O capitão Mendonça/IV

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Acabado o chá, disse-me o capitão:

— Doutor, preparei hoje uma experiência em honra sua. Sabe que o diamante não é mais que o carvão de pedra cristalizado. Há tempos tentou um sábio químico reduzir o carvão de pedra a diamante, e li num artigo de revista que conseguiria apenas compor um pó de diamante, e nada mais. Eu alcancei o resto; vou mostrar-lhe um pedaço de carvão de pedra e transformá-lo em diamante.

Augusta bateu palmas de contente. Admirado dessa alegria súbita, perguntei-lhe sorrindo a causa.

— Gosto muito de ver uma operação química, respondeu ela.

— Deve ser interessante, disse eu.

— E é. Não sei até se papai era capaz de me fazer uma coisa.

— O que é?

— Eu lhe direi depois.

Dai a cinco minutos estávamos todos no laboratório do capitão Mendonça, que era uma sala pequena e escura, cheia dos instrumentos competentes. Sentamo-nos, Augusta e eu, enquanto o pai preparava a transformação anunciada.

Confesso que, apesar da minha curiosidade de homem de ciência, dividia a minha atenção entre a química do pai e as graças da filha. Augusta tinha efetivamente um aspecto fantástico; quando entrou no laboratório respirou largamente e com prazer, como quando se respira o ar embalsamado dos campos. Via-se que era o seu ar natal. Travei-lhe da mão, e ela com esse estouvamento próprio da castidade ignorante, puxou a minha mão para si, fechou-a entre as suas, e pô-las no regaço. Nesse momento passou o capitão ao pé de nós; viu-nos e sorriu à socapa.

— Vê, disse-me ela inclinando-se ao meu ouvido, meu pai aprova.

— Ah! disse eu, meio alegre, meio espantado de ver aquela franqueza da parte de uma menina.

No entanto, o capitão trabalhava ativamente na transformação do carvão de pedra em diamante. Para não ofender a vaidade do inventor fazia-lhe eu de quando em quando alguma observação, a que ele respondia sempre. A minha atenção, porém, estava toda voltada para Augusta. Não era possível ocultá-lo; eu já a amava; e por cúmulo de ventura era amado também. O casamento seria o desenlace natural daquela simpatia. Mas deveria eu casar-me, sem deixar de ser bom cristão? Esta idéia transtornou um pouco o meu espírito. Escrúpulos de consciência!

A moça era um produto químico; seu único batismo foi um banho de súlfur. A ciência daquele homem explicava tudo; mas a minha consciência recuava. E por quê? Augusta era tão bela como as outras mulheres — talvez mais bela —, pela mesma razão que a folha da árvore pintada é mais bela que a folha natural. Era um produto de arte; o saber do autor despojou o tipo humano de suas incorreções para criar um tipo ideal, um exemplar único. Ar triste! era justamente essa idealidade que nos separaria aos olhos do mundo!

Não sei dizer que tempo gastou o capitão na transformação do carvão; eu deixava correr o tempo olhando para a moça e contemplando os seus belos olhos em que havia todas as graças e vertigens do mar.

De repente o cheiro acre do laboratório começou a aumentar de intensidade; eu que não estava acostumado senti-me um pouco incomodado, mas Augusta pediu-me que ficasse ao pé dela, sem o que teria saído.

— Não tarda! não tarda! exclamou o capitão com entusiasmo.

A exclamação era um convite que nos fazia; eu deixei-me estar ao pé da filha. Seguiu-se um silêncio prolongado. Fui interrompido no meu êxtase pelo capitão, que dizia:

— Pronto! aqui está!

E efetivamente trouxe um diamante na palma da mão, perfeitíssimo e da melhor água. O volume era metade do carvão que servira de base à operação química. Eu, à vista da criação de Augusta, já me não admirava de nada. Aplaudi o capitão; quanto à filha, saltou-lhe ao pescoço e deu-lhe dois apertadíssimos abraços.

— Já vejo, meu caro sr. capitão, que deste modo deve ficar rico. Pode transformar em diamante todo o carvão que lhe parecer.

— Para quê? perguntou-me ele. Aos olhos de um naturalista o diamante e o carvão de pedra valem a mesma coisa.

— Sim, mas aos olhos do mundo...

— Aos olhos do mundo o diamante é a riqueza, bem sei; mas é a riqueza relativa. Suponha, meu rico sr. Amaral, que as minas de carvão do mundo inteiro, por meio de um alambique monstro, se transformam em diamante. De um dia para outro o mundo caía na miséria. O carvão é a riqueza; o diamante é o supérfluo.

— Concordo.

— Faço isto para mostrar que posso e sei; mas não o direi a ninguém. É segredo que fica comigo.

— Não trabalha então por amor à ciência?

— Não; tenho algum amor à ciência, mas é um amor platônico. Trabalho para mostrar que sei e posso criar. Quanto aos outros homens, importa-me pouco que saibam ou não. Chamar-me-ão egoísta; eu digo que sou filósofo. Quer este diamante como prova da minha estima e amostra do meu saber?

— Aceito, respondi.

— Aqui o tem; mas lembre-se sempre que esta pedra rutilante, tão procurada no mundo, e de tanto valor, capaz de lançar a guerra entre os homens, esta pedra não é mais que um pedaço de carvão.

Guardei o brilhante, que era lindíssimo, e acompanhei o capitão e a filha que saíam do laboratório. O que naquele momento me impressionava mais que tudo era a moça. Eu não trocaria por ela todos os diamantes célebres do mundo. Cada hora que passava ao pé dela aumentava a minha fascinação. Sentia invadir-me o delírio do amor; mais um dia e eu estaria unido àquela mulher irresistivelmente; separar-nos seria a morte para mim.

Quando chegamos à sala, o capitão Mendonça perguntou à filha, batendo uma pancada na testa:

— É verdade! Não me disseste que tinhas de pedir-me uma coisa?

— Sim; mas agora é tarde; amanhã. O doutor aparece, não?

— Sem dúvida.

— Afinal, disse Mendonça, o doutor há de acostumar-se aos meus trabalhos... e acreditará então...

— Já creio. Não posso negar a evidência; quem tem razão é o senhor; o resto do mundo não sabe nada.

Mendonça ouvia-me radiante de orgulho; o seu olhar, mais vago que nunca, parecia refletir a vertigem do espírito.

— Tem razão, disse ele, depois de alguns minutos; eu estou muito acima dos outros homens. A minha obra-prima...

— É esta, disse eu apontando para Augusta.

— Por ora, respondeu o capitão; mas eu medito coisas mais pasmosas; por exemplo, creio que descobri o meio de criar gênios.

— Como?

— Pego num homem de talento, notável ou medíocre, ou até num homem nulo, e faço dele um gênio.

— Isso é fácil...

— Fácil, não; é apenas possível. Aprendi isto... Aprendi? não, descobri isto, guiado por uma palavra que encontrei num livro árabe do século décimo sexto. Quer vê-lo?

Não tive tempo de responder; o capitão saiu e voltou daí a alguns segundos com um livro in-fólio na mão, grosseiramente impresso em caracteres árabes feitos com tinta vermelha. Explicou-me a sua idéia, mas por alto; eu não lhe prestei grande atenção; os meus olhos estavam embebidos nos de Augusta.

Quando sai era meia-noite. Augusta com voz suplicante e terna disse-me:

— Vem amanhã?

— Venho!

O velho estava de costas; eu levei a mão dela aos meus lábios e imprimi-lhe um longo e apaixonado beijo.

Depois saí correndo: tinha medo dela e de mim.