O Tronco do Ipê/I/XIII
A mãe de Mário que não cessara de mostrar por sinais bem visíveis sua inquietação, afinal não se podendo mais conter, aproximou-se da mesa onde conversavam as outras senhoras.
— Senhora baronesa, disse ela com timidez: V. Ex.a consente que mande alguma pessoa ver onde está meu filho?
— Mário foi passear com as meninas, com Alice e a Adélia, acudiu D. Luíza com bondade. Eu vi-as quando saíram; íamos almoçar.
— Estou tão desassossegada! Parece-me que alguma cousa lhe está acontecendo. Quem sabe, meu Deus! Se a senhora baronesa me desse licença, eu mandaria...
Durante todo este tempo a baronesa, entretida em folhear um álbum de gravuras, não mostrara dar a menor atenção a D. Francisca, apesar do tom respeitoso com que esta lhe falava.
— Não há aí ninguém desocupado. Todos são precisos para o serviço da casa! disse afinal a baronesa na ponta dos beiços e voltando o rosto para o outro lado.
— Desculpe V. Ex.a, eu pensava...
D. Francisca fez uma reverência, que terminou a sua frase, cortada por uma ligeira opressão. Retirando-se da sala, desceu ao jardim, com intenção de procurar seu filho.
Ela sabia que não teria forças para ir muito longe, com a cabeça exposta ao sol do meio-dia; mas o coração a arrastava. Do modo desdenhoso por que a baronesa a tratava, e da recusa que sofrera, já não se lembrava; estava tão habituada a essas maneiras que não lhe causavam mais grande impressão.
O suplício de viver da compaixão alheia, comendo o pão saturado com as lágrimas da humilhação, esse martírio, padecia-o ela a todas as horas e a todos os instantes. Mas a dor cruciante desse crivo d'alma já não lhe deixava sensibilidade para sofrer com o pungir de cada espinho.
A baronesa acompanhara com um olhar de través a viúva quando esta saía da sala.
— Dá-me vontade de rir!...
E seu lábio desdenhoso soltou uma risadinha de escárnio.
— A tal senhora, não contente de ter casa para si e seu filho, sustento, roupa e escravos, ainda não está contente. Quer pôr e dispor de tudo. Não sou mais senhora em minha casa; não posso dar uma ordem que não a contrarie e disponha a sua vontade.
— Mas, baronesa, ela pediu licença!... observou D. Luíza.
— Agora; porque estávamos todos aqui na sala. Isso também era demais! Porém outras vezes, não se dá a esse trabalho; vai mandando como se estivesse em sua casa.
— Essa gente é assim mesmo, acudiu D. Alina. Não se pode protegê-los, que não abusem logo.
— Coitada! Ela está com cuidado no filho! disse D. Luíza aproximando-se da janela.
— Qual! Não creia nisso, D. Luíza. São partes; quer se tornar interessante.
— Cuidado no filho!... repetiu D. Júlia com o seu risinho desdenhoso. Sabe você o que é esse menino? É um demoninho em corpo de gente. Ninguém pode imaginar as artes que ele faz. É um desespero! Tem escapado não sei quantas vezes de torcer o pescoço e espedaçar-se de cima de uma árvore ou de um cavalo. Se fosse somente isto! E os estragos que causa? Não posso ter uma flor, uma fruta!...
— É muito travesso, replicou D. Luíza na janela e sorrindo; eu já percebi!
— Pois quem tem um filho assim, anda com estas cousas? Não é ridículo?...
— Muito! observou D. Alina.
— Parece que ela traz aquele filho sempre cosido consigo, e como hoje separou-se dele um momento, já está cheia de cuidados, e precisa de um pajem para ir procurar o nenê! Um rapazinho que passa dias e dias aí pelo campo, sem pôr o pé em casa mais do que para dormir.
— Olhe, disse D. Luíza apontando; lá vai D. Francisca em busca do filho. No fim de contas ela tem razão. Este passeio já está me dando cuidado!
— Deixe-se disso, D. Luíza. Alice não anda passeado também? E eu tenho algum cuidado? Foram bem acompanhadas. A tal senhora... É por pirraça que ela faz isto; como não levou a sua avante, toma esses ares de vítima... Eu bem sei para que!...
