O homem e o cão/III

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Quando Paulo Maurício viu-se órfão, estava num colégio, cuja mesa e cujas aulas freqüentava por caridade dos diretores. A mãe do poeta vivia nesse tempo em companhia duma família generosa, saboreando com amargas delicias o pão da esmola e a enxerga da mendicidade disfarçada. Desditosa mulher! Acalentava o filho em braços alheios, sorrindo entre lágrimas, como um doloroso astro, através das chuvas da tempestade.

Quem te compreenderá, oh mãe, oh indescritível poema do amor e da castidade? Hás de ir, solene vítima, hás de ir atravessando as almas e os séculos, de braços abertos a todas as desventuras e olhos cheios de fé, erguidos ao céu, que muitas vezes não te escuta nem te favorece sequer!

Concedeu-te o Deus de Belém, a graciosa ventura de resguardares no seio o fruto dum sentimento partilhado, e ainda hoje, querida, ainda hoje esperas aos pés da cruz, as derradeiras gotas de lágrimas, as derradeiras lágrimas de suor, daquele que geraste e concebeste em longas horas de aflitiva bem-aventurança!

Trazes na cabeça a doce estrela do cristianismo, de cujas facetas caem os raios que aclaram a família e iluminam o universo. Cornélia, mãe de heróis; Maria, mãe de mártires; envolta neste ou naquele nome, passará a tua figura luminosa sobre a face dos tempos, como um eterno beijo que jamais se apagará, pois que teve origem na alma da criação e no resplendor da religião sublime.

Os pecados da mulher são resgatados pela mãe; os prantos desta lavam as nódoas daquela. Poder misericordioso de Deus! Como tu és admirável assim, e como nós, os filhos agradecidos, te louvamos e bendizemos!

Ai daqueles que não conseguem, depois dos primeiros tormentos da existência, descansar a cabeça abatida no regaço tranqüilo duma mãe!

Paulo Maurício foi desses infelizes. Saindo do colégio para os braços do mundo; do risonho preceptor para o severo, o astucioso, o cruel padrasto, que nada desculpa, nem poupa. Nunca soube rir essa criança; nasceu coberta de névoas e cresceu no meio da pobreza, que é o crepúsculo da vida.

O homem generoso de quem já aqui se falou, amparou-o até certo tempo. De forma que, o trecho que eu conto das memórias do poeta, refere-se justamente ao capítulo do desamparo e do infortúnio.

O talento perseguia-o, feria-o, acompanhava-o atrozmente. As quedas dos espíritos superiores são mais terríveis que as outras; a consciência e o coração fazem um peso às vezes quase insuportável.

Paulo Maurício assistiu aos últimos momentos da vida de sua mãe. Ele tinha 16 anos nesse tempo. Um portador azafamado entregou ao diretor do colégio onde assistia o poeta, uma carta em que se reclamava a presença do menino.

O diretor leu a carta e mandou chamar o discípulo.

— Vá se aprontar depressa.

— Minha mãe está muito mal; não está, José? — perguntou o menino ao portador.

— Pois já o sabia? — indagou ansiosamente o mestre.

Um fúnebre sorriso desenhou-se nos olhos e nos lábios do órfão.

— Sonhei, senhor doutor — disse ele com voz profunda.

O colégio era situado na rua das Marrecas; a casa em que agonizava a mãe do menino, era na rua dos Beneditinos. O portador mal podia acompanhar os passos nervosos e rápidos de Paulo Maurício. Ele voava como se fosse conduzido pelas asas do pensamento. Entrou em casa enregelado até a ponta dos cabelos, e com o suor a deslizar-lhe pelas fontes e faces, baga a baga.

Momentos depois, estava ajoelhado à cabeceira da cama mortuária. A moribunda afastou da vista as longas névoas que já a turbavam, e pondo as mãos sobre a cabeça do filho, sorriu erguendo os olhos ao crucificado, cujo lenho resplandecia entre duas velas, aos pés da cama.

— Meu filho!

Uma velha mulher chorava no fundo da alcova, e o padre ia a retirar-se pensativo, depois de haver deixado num seio infeliz e puro pela última vez o alvo corpo de Jesus. Paulo Maurício apertou aos lábios convulsos as dobras do lençol já santificado pela morte.

A moribunda tentando esforços quase sobre-humanos, disse ainda ao filho:

— Deus te proteja. Sê homem honrado e faz tudo para não seres pesado aos outros.

Ela tinha a boca seca e abrasada.

— Água! — exclamou entreabrindo os lábios freneticamente.

A velha fez um movimento, mas o menino antecipou-se-lhe. De um salto correu a buscar o copo e duas lágrimas caíram-lhe confundindo-se com a água.

A agonizante bebeu o conteúdo do copo em um trago sôfrego.

Uma espécie de bem-aventurança iluminou-lhe os traços desmaiados, tal como os raios do sol no poente ou os últimos vislumbres da estrela-d’alva.

— Ouve-me, Paulo.

O menino escondeu entre as mãos dela a face inundada de pranto.

— Não chores, meu filho. A morte, em vez de separar, reúne. Lembra-te sempre de tua mãe, que vai pedir a Deus por ti, e que será feliz no céu com a tua felicidade neste mundo. Eu tenho certeza de ti; morro descansada. Dá-me um beijo, aqui, na minha boca.

O menino uniu os lábios aos lábios maternos e aspirou faminto a alma dolorosa, que se despedia da vida. A velha a custo arrancou-o dessa posição horrível, justamente no instante em que a moribunda estrebuchava no paroxismo final.

Durante três dias, Paulo Maurício lutou com a morte. Os médicos desenganaram-no, mas a juventude salvou-o.

Voltou para o colégio, donde saiu protegido pelo homem, que pouco depois havia de forçosamente abandoná-lo aos azares do mundo. As raras jóias — jóias! — que a mãe lhe deixou e que lhe foram fielmente entregues, ele as cedeu à velha enfermeira em sinal de religiosa gratidão. Um véu fatal desde então, coseu-lhe em redor da alma, e quando ele declarou ao mestre Gregório que se mataria, estava decidido a dar cabo de si.

O espírito materno, porém, velava como uma divina sacerdotisa sobre os destinos do poeta.