O Tronco do Ipê/II/IV

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Chegara enfim essa noite tão desejada da véspera de Natal.

Já tinham rezado trindades na Fazenda do Boqueirão. Os escravos, reunidos na frente do quadrado, depois de repetirem as palavras da oração estropiada pelo feitor, foram salvar ao senhor, desfilando conforme o costume pelo terreiro da Casa Grande, onde o barão, sentado em sua poltrona, descansava do pequeno passeio.

Nos outros dias aproveitavam os escravos aquela hora de repouso e liberdade que medeia entre Ave-Maria e o recolher, para tratarem de seus pequenos negócios, passarem uma vista de olhos a suas rocinhas, e também para fazerem suas queixas e pedidos a Alice, protetora de todos eles. Nessa noite, porém, como não se fechava o quadrado à hora de recolher, por causa da festa que devia começar ao cantar do galo, tinham eles muito tempo de seu, e por isso deixaram-se ficar em grupos, conversando a respeito das novidades do dia, que eram a função de Natal e a chegada de Mário.

Na Casa Grande, as visitas, tendo-se levantado da mesa havia meia hora, passeavam no jardim. O Conselheiro Lopes fumava um charuto de Havana, com espanto do vigário e do subdelegado, que nunca lhe tinham conhecido esse vicio, e o supunham impróprio de tão grave personagem político. O vigário, mais cordato, não disse palavra; porém o subdelegado não se pôde conter que não perguntasse:

— Pois V. Ex.a também pita?

O conselheiro aproveitou o assunto para improvisar ali um importante discurso acerca dos efeitos do tabaco sobre a inteligência, assegurando que as primeiras concepções do século tinham nascido do fumo. Depois desenvolveu esta bela tese econômica:

— Tendo eu a honra de ser o representante de uma classe tão importante como a lavoura, devo com o exemplo desenvolver o uso do tabaco; pois assim concorrerei para aumentar o consumo de um dos mais úteis entre os produtos agrícolas.

Mais longe, Lúcio, Frederico e outros moços da vizinhança brincavam com umas primas e camaradas de Alice o jogo dos cantos. Adélia, torcendo o beicinho, recusara tomar parte no folguedo, e, languidamente recostada em um divã de grama, cheirava um molho de violetas, com os olhos engolfados no azul do céu, onde cintilava a primeira estrela.

— Romântica!...

Este remoque e o beijo em que ia envolto eram de Alice, que voltava da capela onde fora rezar.

— Ficas aí, minha pensativa?

— Quero contemplar a minha estrela! respondeu Adélia com um tom poético e uma inflexão melancólica.

Nisso divisou Alice o vulto de Mário, que perpassava entre a folhagem na direção da capela; e suspeitando-lhe a intenção, acompanhou-o de longe.

No fundo da pequena ermida, via-se encostada na parede uma carneira que servia de jazigo a D. Francisca. Mário, tendo sabido poucas horas antes que ali repousavam as cinzas de sua mãe, vinha visitar aquele sítio.

Saudades roxas e perpétuas cobriam o túmulo singelo sobre o qual a copa verde-negra dos ciprestes derramava uma sombra merencória. O viço das flores, a disposição regular das plantas, e o chão varrido, indicavam a solicitude de uma mão terna e piedosa.

Mário teve o pressentimento de que essa mão era de Alice. Colheu uma saudade, e, depois de beijá-la, desfolhou-a sobre o túmulo de sua mãe.

Alice, que vira de longe todos os movimentos do moço, ocultou-se entre o arvoredo, quando ele voltava. Receou perturbar o recolho daquela mágoa, para a qual não havia consolo.

Terminava o breve crepúsculo que precede as noites tropicais.

As visitas acompanharam o barão à varanda, onde se devia passar o serão, pois as salas estavam preparadas para a festa que tinha de começar à meia-noite.

Alice despira a sua gazil petulância de menina da roça, e fazia com garbo encantador as honras da sala. Sentia-se ainda titilar aquela gentil mobilidade, que parecia dar-lhe asas de beija-flor; mas o passarinho preso na gaiola dourada não tinha espaço para volutear. Faltava, na verdade, à filha do barão, certo modo correto, ou para falar a gíria de salão, faltava-lhe o tom, que distinguia sua amiga Adélia; mas, em compensação, seus gestos, ainda os mais comuns, embebiam-se da elegância natural que a envolvia como um nimbo de graça.

Em um momento ela dispôs as cousas de maneira a dar a todos um passatempo para essa primeira parte da noite. Arrumou-se a mesa de voltarete para o barão, o conselheiro e o vigário; e a do solo para a baronesa, D. Alina e o subdelegado. Os moços e moças arranjaram-se do outro lado da varanda para brincarem o jogo da palhinha.