A baronesa procurava sofrear um assomo de ira que agitava a sua natureza apática, mas biliosa e irritável. As rosas das faces de ordinário desmaiadas se animaram; a pupila frouxa de seus grandes olhos despediu uma chispa.
D. Alina porém ali estava para soprar naquelas brasas e levantar a labareda.
— Cuida que o barão sabendo que ela foi em busca do filho, ficará com pena e tomará seu partido. Não é? disse a viúva com a voz melíflua, relanceando entre as pestanas um olhar oblíquo à baronesa.
Esta continuava a folhear, mas automaticamente, as folhas do álbum; ouvindo a última observação fechou com força o livro e atirou-o sobre a mesa arrebatadamente.
— Cuida; mas engana-se! Tudo tem um termo, estou cansada. Hoje mesmo vou falar ao barão. É preciso que esta mulher e seu filho deixem a minha casa; do contrário não respondo por mim.
— Está bem, baronesa, não se aflija; deixe de pensar nisto! disse D. Luíza chegando-se para a amiga e tomando-lhe a mão.
A alma de D. Alina se expandira vendo o primeiro fermento da cólera da baronesa. Há naturezas assim, que se deleitam com a destruição; espécie de abutres morais, vivendo da dissolução da família e da sociedade. Aquele caráter pertencia a esta classe; tinha o instinto da intriga; regozijava-se com as recriminações e dissidências.
Vendo a mulher do conselheiro serenar o espírito da baronesa, D. Alina incomodou-se mais do que se a privassem de um teatro ou de um baile; e por isso lançou no coração da dona da casa outra gota de fel.
— Quer meu conselho, senhora baronesa? Guarde para depois; hoje não é bom dia.
— Por quê? perguntou Júlia com altivez.
— Não vê como o barão está carrancudo!
— Que tem isto?
— Pode não lhe fazer a vontade.
— Veremos!... e a baronesa gorjeou um riso orgulhoso.
— Por que será mesmo que o barão está hoje com uma cara tão amarrada? insistiu D. Alina.
— Ora não sabe?... É a história do marido da tal mulher. O que morreu aí na lagoa.
— Ah! já sei!... É verdade! Faz anos hoje; 15 de janeiro!
— A senhora deve lembrar-se bem! Era seu enteado!
D. Alina suspirou:
— Se me lembro!... Então era eu senhora aqui!... Seriam onze horas da noite quando vieram correndo dar a notícia. Meu marido ouviu, antes que se pudesse evitar...
As recordações de D. Alina continuariam, se a baronesa evidentemente aborrecida não se erguesse para chegar à janela. Talvez o desejo de ver onde ia a mãe de Mário a impelisse maquinalmente.
O ruído da cadeira arrastada pela baronesa ao levantar-se e o ruge-ruge do vestido arrancaram o barão de seu profundo recolhimento, se, como parece mais natural, o espírito fatigado de tão longa concentração, não veio de si mesmo à superfície, para renovar o fôlego.
Como quer que fosse, o barão percorreu o aposento com os olhos ainda embotados; e passando por diversas vezes a mão na fronte para alisar os cabelos ou desafogar o cérebro, recobrou-se da funda abstração.
Nos homens robustos sucede às grandes contenções do espírito, a necessidade de fortes exercícios do corpo. É o equilíbrio do organismo que reclama essa compensação.
Lembrou-se o barão de dar um passeio; mas o exercício corpóreo não bastava para serenar seu espírito, ainda torvo e sombrio. Para estes momentos aziagos, para essas noites lúgubres de sua alma, ele tinha um sorriso, uma estrela, que vertia em seu coração angustiado os orvalhos celestes.
Era Alice.
Se não fosse o lindo anjo louro, quem sabe quantas vezes sua alma atribulada não se houvera lançado nalguma voragem, aberta para devorá-la, numa dessas paixões indômitas que arrastam o homem, como o corcel de Mazeppa, ou talvez nesse báratro insondável onde se afoga a razão na loucura.
