O Sertanejo/II/III
A cavalgada chegara a uma ligeira eminência donde se dominava toda a planura em tôrno.
Era daí que melhor podia-se apreciaro aspecto dessa natureza múltipla, que se desdobrava desde a baixa até as serras de Santa Maria, Santa Catarina e do Estêvão, agrupadas ao norte, e da serra do Azul, que aparecia mais longe para as bandas do Aracatí.
Nos tabuleiros um bando de emas apostavam carreira com os veados campeiros; as raposas davam caça às zabelês; e o tamanduá passeava gravemente hasteando o longo penacho de sua cauda à guisa de bandeira.
Pelas margens das lagoas os jaburús caminham lentos e taciturnos ou miram-se imóveis nas águas. As garças carmeiam com o bico a alva plumagem; e o maranhão dorme ainda, em pé no meio do brejo, com a cabeça metida embaixo da asa e uma das pernas encolhida.
Além aparecia ao longe um mar doce. Era o Quixeramobim, que pejado com as chuvas do inverno, transbordara do leito submergindo toda a zona adjacente. No meio dêsse oceano boiava uma coroa de terra, que a torrente impetuosa arrancara da margem, e que deslizava como uma ilha flutuante.
Uma vaca surpreendida naquela nesga do solo continuava a pastar muito tranquila o capim viçoso, e às vezes fitava admirada a margem, que ia fugindo rapidamente à sua vista.
A várzea estava coalhada de gado, que no comprido pêlo e no aspecto arisco mostrava ser barbatão. Os touros erguendo a cabeça por cima das franças do panasco, lançavam à comitiva um olhar inquieto.
— É boi como terra! exclamou o Daniel Ferro com o seu falar sertanejo.
— Nem porisso, observou Ourém. Pela notícia, esperava outra coisa. Alí haverá quando muito umas cem cabeças.
— Êsse é o que está no limpo, a descoberto; e o outro? acudiu Agrela?
— Aonde?
— Por dentro do capim. Repare quando dá o vento!
Depois de uma breve pausa, para descanso dos animais, os cavaleiros preparavem-se para começar a montearia.
Como se tratava principalmente de campear os touros bravos por divertimento, o vaqueiro do Bargado com seus rapazes, deu cêrco à várzea, tangendo o gado para o limpo, a fim de escolherem os cavaleiros os touros que deviam correr apostados entre si, como era costume nessa caçada original.
Estava o capitão-mór e seus companheiros de observação, quando viram à desfilada o José Bernardo.
— Lá está o Dourado, sr. capitão, gritou êle de longe, mas velando a voz como receoso de ser ouvido além.
— Pois seja benvindo, o Dourado; ainda que eu não tenho a fortuna de o conhecer, ao tal senhor, disse o Marcos Fragoso galanteando.
— Pois não o conhece? acudiu o capitão-mór. É verdade que desde menino saíu do Quixeramobim, onde nasceu e criou-se; senão havia de ter notícia dele.
— É então algum façanhudo? tornou o mancebo no memo tom.
— Tem fama por todo êste sertão, respondeu gravemente o capitão-mór.
— E a fama já chegou aos Inhamuns, acrescentou Daniel Ferro.
— Pode ser; nunca ouví falar dele.
— Porque há três anos que o primo Fragoso lá não vai; o Recife enfeitiçou-o.
— Mas em suma, senhores, atalhou o Ourém curioso; quem é êsse ilustre e famoso Dourado, do qual já que o nosso Camões não teve dele notícia, farei eu
«Que se espalhe e se cante no universo, Se tão sublime preço cabe em verso.»
O capitão-mór voltou-se para o padre Teles, que pelo jeito acumulava ao cargo de capelão o de cronista:
— Padre Teles, conte aos senhores a história do Dourado.
— O Dourado é um boi... ia começando padre Teles.
— Um boi? atalhou o Ourém desconsertado.
— Eu também pensei que era algum valentão, observou o João Correia que partilhara da surpresa.
— E eu tinha por certo que era o rei daquele célebre encantado, de que tanto se fala, e que debalde procuraram os descobridores, inclusive o nosso Pero Coelho. Mas talvez que o El-Dourado virasse boi! tornou Orém.
— Boi, sim! afirmou o capitão-mór por sua vez admirado da estranheza do licenciado. Então que pensavam os senhores? É um boi destemido e que tem zombado dos melhores vaqueiros dêste sertão. Há sete anos que êle apareceu, e até hoje ainda não houve quem se gabasse de pôr a mão no Dourado.
O capitão-mór falou com ufania, como se as proezas do animal se contassem entre os brasões de sua fidalguia sertaneja. Nisso mostrava bem que era cearense da gema.
