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O Sertanejo/I/XVIII

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DESENGANO

     Arnaldo traspassou com o olhar a espessura da folhagem que lhe occultava a formosura de D. Flor, e instinctivamente retraiu-se com o enleio em que sempre o lançava a presença da donzella.

     Justa o deteve, segurando-lhe o braço e apontando para dentro do mato.

     — Ella falou ao pai. O sr. capitão-mór, tu bem sabes, não tem ânimo de recusar nada àquella filha, que é a menina de seus olhos. Então prometteu que, se hoje mesmo voltares arrependido à sua presença para supplicar o perdão de tua falta, elle esquecerá tudo.

     Arnaldo atalhou a mãi com um gesto de energica repulsa :

     — Não cometti nenhum crime para carecer de perdão, mãi.

     Justa denunciou no semblante a extranheza que lhe causavam as palavras do filho :

     — Pois não desobedeceste ao sr. capitão-mór, Arnaldo ?

     — Para desobedecer-lhe era preciso que elle tivesse o poder de ordenar-me que fosse um vil ; mas esse poder, elle não o possúe, nem alguem neste mundo. O sr. capitão-mór exigiu de mim que lhe entregasse Job, e eu recusei.

     — Mas, filho, o sr. capitão-mór não é o dono da Oiticica ? Não é elle quem manda em todo este sertão ? Abaixo de El-rei que está lá na sua côrte, todos devemos servi-lo e obedecer-lhe.

     — Pergunte aos passaros que andam nos ares, e às féras que vivem nas mattas, si conhecem algum senhor além de Deus ? Eu sou como elles, mãi.

     — Tu és meu filho, Arnaldo. Lembra-te do que foi para teu pai esta casa onde nasceste, e do que ainda é hoje para tua mãi.

     — Os beneficios, eu os pagarei sendo preciso com a minha vida ; mas essa vida que me deu, mãi, se eu a vivesse sem honra, meu pai lá do céo me retiraria sua benção.

     — Que vae ser de mim, Senhor Deus ? exclamou a sertaneja na maior afflicção.

     — Socegue, que nada ha de acontecer. Tenho o meu bentinho ; continuou Arnaldo á sorrir e tocando no seu relicario : não ha mal que me entre, nem feitiço que me enguice. Adeus ! De longe mesmo guardarei aquelles á quem eu quero bem, ainda que elles me queiram mal.

     — Ouve, Arnaldo ! disse a mãi buscando reter o filho. Eu te peço !

     — Quando precisar de mim, mande sua comadre chamar-me.

     — Não te vás filho, que te perdes !

     Justa enlaçou o collo do filho com os braços e exclamou voltando-se para o mato.

     — Flor, elle não me quer ouvir !

     As folhas agitaram-se, e instantes depois surgiu da verde espessura, como das cortinas de um docel, o vulto gracioso de D. Flor, com as faces tocadas de leves rubores.

     — Elle não quer ir, minha filha. Nem ao menos consente que eu, sua mãi, lhe peça e rogue. Fecha-me a boca, e logo com o nome do pai. Falle-lhe, Flor ! Talvez á você, que sabe dizer as cousas, elle ouça ! Eu sou uma pobre sertaneja e não sei sinão querer bem á você e á êste filho de minha alma.

     A donzella aproximou-se do collaço, que a esperava attonito e pallido. Pousando-lhe a mão mimosa no hombro disse, voltando-se para a Justa e dirigindo sua resposta á ambos, mãi e filho.

     — Elle vae !

     O suave contacto desses dedos melindrosos bastou para abatter a energia do ousado sertanejo. Ali estava elle agora timido e submisso, não se atrevendo á balbuciar uma palavra, nem siquer a erguer a vista ao encontro dos olhos altivos que o dominavam.

     D. Flor sorriu-se no meigo desvanecimento do poder que ella, fragil menina, exercia sobre essa natureza pujante ; mas o assomo de faceirice passou rapido e não perturbou o nobre impulso de seu coração.

