O Sertanejo/II/IV
As vaquejadas do gado bravio, ou montearias como ainda as chamavam à moda portuguesa e clássica, pouca diferença tinham quanto ao modo das que se fazem ainda agora no sertão, durante o inverno e depois.
Naquele tempo é certo que o gado barbatão multiplicava-se com prodigiosa rapidez; e os vastos campos incultos, bem como as florestas ainda virgens, ofereciam às manadas selvagens refúgios impenetráveis.
Daí provinham essas famosas correrias tão celebradas nas cantigas sertanejas, e nas quais os vaqueiros gastavam semanas e meses à caça de um boi mocambeiro, que êles perseguiam com uma tenacidade incansável, menos pelo interêsse, do que por satisfação de seus brios de campeadores.
O José Bernardo, portanto, havia espalhado sua gente de modo a fazer com o seio do rio o cêrco da várzea, tomando as saídas por onde o gado podia evadir-se. Êsse cordão vivo supria os muros das coitadas e fechava um vasto âmbito, no qual os cavaleiros podiam correr um ou mais touros e gozar assim das emoções da caça!
Tomadas estas disposições, correu o vaqueiro do Bargado a prevenir seu patrão de que podiam dar comêço ao divertimento.
— Então, senhores?... O campo está seguro, diz o meu vaqueiro, exclamou Fragoso.
— Pronto! acudiu Daniel Ferro, que ardia por mostrar a valentia dos filhos de Inhamuns.
— O senhor capitão-mór dará o sinal, tornou Fragoso com um gesto de deferência.
O velho Campelo afirmou-se na sela, e sobraçando à direita a vara de ferrão, soltou o brado estridente do vaqueiro ao disparar, voz que traduz-se aproximadamente por esta interjeição:
— Ecou!...
Ao grito do capitão-mór, outros reboaram; e os seis cavaleiros arremessaram-se da ladeira abaixo no encalço do Dourado.
O touro barbatão respondera ao grito dos vaqueiros com um mugido manhoso e afastara-se à meia carreira, como para poupar as suas fôrças ou medir as do inimigo. De vez em quando voltava a cabeça para ver o avanço que levavam os cavaleiros.
As senhoras ficaram na eminência, guardadas pela escolta e acompanhadas do padre Teles, que viu com um suspiro afastarem-se os outros e lembrou-se com saudades dos tempos, em que na ribeira do Choró êle campeava os garrotes e novilhos barbatões, montando em pêlo no primeiro cavalo que apanhava dos magotes soltos pelo campo.
Padre Teles tinha um tanto da polpa dêsses padres sertanejos, de que houve tão grande cópia até 1840; sacerdotes por ofício, êles envergavam a batina como uma couraça; e lá se iam pelo interior à cata de aventuras. O capitão-mór, porém, era formalista e não admitia costumes profanos em seu capelão.
Também D. Genoveva, se não fosse o recato de seu sexo, de que o marido não a dispensava, ainda mais em presença de estranhos, tomaria parte na montearia, para que se julgava com ânimo e disposição. Era ela destemida cavaleira; e de-certo desempenhar-se-ia melhor da emprêsa do que o Ourém e o Correia, moradores da cidade, e não afeitos a êsses exercícios dos nossos campos.
—Vamos nós também divertir-nos, Flor, disse a dona, lançando o cavalo avante.
— Anda, Alina! exclamou a donzela, seguindo a mãe.
Padre Teles a pretêsto de acompanhar as senhoras, lá se foi também com elas a campear as novilhas que pastavam alíperto. A-pesar-de não ser êsse gado barbatão como o outro, todavia não era de todo manso, e às vezes a rês perseguida voltava-se para atirar uma marrada, que as destras cavaleiras evitavam no meio de risada e folgares.
Mais tímida, Alina deixara-se ficar na colina; e depois de alguma hesitação aproximou-se de Arnaldo, o qual ainda imóvel no mesmo lugar, seguia de longe a corrida com um olhar ávido e sôfrego.
