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O Tronco do Ipê/II/III

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— Onde vai você, Alice? perguntava Adélia.

— Correr a lida, respondeu a menina descendo a escada da copa. Quero ver o que fizeram por aí.

— Por que não manda alguém?

— Se eu tenho prazer nisso! Já tirou a cocada do fogo, Vicência? Manda ver as compoteiras de cristal, Eufrosina. E esta clara? É preciso bater já para os suspiros. Olha lá, quero um suspiro bem alvo e bem doce, como os que saem desta boquinha. Ah! e a sua prenda, minha senhora? Há de cumpri-la; tome.

Dizendo estas palavras, Alice estalava um beijo na face da amiguinha, e prendia-lhe o brinco à orelha.

— Queres um manuê?

— Só para provar.

— São feitos por estas mãozinhas! Vamos, vamos, mãe Paula; cochilou bem, não foi?

— Pois então, nhanhã. A gente assim vadiando... dá sono.

— Queres vir, Adélia?

— Aonde?

— Ao poleiro.

— Eu, Alice!... exclamou Adélia com um tom de surpresa envolta de nojo.

— Pois espere passeando no jardim, que eu já volto!

— Mas, Alice, eu não acho isso próprio de uma moça como você.

— Deixe-se disso, Adélia; eu fui criada assim, e não sei viver de outra forma. Se algum dia for moça da Corte, então aprenderei com você, para não fazerem zombaria de mim.

As duas amiguinhas podiam servir de exemplos de duas educações que se observam em nossa sociedade, bem distintas uma da outra, embora pelo contacto da população exerçam mútua e irresistível influência.

Alice era a menina brasileira, a moça criada no seio da família, desde muito cedo habituada à lida doméstica e preparada para ser uma perfeita dona de casa. A baronesa não se preocupara com a educação da filha, mas tal era a força do costume, que a moça achou nas tradições e hábitos da casa o molde onde se formou sua atividade.

A civilização europeia já tinha, é certo, polido esse tipo nacional; mas não lhe desvanecera a originalidade. Alice, embora adquirisse todas as prendas de sala, que a teriam distinguido em uma sociedade elegante, não deixava por isso de apreciar em extremo o papel de doninha de casa, que a indiferença materna lhe permitiu exercer desde muito criança.

Adélia ao contrário era o tipo, raro então e hoje muito comum, de certos costumes de importação; era a mocinha de maneiras arrebicadas à francesa, cuidando unicamente de modas e do toucador. Nisso a filha de D. Luíza não fizera mais do que apurar a lição e exemplo de sua mãe.

Mal sabem as meninas brasileiras que esse figurino parisiense tão copiado por elas, está bem longe de ser um retrato. A donzela na Europa, quando não tem posses para viver à lei da grandeza, é laboriosa e sobretudo excelente caseira. Ela sabe conciliar sua formosura e elegância com os pequenos misteres domésticos, que, em vez de ofuscarem suas maneiras, lhes dão realce.

Portanto o perfil verdadeiro e natural era o de Alice, que em uma cena diversa e com usos diferentes, realizava o mesmo pensamento de educação útil e sólida da moça na Europa. Era preciso ver a gentileza com que a menina desempenhava todos os seus deveres de dona de casa, e se ocupava dos mais humildes serviços sem nunca perder aquela graça maviosa que sorria em toda a sua pessoa. Dir-se-ia um colibri esvoaçando por uma sebe de flores murchas e rasteiras.

— Vai esta, nhanhã?

Mãe Paula tinha aberto a porta do galinheiro e sessando o milho na cuia, reunia o seu povo bípede, menos caprichoso e menos vário talvez, apesar das penas, do que outro também bípede, que por menos de um punhado de milho se alvoroça tantas vezes.

Alice, rodeada do bando volátil que piava e cacarejava de alegria, tirava um punhado de milho da ceira e jogava no terreiro, permitindo às favoritas que viessem comer-lhe na mão ou no colo. Os ciúmes então andavam acesos, sobretudo por causa dos pombos que, de voo mais ligeiro, pousavam-lhe nos ombros e bicavam-lhe o milho entre os lábios.

A pergunta da Paula fez levantar os olhos à menina, que estremeceu vendo a preta velha com uma galinha suspensa pelas asas:

— A pintadinha? Logo não se vê, Paula! Minha franguinha que eu criei! Solta já... Prr... Esta velha feia queria te matar, coitadinha!

— E aquela?

— Qual?

— A pedrês.

— Pois já acabou de criar?

— Xi! que tempo! Olha nhanhã, o pinto dela; já está tamanhão.

— Ainda estão muito pequetitos. Pobrezinhos! Hão de ficar sem sua mãe!

— É verdade!... A cochinchina que não põe?

— Não: a cochinchina foi vovó que me deu!

— Então a nanica!

— Está se vendo, Paula? Pois a nanica tão bonitinha, eu hei de deixar que matem!

— Desta maneira não há galinha para a festa.

Esta grave dificuldade surgia na Casa Grande sempre em vésperas de banquetes. Alice não dispensava o exercício da importante atribuição de indicar as aves e gado que deviam ser imolados; mas na ocasião entrava-lhe a pena dos inocentes animais a quem ia apadrinhando; de modo que o cozinheiro achava-se em branco.

