O capitão Mendonça/V

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No dia seguinte recebi um bilhete do capitão Mendonça, logo de manhã:

Grande notícia! Trata-se da nossa felicidade, da sua, da minha e da de Augusta. Venha à noite sem falta.

Não faltei.

Fui recebido por Augusta, que me apertou as mãos com fogo. Estávamos sós; ousei dar-lhe um beijo na face. Ela corou muito, mas retribuiu-me imediatamente o beijo.

— Recebi hoje um bilhete misterioso de seu pai...

— Já sei, disse a moça; trata-se com efeito da nossa felicidade.

Passava-se isto no patamar da escada.

— Entre! entre! gritou o velho capitão.

Entramos.

O capitão estava na sala fumando um cigarro e passeando com as mãos nas costas, como na primeira noite em que o vira. Abraçou-me, e mandou que me sentasse.

— Meu caro doutor, disse-me ele depois que nos sentamos ambos, ficando Augusta de pé encostada à cadeira do pai; meu caro doutor, raras vezes a fortuna cai a ponto de fazer a completa felicidade de três pessoas. A felicidade é a mais rara coisa deste mundo.

— Mais rara que as pérolas, disse eu sentenciosamente.

— Muito mais, e de maior valia. Dizem que César comprou por seis milhões de sestércios uma pérola, para presentear Sevília. Quanto não daria ele por essa outra pérola, que recebeu de graça, e que lhe deu o poder do mundo?

— Qual?

— O gênio. A felicidade é o gênio.

Fiquei um pouco aborrecido com a conversa do capitão. Eu cuidava que a felicidade de que se tratava para mim e Augusta era o nosso casamento. Quando o homem me falou no gênio, olhei para a moça com olhos tão aflitos, que ela veio em meu auxilio dizendo ao pai:

— Mas, papai, comece pelo princípio.

— Tens razão; desculpa se o sábio faz esquecer o pai. Trata-se, meu caro amigo — dou-lhe este nome —, trata-se de um casamento.

— Ah!

— Minha filha confessou-me hoje de manhã que o ama loucamente e é igualmente amada. Daqui ao casamento é um passo.

— Tem razão; amo loucamente sua filha, e estou pronto a casar-me com ela, se o capitão consente.

— Consinto, aplaudo e agradeço.

Preciso acaso dizer que a resposta do capitão, ainda que prevista, encheu de felicidade o meu coração ambicioso? Levantei-me e apertei alegremente a mão do capitão.

— Compreendo! compreendo! disse o velho; já passaram por mim essas coisas. O amor é quase tudo na vida; a vida tem duas grandes faces: o amor e a ciência. Quem não compreender isto não é digno de ser homem. O poder e a glória não impedem que a caveira de Alexandre seja igual à caveira de um truão. As grandezas da terra não valem uma flor nascida à beira dos rios. O amor é o coração, a ciência a cabeça; o poder é simplesmente a espada...

Interrompi esta enfadonha preleção acerca das grandezas humanas dizendo a Augusta que desejava fazer a sua felicidade e ajudar com ela a tornar tranqüila e alegre a velhice do pai.

— Lá por isso não se incomode, meu genro. Eu hei de ser feliz, quer queiram quer não. Um homem de minha têmpera nunca é infeliz. Tenho a felicidade nas mãos, não a faço depender de vãos preconceitos sociais.

Poucas palavras mais trocamos neste assunto, até que Augusta tomou a palavra dizendo:

— Mas, papai, ainda lhe não falou das nossas condições.

— Não te impacientes, pequena; a noite é grande.

— De que se trata? perguntei eu.

Mendonça respondeu:

— Trata-se de uma condição lembrada por minha filha; e que o doutor naturalmente aceita.

— Pois não!

— Minha filha, continuou o capitão, deseja uma aliança digna de si e de mim.

— Não lhe parece que eu possa?...

— É excelente para o caso, mas falta-lhe uma pequena coisa...

— Riqueza?

— Ora, riqueza! isso tenho eu de sobra... se quiser. O que lhe falta, meu rico, é justamente o que me sobra.

Fiz um gesto de compreender o que ele dizia, mas simplesmente por formalidade, porque eu não compreendia nada.