— Nem o Louredo, nosso vaqueiro, pai do Arnaldo... Onde está êle?
O fazendeiro voltara-se para procurar com a vista ao rapaz; mas não o encontrou.
— Nem o Louredo, que foi o mais afamado campeador de todo êste sertão, pôde com o Dourado; e não foi por falta de vontade, que uma vez andou-lhe uma semana inteira na pista. Mas também tal mêdo tomou-lhe o boi, que levou um sumiço grande... Há bem quatro anos que não se tinha notícia dele. Não é isso, padre Teles?
— Há de fazer pela páscoa, sr. capitão-mór, respondeu o reverendo.
— Já vejo que o Dourado é um herói, um touro de Maraton, que ainda não encontrou o seu Teseu.
— Todavia não é para comparar-se com o Rabicho da Geralda! observou o Daniel Ferro.
— Temos outro barão assinalado? acudiu o Ourém.
— Dêste, já eu tinha notícia. Há uma antiga de vaqueiros, acudiu João Correia.
— Ainda esta noite os rapazes a cantaram lá no Bargado, tornou Daniel Ferro, que entoou a primeira quadra da trova.
Eu fui o liso Rabicho
Boi de fama conhecido
Nunca houve neste mundo
Outro boi tão destemido.
Padre Teles, que fôra atalhado na sua crônica do Dourado, aproveitou o ensêjo para introduzir também a sua quadra:
Minha fama era tão grande
Que enchia todo o sertão;
Vinham de longe vaqueiros
Pra me botarem no chão.
— Já vejo que êste foi uma espécie de Minotauro, pois tinha de homem a fala, observou o Ourém que ria-se daqueles entusiasmos sertanejos.
O capitão-mór ordenou silêncio com um gesto para opor a seguinte contestação:
— O Rabicho da Geralda, sr. Daniel Ferro, foi sem dúvida um corredor de fama. Nós ainda conhecemos o José Lopes, vaqueiro da viúva, que nos contou as proezas de seu boi. Mas nosso parecer é que não chegava ao Dourado.
— Veja o sr. capitão-mór queo Rabicho zombou dos melhores catingueiros de todos êstes sertões, até do Inácio Gomes que ainda hoje tem nome na ribeira do São Francisco.
— Não era nada à vista do Louredo, nosso vaqueiro; pode acreditar, que é a verdade.
— O Rabicho andou onze anos fugido, sem que se tivesse notícia dele; e o Dourado, como o sr. capitão-mór mesmo disse, só há sete anos é que apareceu.
— Onze anos? interrogou o fazendeiro:
— A cantiga diz:
Onze anos eu andei Pelas caa ingas fugido; Minha senhora Geralda Já me tinha por perdido.
O argumento tirado da cantiga, embaraçou o capitão-mór, que voltou-se para o ajudante:
— Que lhe parece, Agrela?
O ajudante acudiu pronto.
— É certo, senhor alferes, que o Dourado, como disse muito bem o sr. capitão-mór, só há sete anos apareceu; mas ninguém sabe quantos anos andou sumido pelas serras, sem que se soubesse dele. Ora, sendo um boi ainda novo, como atestam quantos o conhecem, não é muito que viva ainda uns vinte anos e mais.
— Então que diz a isto? perguntou o capitão-mór triunfante com a argumentação de seu ajudante. Vinte anos para onze!...
— Ainda não me rendo, tornou o Daniel Ferro. Se o Dourado pode durar ainda vinte anos, o que não nego, o Rabicho com certeza chegaria aos trinta, se não viesse aquela sêca tão grande. Foi preciso ela para acabar com aquele boi.
O capitão-mór outra vez embaraçado volveu o olhar ao ajudante que não demorou a réplica.
— Aí está a diferença. O Rabicho acabou com a sêca, e o Dourado escapou dela, como escapará de todas as outras por maiores que sejam.
— Está vendo? concluiu o fazendeiro peremptoriamente. Pode jurar em nossa palavra, sr. Daniel Ferro. Nunca houve boi como o Dourado; quem lho diz é o capitão-mór Gonçalo Pires Campelo; se alguém disser o contrário, mentiu.
Em vista desta afirmação categórica, o Daniel Ferro hesitou na réplica; pois o argumento do sofístico ajudante não o convencera. Mas era teimoso, e em risco de incorrer no desagrado do potentado, ia sustentar a sua opinião, quando felizmente ocorreu uma circunstância, que pôs têrmo ao incidente.
Era tempo. O Agrela previra o efeito que a insistência do Daniel Ferro ia produzir no capitão-mór, cuja vontade imperiosa não sofria a mínima contrariedade e estava acostumada a ser, não somente obedecida como lei, mas aceita como ponto de fé.