Mário entrava do passeio que dera na fazenda pela primeira vez depois de sua volta. Alice chamou-o para a roda.

A menina tinha na mão um molho de finas palhas de coqueiro, abertas como um leque. Umas dessas palhas eram dobradas, outras cortadas ao meio. Quem não brincou esse jogo na sua mocidade, e não se recorda das risadas gostosas que dava, quando alguma moça bonita saía casada com um velho jarreta, e quando um rapaz gamenho ficava solteiro ou viúvo?

— É o jogo da palhinha! dizia o Frederico muito satisfeito.

— Eu já sei que tiro a moça mais bonita! exclamou o Senhor Domingos Pais.

— A sorte é cega! observou Mário sorrindo.

— Como o amor! acudiu Lúcio, lançando um olhar terno a Adélia.

— Eu não acredito na sorte, disse Adélia; portanto me é indiferente sair com este ou com aquele.

— Vamos, atalhou Alice misturando as palhinhas; nada de esperteza; eu estou reparando. Tire!...

— Quem? perguntou Adélia sorrindo.

Alice corou.

— Ele! respondeu.

E designou com um meneio da fronte a Mário, a quem um gesto imperceptível da unha rosada indicava a palhinha que devia escolher. Cada um dos outros segurou também a ponta da sua.

— Estão prontos? Deixe-me tirar a minha.

— Esta, Alice? disse Adélia.

— Que tem?

— Estava tão escondida!

— É vergonhosa como eu, menina; por isso gostei dela. Puxem!

— Oh!

— Não valeu, gritou o Frederico. Houve trapaça!

Mário tinha saído com Alice; Lúcio com Adélia, e o Domingos Pais com Frederico; do resto das moças, umas viúvas ou solteiras, outras casadas com os irmãos e primos.

— Bem feito, dizia Alice para o Frederico, foi castigo de sua vadiação de ontem.

Houve muita galhofa; Frederico dançou com seu par uma volta de polca e o jogo continuou no meio das risadas. Mas Alice deixou as amigas brincando e foi para uma saleta próxima, onde Mário a seguiu com pequeno intervalo.

Achou ele a menina sentada a uma banquinha de costura, e muito ocupada em dar os últimos pontos à camisinha de cambraia que devia naquela noite vestir o Menino Jesus de prata, ali colocado defronte dela em seu berço de filigrana fingindo vime, e coberto com um manto de cetim. Esse descuido de deixar para a última hora uma cousa que devia estar feita com antecedência, era para reparar em Alice, tão cuidadosa e diligente, se não fossem as muitas lidas dos últimos dias, mas sobretudo a ansiedade pela chegada de Mário ou o contentamento de vê-lo.

E quem sabe? não seria aquela tarefa improvisada apenas como inocente pretexto para isolar-se das outras moças, e dar ocasião a que Mário se aproximasse dela?

Desde a chegada do moço, na véspera, os dois camaradas de infância apenas se tinham falado na presença de outras pessoas, tomando parte na conversação geral. A menina sentia, talvez sem o perceber, o desejo vago de uma expansão íntima. Mário chegara; mas para ela parecia-lhe que não tinha ainda chegado de todo, pois não lhe ouvira as confidências dos sete tão longos anos de separação; nem começara aquela doce comunhão que na infância os unia, apesar das teimas e arrebatamentos do menino.

Vendo Mário aparecer na porta, a moça perguntou-lhe:

— Foi passear?

— Dei uma volta apenas, respondeu Mário admirando a agilidade dos dedos da gentil costureira.

— Que está reparando?...

Ia dizer Mário; porém conteve-se.

— Na ligeireza de suas mãos.

— Que remédio? Se não for assim não tenho tempo de acabar; mas também sai cada ponto!... Olhe.

Pela faceirice de mostrar o seu ponto miudinho, e também para esconder sob o linho as mãozinhas, ela aproximou a costura dos olhos do moço.

— Realmente são imensos! Do mesmo tamanho eu os faço escrevendo.

— Que exageração!

— Não acredita? Deixe medir.

— Acredito, acredito, respondeu Alice retirando a costura de repente, e escondendo-a sob a aba da mesa.

A menina percebera que Mário, em vez de examinar os pontos, estava, mas era a admirar-lhe a mãozinha de jasmim através da fina cambraia, e a aspirar a deliciosa fragrância que exalava dessa flor animada.

O gesto da menina fez Mário cair em si do enlevo que o tirara da gravidade habitual de seu caráter, e do modo cerimonioso por ele observado com as pessoas da casa desde sua chegada.

— Vim perturbá-la em seu trabalho, disse erguendo-se.

— Não me perturba nada! Eu gosto de coser conversando. Sente-se.

— Vou conversar com Lúcio.

— A ele, sim, é que pode atrapalhar, disse a menina sorrindo. Adélia fica-lhe querendo mal.

