cães no meio da varrea, bramia escarvando o chão, acceso em furia, com os olhos em sangue : o velho capitão-mór sentindo repontarem-lhe uns impetos de juventude, vestia o gibão de couro e as perneiras, montava no seu russo, e empunhando a vara de ferrão na esquerda, arremettia contra o animal, topava-o no meio da carreira, e o trazia ao curral pela ponta do laço.
Naquella tarde, não se entreteve o fasendeiro, como em outras, com a inspeção do gado ; pois recolheu-se mais cedo que de costume ; e sua phisionomia que só nos raros, mas terriveis, transportes de ira, perdia a calma e apathica serenidade, mostrava nessa occasião symptomas visiveis de descontentamento.
Caminhava o capitão-mór com o passo grave e pausado, medido pela cadencia de sua alta bengala de carnauba, rematada em um castão de ouro lavrado, o qual tocava-lhe pelos ombros. Sua contrariedade denunciava-se, para quem lhe conhecia a solemnidade do gesto, na frequencia com que elle consertava o chapéo armado, como si lh'o incommodasse.
D. Genoveva ia ao lado do fazendeiro e embora não escapassem à sua sollicitude estes sinaes de impaciencia ; todavia não se animava a interrogar-lo directamente e esperava que elle se decidisse a communicar-lhe seu pensamento. O extremoso amor da bôa senhora não se animava a infringir o respeito e submissão que tinha pelo marido.
D. Flor e Alina tinham passado adiante e já iam longe, apesar-da sujeição a que obrigavam seu pé leve e agil para acompanhar a marcha lenta do capitão-mór. Atraz, mas em distancia conveniente para não escutar a conversa dos donos da fazenda, seguia o ajudante.
O capitão-mór consertou ainda uma vez o chapéo armado, e retendo o passo, disse para a mulher :
— Não temos vaqueiro, D. Genoveva !
Depois do que, avançando o passo retido, continuou sua marcha para a casa. D. Genoveva, que esperara a continuação da confidencia, animou-se então a perguntar :
— E o Ignacio Góes ?
— O Inácio Góes é um cangueiro ; e mal ppode consigo. Não viu o que sucedeu com a Bonina ? Si lhe tivesse ido logo no rasto, como era sua obrigação, a novilha não havia de sumir-se. Mas elle nem conhece o gado de sua entrega ! Pergunta-se-lhe por uma vaca ; e o homem não faz sinão encher as ventas de tabaco !
Contrariado e prevenido por causa do desapparecimento da novilha que dera de mimo a D. Flor, o capitão-mór achara o vaqueiro em faltas que ainda mais o indispuseram.
— Desde que tivemos a desgraça de perder o Louredo, que o nosso gado anda a mercê de Deus, D. Genoveva. É tempo de por cobro a isso. O Ignacio Góes nunca prestou nem mesmo para vaqueiro d'uma fazenda, quanto mais para nosso vaqueiro geral com o governo de todas as fazendas. Esse lugar, nós o guardamos para o Arnaldo, que já está em idade de servil-o ; portanto, senhora, cuide com toda a presteza no enxoval da Alina, para casa-la quanto antes com o rapaz. É o que havemos resolvido.
O fazendeiro tinha parado para dizer estas palavras à mulher, cuja sorpresa pintou-se-lhe no semblante.
— O Arnaldo ? Mas elle não fugiu, Sr. Campello ? interrogou a dona suspeitando que o marido tivesse esquecido aquella circumstancia.
O velho voltou-se com emphase para a mulher e disse-lhe fincando rijo no chão a ponteira de ouro de sua bengala :
— Hade apparecer e hade casar, que assim o determinamos, D. Genoveva.
D. Genoveva calou-se, e por algum tempo seguiu o marido silenciosamente ; mas levado pelo fio das idéias, seu espirito passara a outro assumpto, pois de repente voltou-se para perguntar ao marido :
— E Flor ?
O capitão-mór reflectiu antes de responder :
— Já temos pensado no seu futuro, D. Genoveva ; disse o capitão-mór.
— Elle está com desenove annos.
— Até os vinte não é tarde.
— Mas o noivo ?
— Eis a difficuldade. Lembramo-nos primeiro, de nosso sobrinho, Leandro Barbalho, de Pajehú de Flores. Agora com a vinda do Marcos Fragoso ao Bargado, estamos em duvida, qual nos convenha melhor.
— O Marcos Fragoso, Sr. Campello, o filho do coronel ? Acha que Flor póde casar com elle ?
— Si formos a esperar que appareça um mancebo com dotes para merecer a nossa filha, D. Genoveva ; ella não casará nunca, pois onde está esse ? Nem que vamos a Lisbôa procurá-lo na melhor fidalguia do reino, acharemos um marido como nos o queriamos para Flor. Assim que temos de escolher entre o que ha ; e o Marcos Fragoso é dos poucos ; as maldades do pai, elle não as herdou, com o grosso cabedal de sua casa.
