O Tronco do Ipê/II/VII
No dia seguinte depois do almoço Alice e Adélia saíram a passear. Iam vestidas de uma cassa mimosa e ligeira, com chapelinhos desabados feitos da mesma fazenda.
Era a cassa das roupas de Adélia de fino matiz escarlate, e a de Alice de um desenho verde, fingindo raminhos.
O vigário que tinha a balda de poeta anacreôntico, vendo-as da janela, comparou-as ao cravo e alecrim passeando entre as outras flores e logo fez tenção de aproveitar a ideia para uma décima ou pelo menos uma sextilha.
O lirismo do reverendo não era fora de propósito. Realmente com aquelas roupagens frescas e transparentes, aflando ao sopro fagueiro da brisa, pareciam as duas amiguinhas entre os recortes da folhagem, duas flores do campo a se balançarem na haste delicada de um cipó.
As meninas garrulavam sobre a festa da véspera.
— Vais muito longe? perguntou Adélia.
— Quero passear! respondeu Alice, como uma borboleta diria se falasse “quero voar”.
— Não estás cansada?
— Não; nem um bocadinho.
— Pois eu estou! disse Adélia dando uma inflexão lânguida ao talhe.
— Brincamos muito! De manhã ainda se dançava.
— Ora! os grandes bailes na Corte acabam sempre ao romper d’alva; já estou habituada; não sinto; o que me fatigou foram aquelas voltas pelo terreiro. Achas tanta graça nisso!
— É o Natal, Adélia.
— Não duvido; mas eu prefiro dançar na sala, a machucar os pés no chão duro; assim como acho mais bonita uma ária italiana do que os tais descantes.
— São gostos. O teu deve ser melhor do que o meu, pois vives na Corte e eu sou apenas uma roceira; porém Mário, que veio de Paris, pensa comigo. Ainda ontem mo disse; e deu-me com isso um prazer que não fazes ideia.
— Mário... disse a menina mastigando o nome do moço com uma reticência irônica.
— Que tem Mário, Adélia?
— Nada.
— Por que então este dentinho mordeu o nome dele como se fora um espinho de rosa que te ferisse? Quero saber o que você pensa a respeito dele para defendê-lo, Adélia.
— Ninguém o acusa, Alice, disse Adélia sorrindo.
— Mas enfim, o que era?
— Eu digo. Mário é um moço que não se apresenta mal; porém, se queres que eu seja franca, não parece que esteve em Paris. Falta-lhe o chique.
— Não está bem à moda?
— Justamente; não tem certas maneiras que só se aprendem em Paris, e que dão logo a conhecer um moço do tom. Olha, neste ponto Lúcio apesar de não ter lá ido, capricha mais...
— Queres dizer que é mais adamado.
— Ora, é uma cousa que se conhece logo. Se já tivesses visto algum parisiense da gema, como eu, havias de notar.
— Pois não vi? Há um ano chegaram os filhos do Borges, um fazendeiro nosso vizinho; e eu confesso que apesar de querer muito bem a Mário, não o poderia suportar nos primeiros dias, se ele viesse feito um boneco de cheiro, como aqueles dois bobos, que lá estão na Corte deitando fora a herança do pai. Depois que remédio?... Talvez achasse bonito, porque era em Mário; mas havia de me custar muito.
Tinham chegado a um caramanchão sombrio, coberto de jasmins e madressilvas.
— Vamos sentar-nos! disse Adélia.
— Já cansaste?
— O sol está muito quente.
— Ah! tens medo que ele queime estas duas rosas? Pois descansa ali no caramanchão enquanto eu vou até o pomar ver se acho uns figos para papai. Até logo; se tiveres medo de ficar sozinha, minha cravina, chama para te acompanhar algum narciso, porque o teu alecrim não volta cá nesta meia hora.
— Que narciso, Alice? perguntou ela perturbada.
Alice fingiu não ver o enleio da outra e respondeu com uma naturalidade que desvaneceu qualquer desconfiança de remoque.
— Um desses que aí estão defronte de ti mirando-se no tanque, ou então, se preferes os jacintos... Olha!
E a moça afastou-se.
Tanto as faces de Adélia como os figos de Alice não eram senão pretextos. Com efeito a primeira tinha por sua cútis aveludada um cuidado excessivo; e a segunda gostava de colher por suas próprias mãos as frutas inocentes e sazonadas que o médico permitia a seu pai. Mas nem o sol estava tão ardente naquela sesta, nem tão próxima a hora do jantar, que exigissem a separação imediata das duas amigas.
Havia outra razão.
Quando elas atravessaram a primeira alameda do jardim, Lúcio disfarçadamente separou-se do grupo onde conversava e de volta em volta, ocultando-se entre a folhagem, seguia as duas moças de longe.
Notou Alice que Adélia de tempos a tempos voltava-se com rebuço, e vendo a amiga exagerar o cansaço, percebeu o que havia; procurou também pretexto para afastar-se e deixar toda liberdade aos dois namorados, que tinham, ela o sabia, bastante necessidade de trocarem algumas palavras a sós.