     — Vim busca-lo, Arnaldo, para leva-lo á casa, disse ella repassando a voz maviosa de um mago encanto. Não me acompanha ? Ainda não lhe dei a lembrança que trouxe-lhe do Recife.

     Arnaldo arrancou-se com esfôrço ao logar onde estava, e murmurou promovendo o passo :

     — Vamos !

     Justa bateu palmas de contente.

     — Eu logo vi que só você, Flor, era capaz de fazer o milagre !

     — Pois eu sou a fada encantada ! disse a moça, fazendo com este gracejo uma allusão aos brincos da infancia.

     Flor dirigiu-se á casa acompanhada pelos dois. Pouco adiante encontrou Alina com as escravas, que a ficáram esperando, enquanto ella acodia ao chamado da ama.

     O olhar doce e melancholico de Alina fitou-se no semblante de Arnaldo, que nem pareceu dar por sua presença. O sertanejo ia completamente alheio de si, e preso do condão que o arrastava máo grado seu. Não tinha consciencia do que fazia, nem já se lembrava do sacrificio que exigiam de seus brios.

     Irresistivel devia ser a paixão que submettia assim um caracter indomavel e altivo ao ponto de roja-lo na humilhação, ao simples aceno de uma mulher !

     Ao sair da matta, Flor avistou ao longe, no terreiro, o capitão-mór, sentado á sombra da oiticica, ao lado de D. Genoveva. Voltando-se para Arnaldo, que a seguia maquinalmente, mostrou-lhe o vulto do fazendeiro.

     — Lá está meu pai, que nos espera.

     — Chegando diante delle, filho, ajoelha e pede perdão.

     — De joelhos ?... exclamou com voz surda e profunda o sertanejo, cuja alma entorpecida afinal sublevava-se.

     Flor comprehendeu a emoção de Arnaldo e quis aplacar-lhe a revolta dos brios.

     — Eu ajoelharei tambem ; disse ella com adoravel meiguice.

     Estas palavras, porém, bem longe de serenarem o ânimo do mancebo, ainda mais o alvoroçaram, confirmando a suspeita de que só com este ato de humildade obteria entrar de novo nas bôas graças do capitão-mór.

     — Nunca ! bradou elle, retrocedendo.

     — Arnaldo ! disse D. Flor.

     — Eu lhe peço, Flor, não exija de mim semelhante vergonha. Não posso, é mais forte do que a minha vontade. Si é preciso que eu ajoelhe, aqui estou a seus pés, mas aos pés de um homem, não. Morto que eu estivesse, as minhas curvas não se dobrariam.

     — Não é um homem, Arnaldo, é meu pai ; respondeu a donzella, erguendo a fronte com altiva inflexão.

     — E' seu pai, mas não é o meu, embora eu o respeite mais do que um filho.

     — Venha, Arnaldo ; insistiu a donzella fitando o olhar imperioso.

     A alma do mancebo fascinada por este olhar debatia-se n'uma cruel perplexidade. Flor travou-lhe o pulso e levou-o sem resistencia.

     Quando, porém, a donzella subindo a encosta, assomou no terreiro, e que o vulto do capitão-mór destacou-se em frente, revestido de sua habitual solenidade ; ouviu-se um grito sinistro como o que solta o gavião ao desabar da procella.

     Arnaldo, no momento em que Flor largava-lhe o pulso para ir ao encontro do pai, de um salto arrojara-se para traz, e desapareceu na matta proxima, antes que as pessoas presentes á esta scena voltassem á si da sorpreza.

     O capitão-mór, que se preparava para receber o rapaz e conceder-lhe finalmente o perdão já obtido pela ternura da filha, ergueu-se arrebatado pela colera. Ao seu brado formidavel acodiu Agrela com a escolta, e desta vez dirigidos pelo capitão-mór em pessoa, deram nova batida na matta á busca de Arnaldo.