O capitão tirou-me do embaraço.

— Falta-lhe gênio, disse.

— Ah!

— Minha filha pensa muito bem que a descendente de um gênio, só de outro gênio pode ser esposa. Não hei de entregar a minha obra às mãos grosseiras de um hotentote; e posto que, na planta geral dos outros homens, o senhor seja efetivamente um homem de talento — aos meus olhos não passa de um animal muito mesquinho —, pela mesma razão de que quatro candelabros alumiam uma sala e não poderiam alumiar a abóbada celeste.

— Mas...

— Se lhe não agrada a figura, dou-lhe outra mais vulgar: a mais bela estrela do céu nada vale desde que aparece o sol. O senhor será uma bonita estrela, mas eu sou o sol, e diante de mim vale tanto uma estrela como um fósforo, como um vaga-lume.

O capitão dizia isto com um ar diabólico, e o olhar mais vago que nunca. Receei que realmente o meu capitão, apesar de sábio, tivesse um acesso de loucura. Como sair-lhe das garras? e teria eu ânimo de fazê-lo diante de Augusta, a quem me prendia uma simpatia fatal?

Interveio a moça.

— Bem sabemos de tudo isto, disse ela ao pai; mas não se trata de dizer que ele nada vale; trata-se de dizer que há de valer muito... tudo.

— Como assim? perguntei.

— Introduzindo-lhe o gênio.

Apesar da conversa que a este respeito tivemos na noite anterior, não compreendi logo a explicação de Mendonça; mas ele teve a caridade de me expor claramente a sua idéia.

— Depois de profundas e pacientes investigações, cheguei a descobrir que o talento é uma pequena quantidade de éter encerrado numa cavidade do cérebro; o gênio é o mesmo éter em porção centuplicada. Para dar gênio a um homem de talento basta inserir na referida cavidade do cérebro mais noventa e nove quantidades de éter puro. É justamente a operação que vamos fazer.

Deixo a imaginação do leitor calcular a soma de espanto que me causou este feroz projeto do meu futuro sogro; espanto que redobrou quando Augusta disse:

— É uma verdadeira felicidade que papai houvesse feito esta descoberta. Faremos hoje mesmo a operação, sim?

Seriam dois loucos? ou andaria eu num mundo de fantasmas? Olhei para ambos; ambos estavam risonhos e tranqüilos como se houvessem dito a coisa mais natural deste mundo.

Tranqüilizou-se-me o ânimo a pouco e pouco; refleti que era um homem robusto, e que não seria um velho e uma moça débil que me haviam de forçar a uma operação que eu considerava um simples e puro assassinato.

— A operação será hoje, disse Augusta depois de alguns instantes.

— Hoje, não, respondi; mas amanhã a esta hora com toda a certeza.

— Por que não hoje? perguntou a filha do capitão.

— Tenho muito que fazer.

O capitão sorriu com ar de quem não engolia a pílula.

— Meu genro, eu sou velho e conheço todos os recursos da mentira. O adiamento que nos pede é uma evasiva grosseira. Pois não é muito melhor ser hoje um grande luzeiro da humanidade, um êmulo de Deus, do que ficar até amanhã simples homem como os outros?

— Sem dúvida; mas amanhã teremos mais tempo...

— Eu apenas lhe peço meia hora.

— Pois bem, será hoje; mas eu desejo simplesmente dispor agora de uns três quartos de hora, findos os quais volto e fico à sua disposição.

O velho Mendonça fingiu aceitar a proposta.

— Pois sim; mas para ver que eu não me descuidei do senhor, ande cá ao laboratório ver a soma de éter que pretendo introduzir-lhe no cérebro.

Fomos ao laboratório; Augusta ia pelo meu braço; o capitão caminhava adiante com uma lanterna na mão. O laboratório estava iluminado com três velas em forma de triângulo. Noutra ocasião perguntaria eu a razão daquela disposição especial das velas; mas naquele momento todo o meu desejo era estar longe de semelhante casa.

E contudo uma força me prendia, e dificilmente poderia eu arrancar-me dali; era Augusta. Aquela moça exercia sobre mim uma pressão a um tempo doce e dolorosa; sentia-me escravo dela, a minha vida como que se fundia na sua; era uma fascinação vertiginosa.