Demais, Alice vira Mário sair pouco antes de casa, e ela que toda a noite antecedente o tivera quase constantemente a seu lado, na mesa da ceia, como na sala da dança, não se fartava de o ver, de falar-lhe, e aproximar-se cada vez mais desse coração que por tanto tempo estivera longe dela.
Perpassando sutilmente por entre o arvoredo, perscrutava aos lados do caminho os maciços de verdura, com a esperança de descobrir através o vulto do moço, e tão preocupada ia que não o viu em frente, quase a dez passos, aproximando-se dela pela mesma rua do pomar. Também ele vinha distraído, e só apercebeu-se da presença da menina, pelo contentamento que ela mostrou:
— Até que o encontrei!
— Andava me procurando?
— Não, disse Alice retraindo-se; mas vi-o sair logo depois do almoço...
— Quis livrar-me um momento dos discursos do conselheiro sobre colonização, e das perguntas dessa outra gente que me reduz ao papel de guia do viajante ou almanaque europeu.
— E agora para onde vai?
— Para casa, respondeu Mário com hesitação.
Ele quis oferecer-se para acompanhar Alice, e ela bem desejava pedir-lhe essa fineza; mas nem um, nem outro, se animou; sentiam ambos certo vexame e constrangimento, lembrando-se que estavam sós, em lugar onde ninguém os podia ver, nem escutar.
Foi no meio desse enleio, que Alice proferiu com um tom que procurava simular indiferença:
— Pois eu vou ao pomar.
— Então até logo.
E passaram um pelo outro, mas lentamente.
— Não tem medo do sol, Alice? disse Mário voltando-se.
— Não. E você já perdeu o que tinha dos discursos?
—Ainda não, respondeu Mário retrocedendo; e agora justamente que é a hora da preamar daquela maré de eloquência.
— Antes o sol, hem?
— É verdade; vou ver a roça.
Alice outra vez sentira o mesmo acanhamento; mas seu gênio, e também seu coração, reagiram.
— Venha comigo, Mário.
— Não; sua mãe não gostará.
— Papai não disse no dia em que você chegou que nós somos os mesmos doutro tempo, duas crianças como há sete anos?
— Então não devo oferecer-lhe o braço? perguntou Mário fazendo o gesto.
— Não; como meninos, é que tem graça!
E Alice cerrando os folhos da saia do vestido, deu uma carreira pela relva do pomar. Que havia de fazer seu companheiro, fosse ele sério e grave como era Mário? Um reumatismo ministerial, o que é a quintessência da seriedade, se aí estivesse, apesar das calças azuis, e da etiqueta imperial, jogava as canelas com toda a certeza.
— Oh! que vergonha! Não me apanhou!
— Você escondeu-se!
— Desculpas!... Estes figos são excelentes; eu sempre os apanho para papai! Ele gosta muito, coitado... Mário, você julga que ele ficará bom depressa? perguntou a menina com os olhos cheios de lágrimas.
Mário constrangido respondeu para a consolar:
— Acredito, Alice.
— Talvez com sua chegada... Eu o acho muito melhor, desde ontem. O cuidado que tinha de você, por força que lhe havia de fazer mal. Deus permita!
E Alice ergueu ao céu os belos olhos azuis, com uma expressão angélica de ternura e piedade, que deixou n'alma de Mário uma profunda comoção.
— Prove um... este que há de estar excelente. Como eu fazia quando era criança, que repartia sempre com você e lhe guardava metade de tudo quanto me davam. Lembra-se!... E assim me parecia mais gostoso... como agora! Nunca vi um figo tão saboroso; experimente!... Então?
Mário, que ficara com a banda do figo na mão, levou-a automaticamente aos lábios; mas o que lhe pareceu realmente saboroso, foi o veludo encarnado daquela face e o mel daquele sorriso, muito mais fino do que não era o da polpa vermelha da fruta.
— Esta figueira não é de seu tempo: foi plantada muito depois.
— Mas havia outras, pois eu me lembro que me divertia em rasgar os sacos, para deixar os passarinhos beliscarem os figos mais bonitos! Que perverso!
— E eu lhe ajudava para carregar com metade da culpa, acrescentou Alice rindo-se. A menina tinha acabado sua colheita; e estava com as duas mãos tão cheias, que para amparar as frutas, as encostava graciosamente ao seio.
— Você me corta uma folha de taioba?
Mário volveu os olhos em torno com uma expressão indecisa no olhar.
— Que vergonha! Não conhece mais as plantas de seu país. Olhe!
Rindo-se, Alice apontou com o bico da botina para a larga folha verde do nenúfar que se debruçava sobre um fio d'água. Mário ajoelhou-se para cortar a folha, se não foi para adorar a ponta daquele pezinho que de envergonhado escondeu-se.