— Então com o Frederico, respondeu o moço caminhando para a porta.

— Mário!...

Era a primeira vez que Alice chamava o moço diretamente.

Até então ambos valendo-se do nosso tratamento usual na terceira pessoa, evitavam, na conversa, pronunciar o nome um do outro. Alice não queria por forma alguma usar do cerimonioso – senhor – que tornaria seu companheiro de infância um estranho a ela e à família; também não se animava a dizer – você – tão de repente, com receio de que ele não gostasse, mas sobretudo por um vexame natural. Debalde revoltava-se contra esse sentimento, pensando que Mário era como seu irmão; alguma cousa de suave lhe advertia que a afeição do sangue não tinha as asas da sua, essas asas auriverdes da esperança, que lhe estavam a afagar meigamente o coração.

O abalo de ver nesse momento Mário afastar-se dela agastado, rompeu-lhe o enleio. No ímpeto d'alma saiu-lhe do seio o nome que tantas vezes ela atalhara nos lábios, prestes a escapar-lhe. Também aí rasgou-se aquela espécie de cendal, que separava o coração de ambos.

— Mário! repetiu a menina como se uma vez libada a doçura deste nome, ela se quisesse saciar dele. Você ficou sério comigo?

— Não; por quê? disse o moço atraído pela expressão inefável do semblante de Alice.

— Porque escondi a costura. Está, veja a seu gosto!

E estendeu as duas mãos mimosas e torneadas, que enrubesceram de pejo, enquanto a fronte não menos abrasada descaía sobre a espádua esquerda, como se procurasse ali a penumbra de uma asa para esconder-se.

— Que lembrança, Alice! Pois eu me havia de agastar por uma cousa tão natural? A minha curiosidade indiscreta merecia bem aquela lição; mas você é boa demais; tão depressa castiga, como recompensa. Obrigado! disse apertando afetuosamente as mãos da moca. Mas assim, desde já lhe previno, não pode ser boa mestra.

— Nem tenho essas pretensões. Ser mestra de um doutor! Só em uma cousa.

— Qual?

— Adivinhe!

— Ah! Se houvesse uma academia de adivinhação, era nessa com certeza que eu me doutorava.

— Pois não era muito difícil acertar com aquilo em que eu podia ser sua mestra. É em lembrar-me do nosso tempo de criança, das travessuras que fazíamos ambos, das manhas que inventávamos para nos livrar da lição; e das nossas brigas e zangas tão engraçadas, em que eu sempre acabava pedindo-lhe perdão, porque o senhor nunca cedia. Mau que era!

Que feiticeiro muxoxo acompanhou estas últimas palavras em tom de queixa! As pétalas de uma rosa, que abrochassem, outra vez tornando-se botão, de flor que eram, não teriam o gracioso enlace dos lábios que se apinhavam. Um muxoxo é um beijo às avessas; é um beijo que se esconde em seu ninho dentro d'alma, como um colibri arrufado que recolhe o bico, deixando ouvir um gritozinho de cólera.

— Mas olhe lá, continuou a menina; agora se agastar-se comigo, eu não hei de ser assim não, como era em criança. Hão de me pedir perdão também.

— Agora, Alice, não nos havemos de agastar como antigamente.

— Estimo bem.

— Você está moça, e eu devo tratá-la por todos os títulos com respeito que não sabia ter quando menino. Mas desculpe aquele roceirozinho atrevido e malcriado que lhe fez derramar tantas lágrimas. Era uma criança doentia!...

— Pois eu gostava bem dele, assim mesmo como era.

Mário ficara pensativo e como engolfado em uma ideia penosa que lhe surgira dos refolhos d'alma, onde jazia dormida desde muito tempo. Alice percebendo a súbita melancolia, cuja causa pensou adivinhar, quis prender do novo o espírito do moço à sua jovial garrulice.

— Você naturalmente não gostará de nossa festa, Mário; acostumado aos divertimentos da Europa, que atrativo pode achar nesta função da roça?

— Mas o Natal é uma festa campestre, Alice; e seu encanto está justamente nesse ar rústico e simples que costumamos dar-lhe. Não conheço nada mais ridículo do que um Natal nos salões, enluvado e perfumado como um baile de Corte.

— Pensamos da mesma maneira, exclamou a menina com um contentamento extremo.

— A sua festa, Alice, quanto posso julgar pelo programa, deve estar linda; é o Natal como se festejava há trinta anos, com suas crenças ingênuas e suas puras alegrias. Não pense que por ter visto a Europa, perdi o gosto a estas cousas; ao contrário tenho sede disso que já não se encontra naquela sociedade velha e gasta, onde se aprende muito, porém se descrê ainda mais.

Alice foi à capela colocar o Menino Jesus no seu presépio.