O capitão sacou de um caixão de madeira preta um frasco contendo éter. Disse-me ele que havia no frasco, porque eu não vi coisa nenhuma, e fazendo esta observação, respondeu-me ele:

— Pois precisa ver o gênio? Afirmo-lhe que há aqui dentro noventa e nove doses de éter, as quais, juntas à única dose que a natureza lhe deu, formarão cem doses perfeitas.

A moça pegou no frasco e o examinou contra a luz. Pela minha parte, limitei-me a convencer o homem por meio da minha simplicidade.

— Afirma-me, disse-lhe eu, que é gênio de primeira ordem?

— Afirmo-lho. Mas por que se há de fiar em palavras? O senhor vai saber o que é.

Dizendo isto puxou-me pelo braço com tamanha força que eu vacilei. Compreendi que era chegada a crise fatal. Procurei desvencilhar-me do velho, mas senti cair-me na cabeça três ou quatro gotas de um líquido gelado; perdi as forças, fraquearam-me as pernas; caí no chão sem movimento.

Aqui não poderei descrever cabalmente a minha tortura; eu via e ouvia tudo sem poder articular uma palavra nem fazer um gesto.

— Queria lutar comigo, maganão? dizia o químico; lutar com aquele que te vai fazer feliz! Era ingratidão antecipada; amanhã tu me hás de abraçar contentíssimo.

Voltei os olhos para Augusta; a filha do capitão preparava um longo estilete, enquanto o velho tratava de introduzir sutilmente no frasco um finíssimo tubo de borracha destinado a transportar o éter do frasco para o interior do meu cérebro.

Não sei que tempo durou a preparação do meu suplício; sei que ambos se aproximaram de mim; o capitão trazia o estilete e a filha o frasco.

— Augusta, disse o pai, toma cuidado não se derrame éter nenhum; olha, traz aquela luz; bem; senta-te aí no banquinho. Eu vou furar-lhe a cabeça. Apenas sacar o estilete, introduze-lhe o tubo e abre a pequena mola. Bastam dois minutos; aqui tens o relógio.

Ouvi aquilo tudo banhado em suores frios. De repente os olhos foram-se-me enterrando; as feições do capitão assumiram proporções descomunais e fantásticas; uma luz verde e amarela enchia todo o quarto; pouco a pouco os objetos iam perdendo as formas, e tudo em volta de mim ficou mergulhado numa penumbra crepuscular.

Senti uma dor agudíssima no alto do crânio; corpo estranho penetrou até o interior do cérebro. Não sei de mais nada. Creio que desmaiei.

Quando dei acordo de mim o laboratório estava deserto; pai e filha tinham desaparecido. Pareceu-me ver em frente de mim uma cortina. Uma voz forte e áspera soou aos meus ouvidos:

— Olá! acorde!

— Que é?

— Acorde! quem tem sono dorme em casa, não vem ao teatro.

Abri de todo os olhos; vi em frente de mim um sujeito desconhecido; eu achava-me sentado numa cadeira no teatro de S. Pedro.

— Ande, disse o sujeito, quero fechar as portas.

— Pois o espetáculo acabou?

— Há dez minutos.

— E eu dormi esse tempo todo?

— Como uma pedra.

— Que vergonha!

— Realmente, não fez grande figura; todos que estavam perto riam de o ver dormir enquanto se representava. Parece que o sono foi agitado...

— Sim, um pesadelo... Queira perdoar; vou-me embora.

E saí protestando não recorrer, em casos de arrufo, aos dramas ultra-românticos: são pesados demais.

Quando ia pôr o pé na rua, chamou-me o porteiro, e entregou-me um bilhete do capitão Mendonça. Dizia assim:

Meu caro doutor.
 
Entrei há pouco e vi-o dormir com tão boa vontade que achei mais prudente ir-me embora pedindo-lhe que me visite quando quiser, no que me dará muita honra.
 
10 horas da noite.

Apesar de saber que o Mendonça da realidade não era o do sonho, desisti de o ir visitar. Berrem os praguentos, embora — tu és a rainha do mundo, ó superstição.