— Diziam tanta cousa desse moço no Recife ! observou D. Genoveva abaixando os olhos com o recato calmo de uma senhora.
— Rapaziadas que passam ; quando fôr marido de Flor, elle não se atreverá a faltar-nos ao respeito ; pois sabe que não lhe perdoariamos o menor descomedimento.
— O Leandro sempre é parente.
— Mas não é tão abastado como o Marcos Fragoso ; e não tem o seu porte fidalgo, respondeu o capitão-mór que era homem das formas.
Lá no campanario da capella, acabava de soar a primeira badalada do toque de ave-maria. O som argentino da sineta vibrando nos ares foi repercutir ao longe no borborinho da floresta, d'envolta com o mugir do gado e os rumores da herdade.
O capitão-mór parou, e descobrindo-se, poz o joelho em terra para fazer sua oração mental. As pessoas de sua família o imitaram ; e por toda a extensão da fazenda, a faina jornaleira interrompeu-se um momento. O carregador arreara o seu fardo ; o trabalhador cessara o serviço ; e todos de joelhos, com as mãos postas, resaram a singela oração da tarde.
Ainda retiniam as ultimas badaladas das trindades, quando longe, pela varsea além, começaram a resoar as modulações affectuosas e tocantes de uma voz que vinha aboiando.
Quem nunca ouviu essa aria rude, improvisada pelos nossos vaqueiros do sertão, não imagina o encanto que produzem os seus arpejos maviosos, quando se derramam pela solidão, ao por do sól, nessa hora mistica do crepusculo, em que o echo tem vibrações crebras e profundas.
Não se distinguem palavras na canção do boiadeiro ; nem elle as articula, pois falla ao seu gado, com essa outra linguagem do coração, que enternece os animales, e os captiva. Arrebatado pela inspiração, o bardo sertanejo fere as cordas mais affectuosas de sua alma ; e vae soltando às auras da tarde em estroles ignotas o seu hymno agreste.
A voz que aboiava naquelle momento tinha um timbre forte e viril, que não perdia nunca, nem mesmo nas inflexões mais ternas e saudosas. Ainda quando sua melodia se repassava de suavissimos enlevos, sentia-se a percussão intima de uma alma pujante, que brandia às commoções do amor, como o bronze ferido pelo malho.
O gado dos curraes, que já se tinha accomodado e ruminava deitado, levantando-se para responder ao canto do aboiador, mugia não ruidosamente como pouco antes, mas quebrando a voz, em um tom comovido, para saudar o amigo.
Alina estremecera, escutando os sons vibrantes da canção : e seu olhar vago, volvendo em torno cruzou-se além com o olhar de Agrela, que de longe a fitava. Nesse relance chocaram-se as almas de ambos. À muda interrogação da moça, o ajudante respondera affirmando; e à supplica instante que seguiu-se, oppoz um pallido sorriso, cuja ironia tinha um travo amargo e triste.
Tranzida de susto por esse sorriso, a môça inclinou-se para sua companheira e murmurou-lhe ao ouvido :
— Arnaldo !
— Aonde ? perguntou Flor distrahida.
— Não ouve ?
D. Flor applicou o ouvido. Também ella conhecia os módulos frementes daquella voz, que enchia o deserto.
— E agora ? continuou Alina palpitante. Se elle vem ?... O sr. capitão-mór !...
— Meu pai o castigará, Alina ; e será um beneficio para elle, que está se perdendo. Arnaldo já não é criança ; carece emendar-se.
Alina retrahiu-se como uma sensitiva. Esperava achar protecção em D. Flor ; e a severidade da donzella, que bem revelava neste incidente a contrariedade de seu humor, a desanimou.
Nas outras pessoas o aboiar, que se aproximava cada vez mais, não causara a menor impressão, como coisa muito comum no sertão. Apenas alguns dos agregados e vaqueiros lembraram-se que era êsse o modo de cantar de Arnaldo; e viram que antes deles já o gado havia reconhecido o filho de seu antigo vaqueiro.
De repente uns gritos no curral chamaram para alí a atenção. Voltou-se o capitão-mór, e inquiriu do Agrela com o olhar a causa do rumor.
— É a Bonina que apareceu, disse o ajudante apontando para a novilha parada junto à cêrca.
O capitão-mór para alí encaminhou-se tão satisfeito que alterou a sua habitual circunspecção. D. Flor, porém, tinha-se adiantado com Alina e já abraçava a ingrata, quando o pai aproximou-se.
Indagou o fazendeiro do caso; e Inácio Góis, insinuando-se como o descobridor da Bonina, começara uma história em que se derramaria sua habitual loquela, quando D. Flor o atalhou:
— Alí está quem a trouxe, meu pai!