— Não foi campear, Arnaldo? disse a moça à meia voz.
— Não, Alina! respondeu o sertanejo concisamente sem tirar os olhos da várzea.
— Eu sei a razão! tornou a órfã com uma reticência misteriosa.
Arnaldo olhou-a de través para surpreender-lhe no rosto o pensamento.
— Foi para ficar perto de mim. Não acertei? disse Alina com um sorriso de melancólica faceirice.
Arnaldo fechou-se e retorquiu em tom breve e esquivo:
— Não gosto destas caçadas. Campear é no largo, onde o boi acha mundo para fugir; e mão fechá-lo como num curral para ter o gôsto de o matar depois de cansado. Um vaqueiro não sofre isto. Aquí está a razão por que fiquei, Alina.
— Ah! eu sabia que não era por mim; disse-o brincando. A sra. D. Genoveva não me chama sua noiva, Arnaldo? É para zombar de mim!
Alina proferiu esta frase com o mesmo tom de faceira melancolia, e tão queixoso, que Arnaldo sentiu-se comovido.
— Não é de você, Alina, que zombam; mas de mim. Eu não sou vaqueiro; sou um filho dos matos, que não sabe entrar numa casa e viver nela. Minhas companheiras são as estrêlas do céu que me visitam à noite na malhada; e a jurutí que fez seu ninho na mesma árvore em que durmo. Seu noivo deve ser outro. Eu lhe darei um que a mereça.
— Já tenho, disse Alina.
— Qual? perguntou Arnaldo surpreso.
— Não é da terra, não. Esta lá perto das estrêlas, suas companheiras: é o céu.
Arnaldo não atendeu à resposta da moça. Um acidente que ocorrera alí perto, na falda da colina, acabava de surpreendê-lo.
D. Genoveva e a filha continuavam a perseguir as reses que lhes ficavam próximas, e padre Teles, um tanto emancipado,com a ausência do capitão-mór, acompanhando-as nesse folguedo, empunhava um ramo de cauaçú que êle quebrara para fazer as vezes de aguilhada.
D. Flor tinha nessa manhã um pequeno chale escarlate de garça de sêda que lhe servia de gravata, e cujas pontas flutuavam-lhe sôbre o peito do vestido de montar. Lembrando-se que a côr vermelha tem a propriedade de enfurecer os touros, os quais supondo ver o sangue, tornam-se ferozes, a temerária donzela desatou a faixa, e começou a agitá-la como uma bandeirola para irritar as reses e gozar do prazer de afrontar o perigo e escapar-lhe.
Entretanto um boi surubim, que estava escondido nas balsas de um alagado, surdiu fora, e lançou de longe para a moça, que não o via, um olhar traiçoeiro. Era um animal corpulento, de marca prodigiosa, como raros exemplares se encontram no sertão, hoje que as nossas raças domésticas estão decaídas daquele vigor primitivo que tomaram ao influxo e contacto do novo mundo.
De repente o barbatão, levado por seus instintos perversos, e também assanhado pelo chale escarlate que a moça imprudentemente agitava, abaixou a cabeça armada de chifres enormes, e arremeteu, bufando um surdo bramido.
D. Flor estava de costas, e não o viu. Ao vivo aceno de sua mãe assustada, voltou-se sorrindo e só então conheceu o perigo que a ameaçava. O touro vinha-lhe sôbre com a violência de uma tromba. Corajosa como era, não se atemorizou a donzela; mas tomada de surpresa como fôra, tinha hesitado um instante e tanto bastou para frustrar a sua calma e destreza. Quando o baio, obedecendo ao sofreio que o empinou, já rodava sôbre os pés para saltar e pôr-se fora do alcance do touro, êste chegava como a bala de um canhão.
Então um urro medonho encheu o espaço abafando o grito de aflição, que ao mesmo tempo escapara dos lábios de D. Genoveva e de Alina.