     Justa acreditou que desta vez o filho estava irremediavelmente perdido, e a propria D. Flor, apezar do imperio que tinha sobre a vontade do pai, não se julgava com forças para obter novamente o perdão de seu collaço.

     Entretanto Arnaldo já ia longe. Muito antes que a gente da fazenda penetrasse na floresta, alcançara o lugar onde na vespera o tinha deixado Moirão, quando tão bruscamente delle se despedira.

     Imitando o canto da sariema, o que era um sinal dado a seu cavallo para que o seguisse, o sertanejo aproveitando a frouxa luz da tarde foi no rasto do Aleixo, que aliás não tomára a menor cautela para disfarçá-lo.

     Ao cabo de um estirão de caminho parou e observando pelo céo a direção do rasto, disse consigo :

     — Não há que vêr, está no Bargado. Eu o sabia. Corisco !

     O inteligente animal acudiu ao chamado do senhor, que o montou mesmo em pello, e instantes depois corria pelo cerrado, como se trilhasse uma vargem aberta e descampada.

     E' um dos traços admiraveis da vida do sertanejo, essa corrida veloz através das brenhas ; e ainda mais quando é o vaqueiro a campear uma rez bravia. Nada o retem ; onde passou o mocambeiro lá vai-lhe no encalço o cavallo e com elle o homem que parece incorporado ao animal, como um centauro.

     A casa da fazenda do Bargado ficava no meio d'uma chapada. De muito longe Arnaldo avistou os fogos que brilhavam no seio das trevas, pois já era noite fechada.

     Chegando a um lanço de clavina, apeou-se o mancebo : e deu senha ao cavallo para avançar no mesmo rumo. O Corisco, prático nessas emprezas, agachado por entre o arvoredo, aproximou-se até dar rebate aos cãens da fazenda, que partiram em matilha a acua-lo.

     No meio dos latidos, e dos gritos do vaqueiro a estumar os cãens, ouviu-se uma voz cheia que dizia :

     — José Bernardo, amigo, não maltrate a menina !

     — Com certeza é a sussuarana ; observou outra falla.      — Si fossomos conversar com a rapariga. Topam ?

     — Depois da ceia, Aleixo Vargas !

     Antes de ouvir o nome do Mourão, já Arnaldo o tinha reconhecido pela voz, o que não lhe causou sorpreza ; antes confirmara a sua conjectura.

     Quando o Corisco recuando affastou a matilha para longe, o sertanejo que já havia tomado o lado opposto, acercou-se da caza com a cautela necessaria para não ser pressentido. Era facil empreza, pois o arvoredo prolongava-se até perto do terreiro.

     Da sala principal, que abria para a varanda, escapava-se o rumor de fallas alegres, e de risos festivos, intermeados com o tinir dos pratos e o triscar dos copos.

     Pela janella do outão pôde Arnaldo observar de longe o interior.

     O capitão Marcos Fragoso banqueteava-se com seus hospedes. As viandas já em parte consumidas indicavam que a ceia estava a terminar ; e efectivamente os pagens não tardaram em servir o desser, no qual entre os figos, passas e nozes do reino trazidas do Recife com a bagagem, figuravam grandes tarrinas de coalhada e os requeijões, frutos das primeiras aguas.

     Corria a pratica viva e animada entre os quatro mancebos, que ao acompanhamento dos copos, trocavam os remoques ou rebatiam-nos com a replica pronta e chistosa. Jovens e amigos, esses corações, que não cuidavam de refolhar-se uns para os outros, estavam revendo-se nos semblantes e gestos com a franca expansão, natural aos convivas de uma meza lauta, reunidos em alegre companhia e excitados pelas copiosas libações de vinhos generosos.

     Se Arnaldo conhecesse a cidade como conhecia o deserto e seus habitantes ; se estivesse habituado a observar a phisionomia do homem com a perspicacia do olhar que penetrava a mais basta espessura e investigava o semblante, o gesto, o porte da floresta ; com certeza adivinharia o que fallavam entre si os quatro mancebos.