O capitão-mór ergueu os olhos na direção indicada pela filha, e viu parado a pequena distância Arnaldo montado no cardão. O mancebo tirou o chapéu e ficou imóvel.
O ânimo de quantos assistiam a esta cena estava suspenso no pressentimento de um novo e terrível assomo de cólera da parte do fazendeiro. Entretanto o mancebo aguardava tranquilamente o choque, embora o olhar e atitude indicassem a resolução em que estava de não ceder.
A fisionomia do capitão-mór conservava sua habitual seriedade. A surpresa que a animara um instante, cedera à concentração da vontade sempre morosa e tolhida, quando não a arrebatava a paixão.
Tendo demorado por algum tempo o olhar no semblante do mancebo, retirou-o afinal para volvê-lo na direção do Agrela. Êste, porém, que previra o movimento, simulou uma distração a propósito e esquivou-se à consulta.
Então o capitão-mór revestiu-se de toda a solenidade de aparato e estendeu majestosamente a mão para Arnaldo, o qual apeando-se pronto veio beijá-la comovido.
— Vá tomar a benção à sua mãe, disse o fazendeiro paternalmente.
Depois que a filha satisfez-se de acariciar a ingrata Bonina, o capitão-mór, passando a título de recomendação um novo capelo no Inácio Góis, tornou à casa acompanhado pela família.
D. Flor dirigiu-se pressurosa a seu camarim; e tomando alí um objeto que procurava, saiu com Alina em busca do casalinho da Justa.
Era noite já. O crescente da lua que surgia no horizonte azul esparzia sôbre a terra uma claridade tênue e indecisa que flutuava na atmosfera como gaze finíssima, tecida de fios de prata.
Além, no terreiro dos agregados, trilavam os sons cristalinos da viola, a ralhar no meio do susurro da conversa. Mais longe, em frente às casas dos vaqueiros, a gente de curral fazia o serão ao relento, deitada sôbre os couros, que serviam de esteiras.
Uma voz cheia cantava com sentimento as primeiras estâncias do Boi Espácio, trova de algum bardo sertanejo daquele tempo, já então muito propalada por toda a ribeira do São Francisco, e ainda há poucos anos tão popular nos sertões do Ceará.
Vinde cá meu Boi Espácio,
Meu boi preto caraúna;
Por seres das pontas liso,
Sempre vos deitei a unha.
Criou-se o meu Boi Espácio
No sertão das Aroeiras;
Comia nos Cipoais,
Malhava nas capoeiras.
Foi êste meu Boi Espácio
Um boi corredor de fama;
Tanto corria no duro,
Como na varge de lama.
Nunca temeu a vaqueiro,
Nem a vara de ferrão;
Temeu a José de Castro
Montado em seu alazão.
Os tons doces e melancólicos da cantiga sertaneja infundiram um enlêvo de saudade, sobretudo naquela hora plácida da noite.
Entrando no casalinho, Flor e Alina encontraram-se com Justa, que avisada pelo rumor das vozes acudia a recebê-las. Ao clarão do fogo aceso na cozinha próxima avistaram um vulto, que ambas reconheceram, a-pesar-de quase desvanecido na sombra do canto escuro.
Fôra um nobre impulso do coração que alí trouxera D. Flor naquele instante. Não tendo pouco antes agradecido a Arnaldo o serviço que êste lhe prestara, vinha mostrar à ama o seu contentamento e acompanhá-la na alegria que devia sentir vendo restituídas ao filho as boas graças do dono da Oiticica.
Em caminho, porém, a efusão dêste sentimento se acalmara, e de todo aplacou-se ao entrar na choupana. Abraçou com meiguice sua mãe de leite, e entregou-lhe o objeto que trazia na mão: uma bolsa de teia de prata como se usava naquela época.
— Esta bolsa, mamãe Justa, é que eu trouxe do Recife para Arnaldo. Tinha feito tenção de não lha dar mais, por causa da desobediência que êle praticou, sobretudo depois de enganar-me, fugindo de minha companhia. Mas como êle achou a Bonina e voltou arrependido, eu quero perdoar-lhe, como meu pai. Aquí a tem; entregue-a da minha parte, como mimo que lhe faço.
— Obrigada, minha Flor! Como êle vai ficar contente!...
O vulto surgiu da sombra. Era Arnaldo, o qual aproximando-se de Justa, tirou-lhe das mãos a bolsa e foi arremessá-la ao fogo.
— Pague aos seus criados, disse êle com a voz áspera.
— Arnaldo! exclamou Justa escandalizada.
D. Flor erguera a altiva fronte, e com um gesto de plácida dignidade atalhou a ama:
— Fez bem: êle não merecia uma lembrança minha.
E retirou-se.