Receando, pois, que a partida de prazer tão aprazivelmente começada, fosse interrompida por um desagradável conflito, o ajudante aproveitou-se do primeiro pretêsto para desviar da disputa a atenção do potentado:
— Lá está o Dourado! exclamou com grande alardo, apontando para a várzea. Senhores, o Dourado!...
O capitão-mór adiantou-se para ver o famoso corredor. D. Genoveva e as moças aproximaram-se com viva curiosidade. Marcos Fragoso, Ourém e o capelão que falavam com as senhoras justamente acêrca do herói, acompanharam o seu movimento.
Agrela tinha apontado a esmo para um boi, cuja côr pudesse até certo ponto desculpar o engano. Mas o acaso incumbira-se de tornar certo o seu dito; pois precisamente naquela ocasião, o rei dos pastos de Quixeramobim, assomava no descampado.
Era um boi alto e esguio. Seu pêlo isabel na côr, longo, fino e sedoso, brilhava aos raios do sol com uns reflexos luzentes, que justificavam o nome dado pelos vaqueiros ao lindo touro. Em vez das largas patas e grossos artelhos dos animais de trabalho, êle tinha as pernas delgadas e o jarrête nervoso dos grandes corredores.
Os chifres não se abriam para diante em vasta curva, mas ao contrário erguiam-se quase retos na fronte como dardos agudos e à semelhança da armação do veado. Esta particularidade indicava que o barbatão não se criara nas várzeas, mas que desde garrote se acostumara a bater as brenhas mais espêssas e a atravessar os bamburrais emaranhados.
Azara refere ter visto no Paraguai muitos exemplares desta espécie de chifres verticais e direitos, a que alí dão o nome de chivos.
O Dourado trazido pelos fábricas de José Bernardo, havia parado no meio da várzea. Em sua atitude garbosa, reconhecia-se a altivez do touro bravio, filho indômito do sertão, nascido e criado à lei da natureza. Tinha êle a majestade selvagem das feras, que percorrem livres o deserto e não reconhecem o despotismo do homem.
Com o pescoço curvo e a fronte alçada, o touro lançava aos cavaleiros um olhar de desafio, batendo o costado com a ponta da cauda arqueada, e escarvando o chão de leve com a unha direita. Um borborinho surdo ressoava no vasto peito, que sublevava-se para soltar o mugido.
Todavia não se notava neste aspecto a sanha terrível do touro sanguinário, que arroja-se ao combate cego de furor, e dilacera a vítima com as pontas aceradas, ou vai cair aos pés do inimigo exhausto pelos ímpetos violentos.
O Dourado tinha a coragem calma, êle conhecia o homem, e estava habituado a afrontá-lo. No olhar com que observava os cavaleiros, descobria-se unida à segurança do corredor, que não teme ser vencido, a sagacidade do boi manhoso e experiente que calcula o perigo, e sabe acautelar-se.
— Então é aquele o vitelo de ouro, reverendo? disse Ourém, voltando-se para o capelão. Vitulus conflatilis!
— Neste caso, senhor licenciado, replicou Padre Teles, é preciso seguir o exemplo de Moisés, que o queimou, reduziu a pó, dissolveu em água e o deu a beber aos filhos de Israel; combussit et contrivit usque ad pulvere, quem sparsit in aquam et dedit in eo potum filii Israel. Êxodo, cap. 32, versete 20.
— Em o nosso caso não acha, reverendo padre Teles, que bastaria assá-lo para o almôço?
— É o que eu estava pensando, sr. licenciado; e creio que o consumiríamos melhor assim ou numa boa açorda do que pelo processo de Moisés.
Enquanto o licenciado e o capelão faziam êstes gastos de erudição bíblica, as outras pessoas trocavam suas observações acêrca do Dourado.
D. Flor também contemplara o animal com satisfação, pois tinha seu instinto de sertaneja, filha daqueles campos e neles criada. Além disso possuia o sentimento do belo, e sabia admirá-lo em todas as suas formas.
— O Dourado há de ter o meu ferro! exclamou com um arzinho de princesa que lhe assentava às maravilhas.
— Se levar algum, com certeza não será outro senão o seu, Flor; disse o capitão-mór.
A donzela soltando a exclamação a que o pai acabava de responder, insensivelmente volvera o olhar e encontrou Arnaldo que pouco antes se aproximara do grupo. Ao tôrvo e sombrio aspecto do mancebo, e talvez à lembrança do que acontecera com a flor, desviou a vista rapidamente.
— Então, senhores, vamos ao Dourado? disse o capitão Marcos Fragoso.
— Ao Dourado! exclamou Daniel Ferro.