Arnaldo advertido pelo primeiro mugido do touro, volvera o olhar para o ponto, e vira a fera já no meio da carreira com que investia para a moça. Alina ouviu um arranco. Era o sertanejo que passava por diante dela, como um turbilhão.
D. Flor que se considerava já ferida pelas pontas do touro, admirou-se de estar ainda montada no baio, o qual se arrojara ao lado; e de achar-se incólume, sem outro dano além de um leve rasgão de sua roupa de montar. Voltando o rosto para o lugar, compreendeu então a donzela o que se passara.
Arnaldo, ao arrancar, tinha sacado o laço do arção da sela onde o trazia preso, e rolando-o acima da cabeça, o arremessara com a mão segura do vaqueiro, que nunca errou o boi à disparada. Apanhado pelos chifres, o sorubim estacara; e no repelão que dera para safar-se, havia furado a fralda do roupão de D. Flor.
Esbarrado em seu ímpeto, o touro soltando o urro medonho que ribombou até o fundo da floresta, redobrara de furor. Rodando para fazer frente ao adversário, escorou-se no laço, a cavar o chão com as unhas, e a amolar as pontas na terra. Quando acabou de visar bem o alvo, partiu como um tiro de morteiro.
Arnaldo deitara-se sôbre o arção, alongando a vara de ferrão pela cabeça fora do cavalo e apoiando o cabo na coxa, forrada não só pela perneira, como pelo gibão de couro. Assim em guarda correu êle sôbre o touro e topou-o no meio da carreira.
O aguilhão afiado cravara-se no meio da testa do touro, que recuou trespassado pela dôr. Com o ímpeto a vara tinha vergado como um arco prestes a romper-se; e o cavalo foi repelido a três passos para trás. Mas o sertanejo não se abalara da sela.
Ourém que observou de longe a cena repetia ao João Correia êstes versos de Camões:
Qual o touro cioso que se ensaia Para a erma peleja, os cornos tenta No tronco de um carvalho ou alta faia. E o ar ferindo, as fôrças experimenta.
Recolhendo a vara, Arnaldo dera liberdade ao cardão, que reatou a desfilada um instante suspensa pelo tope, e passou ao lado do sorubim, o qual também de seu lado prosseguia na investida.
Chegados ao extremo da corrida, ambos, o touro e o cavalo, voltaram-se rapidamente; pararam um instante, o touro a fazer pontaria, o cavalo a esperá-la, e partiram ambos como da primeira vez para novamente esbarrarem-se a meio da carreira.
Assim divertiu-se o sertanejo em excitar a sanha do touro furioso, e topá-lo na ponta da vara de ferrão. Depois de ter brincado com êle, como um gato com o ratinho, a quem deixa fugir por negaça e para ter o prazer de o filar outra vez, o rapaz em vez de recebê-lo na ponta do aguilhão, desviou o cavalo do ímpeto, e alongando-se com o animal, torceu-lhe a cauda entre dois dedos e com um jeito especial a que no sertão chamam mucica.
O possante animal tombou por terra, como se uma clava o abatesse. Sem apear-se o sertanejo retirou o laço, e com uma rapidez de maravilhar deu um talho no rejeito das mãos, com o que peou completamente o animal, e tornou-o inofensivo.
Terminada esta operação, que não consumira com a luta precedente mais de minutos, Arnaldo veio postar-se no mesmo lugar que anteriormente ocupava na chapada da colina, e donde continuou a observar a corrida que os cavaleiros davam no Dourado.
No momento em que o capitão-mór partira com os outros campeadores, Arnaldo não se influira. Como dissera a Alina, êle não gostava daquelas correrias em que os homens assaltavam insidiosamente os touros, tomando-lhes os passos por onde poderiam evadir-se. Parecia-lhe isso pouco generoso. Um bom campeador já tinha demais a rapidez de seu cavalo para pedir ainda auxílio de outros vaqueiros.
