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O homem e o cão/IV

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A oração de Paulo Maurício viera ao mundo à semelhança dessas flores melancólicas e obscuras, que nascem à superfície das sepulturas cheias. Borrifavam-no, em vez de orvalho, lágrimas, e a sua alegria era o luto que o amortalhava. O amor, a festa, o prazer, todas essas teclas vibrantes que produzem as sinfonias da mocidade eram-lhe desconhecidas e até adversas ao seu caráter altivo. A memória de sua mãe enchia-o, completamente, e quando o poeta às vezes estendia a vista pelo horizonte iluminado, cuidava distinguir através dos raios das esferas a figura ideal daquela que única o amou em vida.

— És tu, sim, meu santíssimo amor! Sempre pudibunda e bela!

As musas da saudade e das aspirações sublimes eram as suas companheiras nas horas do recolhimento profundo da alma. Longe dos trabalhos cruéis e brutais que, durante o dia, lhe facilitavam os parcos meios do sustento habitual, o poeta deixava-a voar na correnteza dos seus pensamentos, como um prisioneiro, a quem se concede uma hora de ar livre, perante o mar e o céu.

Mestre Gregório respeitava o seu hóspede, e os inquilinos da casa — uns oito personagens pelo menos — sentiam irresistível simpatia por esse moço quase incógnito, que passava a vida entre o trabalho e a meditação.

A tia Angélica, por sua parte, adorava o poeta pelo simples fato de ele possuir uma bela imagem de Jesus, gravura de Calamatta, que lhe tocara por prêmio no colégio. A velha, toda a vez que varria o quarto de Paulo Maurício, estacava defronte da gravura, exclamando entre cinco sinais-da-cruz:

— Bento nome do Senhor! Sempre aqueles judeus foram uns marditos do couro do diabo!

O poeta pilhou-a num desses rasgos, certo dia em que voltara mais cedo para casa.

— Está admirando a minha cabeça de Jesus, tia Angélica?

— Não se me dava de trocar os meus brincos de plaqué por este registro, senhor Maurício!

— Eu é que o não troco por coisa alguma, tia. Quero-lhe um bem extraordinário.

— E gave-se disso, meu senhor, porque é uma perfeição.

Contemplando a gravura, a volumosa porteira murmurava ainda em despedida:

— Bendito o ventre que te concebeu!

— Amém. Até logo, tia Angélica.

— Já quer que me vá hein? Oh! gente! eu nunca vi um moço como vosmecê, sempre só!

— Antes assim que mal acompanhado, tia. Até logo.

— Cá vou, cá vou. Até; fique-se com Deus.

Paulo Maurício possuía uma ternura imensa para tudo quanto é fraco, inerme, e geralmente espezinhado pelos pés maciços do gênero humano. Uma flor, um pássaro uma formiga, valiam mais a seus olhos do que a árvore genealógica da raça dos Bourbons.

As andorinhas, que recortavam o seio azulado da tarde, mereciam-lhe olhares de interesse e simpatia fraterna. Ele acompanhava-as no giro caprichoso, até perdê-las de vista, e dizia consigo:

— Se eu tivesse asas também, iria convosco, oh loucas! Até engolfar-me nas vagas serenas do paraíso!

Entrou-lhe, certa tarde, ia caindo o crepúsculo — um passarinho, um gaturamo pela janela.

A ave estendia já debilmente as asas, e desprendendo festivos gritos, veio pousar pouco distante do poeta no encosto duma cadeira.

Paulo Maurício exultou com a visita, como esses meninos folgazões, que vêem descansar no poleiro da armadilha a desejada caça. Adiantou-se até o pássaro, com as mãos abertas, receoso de o perder. O gaturamo agitou novamente as asas sem mudar de posição, e desenrolou um rosário de melodiosos gorjeios.

O poeta estava maravilhado. Prende delicadamente entre as mãos o fugitivo, e 20 minutos depois, acondicionava-o dentro duma gaiola, gentil empréstimo da porteira de mestre Gregório.