     Mas, embora supeitasse do assunto do colloquio, não podia atinar com o rumo que este levava ; nem portanto saber o que devia esperar. Mortificava-o isso ; pois fora precisamente para desde logo desenganar-se que elle tentara essa empreza, e custava-lhe tornar sem haver alcançado seu intento.

     Não podia aproximar-se mais do edifício, por causa do clarão de um fogo que estendia pelo terreiro alem uma facha de luz.

     Junto desse fogo estavam sentados sobre couros o vaqueiro e outra gente da fazenda, com Aleixo Vargas ; todos ocupados em despachar os largos tassalhos de carne, os quaes iam cortando à vontade da carcassa de uma vitella, ainda enfiada na estaca de braúna que lhe servia de enorme espeto, e estendida por cima do brazido que a estava acabando de assar.

     A rez fora morta á chegada do dono da fazenda. Uma banda, tinham-na cortado para cosinhar ; a outra, ahi estava de espetada. Della haviam tirado o lombo para a ceia dos fidalgos ; e do resto pretendiam os acostados dar conta naquela mesma noite, o que sem duvida conseguiriam com a formidavel collaboração de Aleixo Vargas.

     Nesse momento os caens, sentindo novamente rumor no mato, investiram á latir ;

     — Que é lá isso ? gritou o vaqueiro erguendo-se. Temos novidade ?

     — E' a bicha que volta.

     — Pois então ? Não hade ceiar tambem ? Deixa a outra, amigo José Bernardo.

     A sucia levantara-se para seguir o vaqueiro ao outro lado, curiosa de saber o que havia. Desse breve instante aproveitou-se Arnaldo para atravessar o terreiro e coser-se á varanda.

     Pôde então escutar o resto da conversa.

     — Simule quantas razões lhe approuver, primo Fragoso, é debalde : não me convence de que o mais chibante casquilho do Recife se lembrasse de vir á este sertão ferrar bezerros e comer coalhada escorrida, que aliás não é máo petisco.

     — Eu estou com o Ourem ; disse o capitão João Corrêa ; não lhe acho muito geito de fazendeiro, cá ao nosso amigo.

     — Bom caçador de boi, é elle ; observou o Daniel Ferro. Quando está nos Inhanuns seu divertimento é atirar no gado barbatão.

     — E ande lá que não hade ser má caçada.

     — Excellente ! affirmou Fragoso.

     — Mas então, Ourem, que feitiço é êste que traz o nosso amigo encantado por estas paragens ?

     Marcos Fragoso preveniu a replica :

     — Já que tamanho emprenho fazem em conhecer a verdadeira tenção desta jornada, não a occultarei por mais tempo, nem é de razão ; pois á quem primeiro communicaria resolução de tanta monta do que á amigos de minha maior estimação ?

     O mancebo reteve a palavra um instante, como para observar a sorpreza que suas palavras iam causar nos companheiros e prosseguiu sorrindo :

     — Um desses proximos dias far-me-heis á graça de me acompanhar à Oiticica, onde irei pedir ao capitão-mór Campello a mão de sua filha, a formosa D. Flor.

     Esta comunicação foi recebida com bravos pelos companheiros.

     — A' gentil noiva ! exclamou Ourem enchendo os copos.

     — E à ventura de tão acertado hymeneu !

     Foi heroico o esforço que fez Arnaldo para conter-se ao ouvir o nome de D. Flor d'envolta com taes effusões. Reagindo ao violento impulso que o arrojava contra aquelles homens, arrancou-se d'ali, e affastou-se precipitadamente.

     De longe voltou-se.

     Na sala, à claridade das lampadas, destacava-se o vulto elegante de Marcos Fragoso que se erguera da meza.

     O sertanejo murmurou :

     — Roga a Deus que te livre desta tentação.