Mas quando o abismo se abria diante de sua carreira desvairada, quando chegara à borda e ia precipitar-se, um elo invisível o prendia. Era o anjo que lhe falava ou lhe sorria; era a mão dessa gentil menina que perpassando-lhe na fronte, dissipava como por encanto as tempestades acumuladas ali dentro; era a lembrança da filha, que iluminava como um raio de esperança a treva espessa da sua alma.
— Alice! disse ele chamando.
E como não visse a menina na varanda, perguntou dirigindo-se ao grupo das senhoras:
— Onde está Alice?
— Foi passear! respondeu a baronesa recostada à janela.
— Onde?
— Por aí.
— Foi visitar a Chica... Não é assim que se chama a preta? disse D. Luíza para a baronesa.
— Foi?... exclamou o barão com sobressalto, e interrogando a baronesa. Foi à cabana de Benedito?
— Parece, respondeu a baronesa tranquilamente.
— Já proibi que Alice fosse a esse lugar, a não ser em nossa companhia. Quem lhe deu licença?
— Eu, e aqui mesmo em sua presença. Não tenho culpa que estivesse distraído.
— Mas, senhora; não se lembra dos desastres que tem havido naquele lugar?
— Ela foi bem acompanhada. Nem vai se meter lá no boqueirão.
— E no dia de hoje, meu Deus! murmurou o barão sem escutar a mulher, e dirigindo os olhos para o lado do rio.
— Não há de acontecer nada, barão, disse o conselheiro aproximando-se. Adélia também foi e eu estou tranquilo.
— Há muito tempo que saíram? perguntou o barão sôfrego.
— Há mais de duas horas. Eu também estou inquieta, disse a mulher do conselheiro. D. Francisca já se foi atrás do filho.
— Mário! murmurou o barão. Ele também?
— Até o meu Lúcio, que chegou tarde, lá anda em busca dos outros.
O barão tocou precipitadamente a campainha:
— Sela meu cavalo, já! disse ao pajem que tinha acudido ao chamado.
— Vai até lá, barão?
— Estou impaciente, contrariado; este passeio me fará bem.
— Aflige-se, porque quer! Não é a primeira vez que Alice tem ido ver a Chica; e ainda não lhe sucedeu cousa alguma. Hoje é que havia de acontecer todas as desgraças porque... porque à onze anos um homem afogou-se na lagoa!
A baronesa proferiu estas palavras acompanhando com um olhar de indiferença os gestos do barão, o qual depois de procurar o chapéu, afivelava as esporas.
— Compadre!
— Que ordena, Ex.ma? acudiu Domingos Pais açodado.
— Prepare o gamão! disse a baronesa com a maior pachorra.
Em um momento o compadre arranjou o tabuleiro sobre a mesa, e de pé, ao lado, com o copo de marfim em punho, chocalhando os dados, esperou que a baronesa lhe fizesse a honra de dar o costumado capote.
— Às ordens de V. Ex.a.
Momentos depois corria o pai de Alice a todo o galope para a cabana de Benedito.
— Vontade de passear! disse a baronesa com ironia.
— O barão é extremamente nervoso! observou o Conselheiro Lopes em tom categórico.
O caminho que seguia o barão a cavalo, corria ao lado do jardim e pomar, perlongando-os. A meia distância, o cavaleiro ouviu um queixume.
— Quem está aí? perguntou.
— Viu Mário, senhor barão?
— Ah! D. Francisca!
— Meu filho!... Creio que sucedeu-lhe alguma desgraça.
O barão fincou as esporas e o cavalo partiu de novo recuperando o tempo perdido.
De repente dois gritos soaram-lhe como o eco um do outro. Era o grito de Mário sobre o rochedo, e o da mãe que desmaiara no pomar.
Atirar-se do animal, galgar a cabana, seguir a direção indicada pelas vozes, foi o primeiro ímpeto do barão chegando à falda do rochedo.
Ele passou rápido, mudo e hirto por entre as pessoas que encontrava no seu caminho, e sem demorar-se para dirigir uma pergunta e ouvir uma palavra, só estacou na Lapa, transido ante o espetáculo que se apresentava a seus olhos.