— É à-toa, só para correr, ponderou o capitão-mór. O Dourado, não há quem lhe deite a unha; dos que estão aquí, não desfazendo em ninguém, só vejo o Arnaldo, nosso vaqueiro, filho do Louredo, mas quando tiver a experiência do pai.
— Não conheço, disse Marcos Fragoso desdenhosamente.
O capitão-mór acenou para Arnaldo.
— Vem cá, rapaz. Aquí está: basta olhar, para ver o filho de quem é.
Os dois mancebos trocaram um olhar rápido. Fragoso adivinhou que tinha em Arnaldo um inimigo. Arnaldo conheceu que fôra compreendido: e isso causou-lhe íntima satisfação. Na sua lealdade, estimava que o adversário estivesse prevenido de seu ódio, para que não lhe imputasse uma perfídia. Essa primeira advertência, êle pretendia dá-la, ainda mais fraca, logo que chegasse o momento de executar a sua resolução.
— Que dizes, Arnaldo? És capaz de tirar o feitiço ao Dourado?
— Não sei, sr. capitão-mór; ainda não lhe dei uma corrida: porisso não posso avaliar. Mas até hoje não encontrei boi que deitasse poeira no Corisco, disse o sertanejo singelamente e alisando a clina do cardão.
— Pois afianço-lhes eu, senhores, que o Dourado vai dar a sua última carreira, exclamou Marcos Fragoso, brandindo a vara de ferrão com galhardia. Terei a honra de oferecer-lhes ao almôço uma costela de herói.
— Eu prefiro o lombo, disse o capelão.
— O principal é outro porém, continuou o mancebo exaltando-se. Entre os mimos de noivado que tenho de oferecer breve à formosa das formosas, figura um par de sandálias mouriscas de veludo, cravejadas de pérolas; e aquí neste momento, diante destas damas, do sr. capitão-mór e de quantos me ouvem, os quais todos tomo por testemunhas, faço votos de tirar as solas das sandálias do couro do Dourado, com a minha própria mão!
— Não é mal lembrado, observou Ourém. Naturalmente foi de algum boi corredor como êste que o gigante fez as suas botas de sete léguas, e as fadas tiraram os seus chapins. Os coturnos de Mercúrio deviam ser do mesmo couro.
Marcos Fragoso referindo-se ao mimo de noivado, que destinava à formosa das formosas, dirigiu o olhar tão claramente a D. Flor, que todos compreenderam a alusão, exceto a donzela, que ainda estava distraída a ver o barbatão, e o capitão-mór que não atendendo ao gesto expressivo, deu às palavras do dono do Bargado outro e mui diferente sentido.
Entendeu êle que Marcos Fragoso já tinha ajustado casamento com outra moça. Êste fato o contrariou; mas porisso mesmo, bem longe de demovê-lo do projeto de casar o mancebo com D. Flor, mais o afirmou nessa resolução. O seu orgulho não sofria que o homem por êle escolhido para marido de sua filha, fosse capaz de recusar tão grande honra e favor, e preferir outra aliança ainda mesmo quando já estivera tratada.
Outro sentimento porém, e tão forte como êste, reagiu no fazendeiro. Foi o desgôsto pela jactância do Marcos Fragoso dando como certa a sua vitória sôbre o barbatão. O senhor de Quixeramobim sentia-se profundamente ofendido com essa presunção, que de algum modo o amesquinhava na pessoa daquele boi, que era como que uma glória dos seus vastos domínios, e cuja fama fazia de algum modo parte de sua importância.
— Ora! ora!... exclamou o capitão-mór com um grosso riso de mofa. Eu me obrigo a assar no dedo a carne que o senhor tirar do Dourado; mas também, se não pegar o barbatão, o que é certo, há de ter paciência que lhe mande um mamote para tirar a sola das tais chinelas. Está ouvindo?
— Topo, sr. capitão-mór, retorquiu Fragoso, picado ao vivo pela zombaria do fazendeiro; e juro-lhe que hei de fazer hoje melhor montearia do que pensa vossa senhoria.
Arnaldo, cuja atenção estava alerta, notou a inflexão particular com que o mancebo proferira as últimas palavras, e surpreendeu-lhe o olhar irônico lançado ao capitão-mór.
Também Agrela tinha observado êste pormenor; mas o atribuira a leve ressentimento causado pelo motejo do fazendeiro.
Não se imagina o esfôrço que desde o encontro das duas cavalgadas fazia Arnaldo para não precipitar-se contra Frgoso, quando êste aproximava-se de D. Flor e lhe dirigia os seus redimentos corteses ou fitava nela os olhos namorados.
Nunca êle tinha sofrido as dôres, que então o trespassavam, nem pensara que homem as pudesse curtir.