— Olhe, tia Angélica; que graça! Ele vai cantar, espere!

— Que é, senhor? Nem que eu não tivesse mais que lazer!

— Um minuto só!

A alma daquela criança inspirada ressoava como o piano de Thalberg.

O prazer fulgia em seus olhos, e os seus ouvidos esperavam a primeira harmonia do pássaro, à maneira do leitor quando espera o jornal do dia ou um telegrama comercial.

O gaturamo desfez-se em melodias em honra do poeta. A velha estendeu o beiço, e ponderou conscienciosamente:

— Vale quatro mil-réis, de olhos fechados. Depois de tal sentença, a esférica mulher retirou-se orgulhosamente.

Esse passarinho foi por algum tempo a predileta companhia do poeta. Despertava-o cantando e cantando o adormecia.

Ao sair para o trabalho, todas as manhãs, Paulo Maurício dizia à porteira:

— Bom dia, tia Angélica; receba saudades do meu gaturamo.

Uma certa manhã o poeta saiu sem cumprimentar a velha.

— E então, ó senhor Maurício? E o gaturamo?

O moço voltou-se com semblante pensativo e articulou entre dentes:

— Morreu; morreu há pouco, tia Angélica. Reze-lhe por alma.

Tentou sorrir, mas confrangiu-se-lhe o rosto angustiosamente.

A velha subiu ao quarto e arrecadando gaiola e pássaro morto:

— Ora aí tem o que são amizades por estas coisas à-toa. Mais vale comer um prato de arroz.

Foi a oração fúnebre que a respeitável matrona cedeu ao harmonioso companheiro de Paulo Maurício.

Era pois um coração terno e bom o desse órfão da fortuna e dos homens. A desgraça havia-o por assim dizer purificado, e a sua alma, alheia aos gozos turbulentos da existência, pendia para o que é humilde e fraco, para as venturas calmas e ignoradas, como os cálices das flores dum cemitério que se debruçam sobre a terra silenciosa.

Mestre Gregório, por terror ou por compaixão — quem pode sondar o charco desses espíritos baixos e mercantis? – dirigiu-se ao poeta no dia seguinte ao do episódio da faca, e disse-lhe entre duas respeitabilíssimas caretas:

— Venho trazer-lhe a resposta. Antes, porém, faça o favor de me dizer o que arranjou.

— Nada — respondeu Paulo Maurício. — Estou sem emprego e sem pão.

Depois de olhar desconfiado para a gaveta em que dormia a arma, o usurário acrescentou:

— Pois eu sou mais humano do que os outros. O senhor de hoje por diante tratará dos meus papéis e comerá à minha mesa. Pode acontecer alguma vez que eu não jante em casa, mas não faz mal; a Angélica já está prevenida para não o deixar morrer à fome.

Um feroz sorriso adelgaçou os lábios de mestre Gregório.

— Tanta generosidade, sr. Gregório! — acudiu o poeta sorrindo entre o desdém e o pudor ferido.

— Quero — agora pedir-lhe uma coisa.

— Diga, meu caro patrão.

— Eh! eh! eh! Patrão! Já me chama patrão! Queria pedir-lhe que me vendesse aquela...

— A faca? Impossível, sr. Gregório— Foi uma lembrança de amigo. Herdei-a de meu pai. Tenha paciência.

— Não falemos mais nisso. Então, está convencionado?

— Perfeitamente. Mande-me hoje os seus livros.

— Pronto. Até logo.

— Até logo, sr. Gregório.

O usurário, antes de sair, contemplou ainda a gaveta como os selvagens o gatilho misterioso duma espingarda.

A tia Angélica entrou nesse momento na alcova do poeta.

— Bravo! — exclamou a megera saudando grotescamente Paulo Maurício; — que bom vento foi esse! O amo está com vosmecê pelo beicinho. Verá que homem aquele de truz! Quando gosta deveras de alguém não há quem lhe chegue!

Uma nuvem de sarcasmo amortalhou o semblante heróico do órfão.