Alguma vez resolvia-se a questão mandando-se comprar fora o necessário; e o barão dava-se por muito satisfeito com essa despesa que poupava uma lágrima à sua querida Alice. É verdade que isso já não sucedia desde muito tempo, porque a menina se compenetrava da necessidade de vencer a sua fraqueza. Desta vez, porém, era tão grande a matança e tantas de suas favoritas iam ser sacrificadas, que o coração lhe desfaleceu.

— O cozinheiro desde hoje que está esperando as galinhas para o jantar. Chega nhonhô Mário; há de vir mais gente e...

— Está bom, está bom, mãe Paula. Basta de rezingar; dê tudo que o cozinheiro quiser!

Sufocando um suspiro que sublevou-lhe o seio delicado, fugiu a correr do galinheiro, pensando que o prazer de festejar a chegada de Mário lhe pagava bem o sacrifício. Também lembrou-se ela que junto de seu amigo de infância e quase irmão, não teria mais tempo de folgar como dantes com aqueles companheiros de sua solidão e confidentes de suas saudades.

A mesma cena do poleiro se reproduziu sucessivamente no bardo dos carneiros, no curral das vitelas, no cercado dos bacorinhos e leitões.

A menina derramava em torno de si um fluido de afeto e ternura; o que vivia nessa atmosfera sentia sua irresistível atração. Na fazenda, para qualquer ponto que se voltasse, via-se rodeada de entes que a amavam e a quem ela retribuía em simpatia. Onde chegava, na roça ou no curral, havia festa e alegria. Os pretos batiam palmas; o gado mugia; as ovelhas balavam.

Concluída a penosa tarefa de prover a ucharia, Alice foi até o quadrado da senzala a fim de examinar se já tinham arrumado os copinhos de barro para a iluminação do Natal; e se já estava ali tudo caiado e bem asseado conforme as ordens do barão.

Ao passar pela casa do administrador, viu este na porta.

— Apronta-se tudo para hoje, Senhor Santos!

— Já está pronto!

— Ficará bonito?

— Pois que dúvida!

— E a roupa dos pretos? Não falta nenhuma peça?

— Vou contar agora.

— Se faltar, mande-me dizer logo, que ainda há tempo de aprontar.

Era costume na fazenda distribuir-se pelo Natal a cada escravo, uma nova muda de roupa domingueira como presente de festa; a isso referia-se a pergunta da moça.

Voltando da senzala com intenção de ir ver a capela em companhia de Adélia, de quem se esquecera, Alice, que passava em frente à casa dos cães, aproximou-se para agradecer-lhes as festas que estavam fazendo de longe.

— Você está contente, hem, Trovão! disse ela amimando a enorme cabeça de um velho canzarrão que soltava latidos de prazer enroscando a cauda. Seu camarada vai chegar!...

— Já chegou!... disse uma voz abafada pela emoção.

A menina quis voltar-se, mas sentiu dois braços que lhe cingiam o talhe e a suspendiam ao ar.

— Já chegou, minha nhanhã!

Era a tia Chica, a vovó preta quem abraçava a menina, dando-lhe as alvíssaras da chegada de Mário.

— Aonde está?

— Na varanda.

O mancebo, ao aproximar-se da fazenda, tinha-se desviado do caminho para fazer uma surpresa a seu velho amigo, pai Benedito. Depois de o abraçar, se dirigira então a pé e seguido pelo preto à Casa Grande, onde acabava de entrar pelo lado do jardim. Chica, porém, lhe tomara a dianteira para avisar a moça e fora tão feliz que a avistara de longe antes que alguém a visse.

O Martinho levara portanto um formidável logro. Atento para o caminho do lado oposto e esperando um cavaleiro, não se apercebera da chegada de Mário a pé; estava tão senhor de si, que vendo Alice a correr alvoroçada para casa gritou:

— Rebate falso, nhanhã!

A menina subiu as escadas voando, mas na porta da varanda parou trêmula. O coração pulava, menos da corrida, do que da emoção.

Pela porta aberta ela via perto do barão, entre as outras pessoas presentes, um mancebo de talhe alto, ar grave e feições distintas, trajado com a modesta simplicidade que realça os dotes naturais do homem. Apesar da fina barba negra que lhe sombreava o rosto, e da reserva que a educação imprimira em suas maneiras polidas, Alice reconheceu os grandes olhos imperiosos de seu amigo de infância e o gesto impregnado de uma altivez inata.

Recobrando a afouteza própria de seu caráter a menina entrou e correu ao encontro do mancebo.

— Mário!...

Este cortejou-a respeitosamente. Alice esperava que ele a abraçasse, e tinha-se aproximado palpitante, incendida de rubores, com a esperança de receber e retribuir aquele carinho que devia pagar-lhe tantas saudades, como curtira durante a longa ausência.

Vendo Mário afastar-se, ela refugiou-se no seio do barão, e aquele abraço, que não se animava a dar ao amigo de infância, foi confiá-lo ao peito de seu pai como um segredo mútuo. Compreendeu o barão o que passava n'alma da filha.

— É Alice, Mário. Você não a conheceu?

— Logo! respondeu o moço com intenção.

— Pois então, suponham que ainda são os dois meninos que brincavam juntos. Abracem-se.

E o barão impeliu docemente a filha, cujo talhe de sílfide Mário cingiu de leve com o braço trêmulo.