Todavia ficara de observação, porque se o Marcos Fragoso se mostrasse capaz de pegar o Dourado, êle propunha-se a arrebatar-lhe a satisfação dêsse triunfo como já fizera uma vez; e consigo mesmo tinha jurado que as solas daquelas chinelas de que falara o namorado capitão, se êste chegasse a cortá-las, teriam feito a última proeza de sua vida.
Tornando agora a seu ponto de observação, continuou a acompanhar a corrida; mas já então excitado pelo assalto do sorubim, dava combate a si para permanecer alí imóvel, quando lá estava um boi famoso a desafiar os seus brios de campeador.
Entretanto a corrida prosseguia com vários acidentes no meio do alarido dos cavaleiros, e do estrépito com que a gente postada pela várzea afugentava o gado acossado que buscava escapar-se do circo.
Logo no princípio o Ourém e o João Correia mostraram que não basta envergar uma roupa de couro para tornar-se vaqueiro. Não eram maus cavaleiros de cidade; mas coisa mui diversa é correr em um campo alagado e coberto de mato, onde de repente falta o solo ao cavalo, e o espaço ao homem.
Daniel Ferro, êste desempenhara galhardamente as barbas dos vaqueiros de Inhamuns; e o Campelo a-pesar-de sua corpulência não lhe ficava atrás. Quanto ao Agrela, sabia que sua obrigação era ir ao pé do capitão-mór, e assim o acompanharia ao inferno.
O melhor cavaleiro porém, aquele que ia na frente e com muito avanço, era o Marcos Fragoso. Além de ágil e consumado na arte da equitação, como nas outras próprias dos mancebos nobres de seu tempo, êle montava um soberbo cavalo dos Cratiús, e corria atrás de um troféu para o seu amor. Nem o cavalo, nem êle, careciam de um aguilhão, pois eram briosos ambos; mas o primeiro sentia o roçar da espora, e o segundo passava no remoque do capitão-mór e do desgôsto que sofreria, se não cumprisse o voto feito a D. Flor.
Quando Arnaldo voltara à colina, Fragoso acreditava que o Dourado não lhe podia escapar. O boi corria frouxamente; e mal guardava entre êle e o cavaleiro a distância de cem passos. Metia-se nas moitas que encontrava pelo caminho, como para descansar um momento, e dava todas as mostras de fatigado.
Era um boi astuto e manhoso, o Dourado. Êle sabia que estava cercado, e embora não tivesse perdido a esperança de escapar-se, contudo receava encontrar por diante homens armados de varas que lhe embargassem o passo. Assim tinha por mais prudente cansar primeiro os cavalos e para isso fingia-se êle estafado, a fim de exercitar os campeadores a apertar a carreira na esperança de o pegar.
Entretanto, D. Flor aproximara-se de Arnaldo. A donzela, como sua mãe, não tinha agradecido ao mancebo o ato de destreza com que lhe salvara a vida. Era isso um fato natural, e que não lhes granjeara nenhuma gratidão; ambas conheciam a dedicação do filho da Justa, e recebiam dele essas provas de amizade, como as receberiam de um parente, de uma criatura sua.
A donzela, porém, lembrou-se que Arnaldo conservava um ressentimento dela, desde a noite do mimo, em que talvez fôra injusta; e aproximou-se para com uma palavra meiga e afetuosa aplacar seu ânimo suscetível e ríspido.
Mas no momento em que chegava a seu lado, Arnaldo arrancando o cardão em um salto, disparava pela colina abaixo, soltando êsse brado pujante, que o sertanejo aprendeu do índio, seu antepassado.
Êsse brado é como o rugido do rei do deserto; êle tem a fereza do bramir do tigre, e a vibração do rugir do leão; mas quando repercute na solidão sente-se que há nessa voz uma alma que domina a imensidade.
Que sentimento impelira assim o sertanejo? Fôra o receio de que o Fragoso triunfasse, ou o desejo de subtrair-se ao agradecimento de D. Flor?
Talvez um e outro motivo.