O moço loiro/V

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Era quase meio-dia; Raquel já tinha partido com seu pai, quando Honorina entrou de novo na sala. Duas pessoas aí se achavam: Ema e Hugo; a avó e o pai da moça.

Ema era uma estátua do século passado; uma mulher de setenta anos, gorda, respeitável, coroada por seus cabelos brancos, com o rosário na mão direita, trajando as vestes negras da viuvez, e com uma expressão de bondade misturada com orgulho em sua fisionomia.

Hugo era, posto que às vezes timidamente, um representante da nova época: o primeiro que de sua família abandonara antigos hábitos e velhas idéias, foi por isso menos estimado de seus pais que um irmão, morto há alguns meses, e via-se então chefe da casa; era o contraste de sua mãe, pois pensava, falava e vestia-se segundo a ordem do dia.

E Honorina é sua filha querida. Ela tem dezesseis anos, é de estatura regular, longas e negras madeixas se mostravam presas com avultada trança ao mesmo tempo que dos lados lhe caem, como esquecidos, bastos anéis delas, que voam em caracol, beijando-lhe o nascer dos seios; a fronte é lisa, branca e elevada; os olhos pretos, grandes, cheios de doçura e langor; a tez de seu rosto é alva, fina, transparente mesmo, sem fogo, e deixando apenas adivinhar longínquo rubor, e entrever neste ou naquele ponto um azulado ramúsculo venoso, que para logo desaparece. No entanto, admira-se aí essa palidez, que interessa e arrebata; nada mais majestoso que o seu colo, nada mais perigosamente belo do que o seu peito cor de leite com a mais feliz perfeição encarnado, transpirando amor e desejos de cada vez que, respirando, se eleva; a sua compleição é fraca e delicada; e há no seu sorrir, nas suas menores ações, em todos os seus traços, enfim, um não sei quê de tocante e melancólico, que quem a vê, a observa, a estuda por força; a sua voz é doce, melíflua, como o gemer saudoso da flauta noturna e afastada; e pela angélica pureza da sua vista, pela celeste candura do seu semblante parecem transluzir todos os pensamentos da sua alma; o seu pisar é subtil e imperceptível; dir-se-ia ao vê-la passar silenciosa, que não é uma mulher que anda, mas a imagem de um anjo que, refletida em um espelho, se desliza por ele, e desaparece impalpável e bela.

Posto que já um ano tivesse decorrido depois da morte de seu avô e tio, trajava Honorina ainda nesse dia vestido preto, que mais fazia realçar a alvura de suas mãos, perfeitamente torneadas e a encantadora palidez de seu rosto; o bico de um sapatinho também preto, que a furto tinha escapado por baixo da barra do longo vestido, deixava adivinhar um pé tão delicado como bem-feito.

Na manhã desse dia lera Honorina a carta misteriosa, que com Raquel achara na janela de seu quarto; ela estava pensativa e melancólica.

Apenas Honorina acabava de sentar-se junto de sua avó, seu pai, que ao pé da janela lia com avidez uma extensa carta, voltou-se para elas e exclamou:

— Loucuras sobre loucuras!...

— Eu o previa, disse a velha, ele é um fruto degenerado!... o que diz-nos, portanto, nesse papel?...

— É uma longa história; quer minha mãe ouvi-la?

— Seja: os meus derradeiros dias são votados ao desgosto de ver uma a uma perdidas todas as belas heranças de nossos velhos pais! Ouvirei, pois, a carta desse, que foi o primeiro a ferir-me no coração.

Naquelas palavras ia uma indireta atirada contra Hugo, que, fingindo não entendê-la para não entrar em novas questões com sua mãe, arrastou uma cadeira e, sentando-se perto dela, principiou a ler:

"Meu tio"

Depois de sete longos anos de ausência de minha família, que julgou dever tão completamente esquecer-me, que nem ao menos me quis dar parte da morte de minha adorada mãe, que, sucumbindo um ano depois da minha partida, foi talvez vítima das saudades dum carinhoso filho, horrível e injustamente lançado fora da casa de seus pais, recebi finalmente uma carta de Vossa Mercê, em que me mandou a fatal notícia da morte de meus amados avô e pai; foi, portanto, preciso que a mão da desgraça pesasse sobre nós todos, para que fosse lembrado por aqueles a quem o dever ordenava, que de mim muito se lembrassem. Eu já respondi com todo o sentimento, com toda a dor pungidora da orfandade a essa pungente carta.

"Ultimamente, Vossa Mercê escreve-me de novo, mostrando-se admirado de me não ver chegar ao Rio de Janeiro para tomar conta dos bens que devo herdar de meu avô e de meu pai, os quais, segundo Vossa Mercê diz, devem montar a mais de sessenta contos.

"Meu tio, há sete anos que sofro em silêncio todos os meus infortúnios; há sete anos que engulo os meus gemidos; mas o gemido é a expressão da dor, e tarde ou cedo é necessário que o homem gema, quando o seu padecer é longo e não acaba. Leia, pois, esta carta como se fosse um gemido que estivesse ouvindo, e dê-me o seu perdão, se em algum ponto dela eu abusar da sua bondade.

"Meu tio, declaro que não voltarei ao Rio de Janeiro, que não aparecerei diante de vós nem de minha avó, enquanto lhes não puder provar que foi uma calúnia infame de que se serviram para me perderem, esse crime, que meu pai e todos os meus parentes não duvidarão de julgar-me capaz de o haver cometido.

"Vossa Mercê lembrar-se-á que no fim do ano de 1837 tinha eu feito dezessete anos e concluído os meus estudos preparatórios, quando desapareceu do gabinete de minha prima Honorina, menina então de nove anos de idade, uma cruz, chamada por nós todos — a cruz da família —, toda crivada de riquíssimos brilhantes. Um jovem caixeiro de nossa casa acusou-me de a haver furtado; algumas aparências pareceram justificar essa infame imputação; e, apesar de todos os meus protestos de inocência, apesar do grito saído do coração de minha mãe, que então vivia, e que foi a única que defendeu seu filho, fui lançado fora de casa dos meus maiores e, se escapei das mãos da justiça, foi porque, pensaram eles, cumpria esconder a vergonha de que todos participavam.

"Lembro-me perfeitamente do que então se passou. Meu avô disse: — Vai-te para sempre de meus olhos! e, se tens piedade de nós, muda o teu nome.

"Minha avó disse: — Torne-se em pedra o pão que comprares com o dinheiro pelo qual vendeste os brilhantes da cruz da família. O ladrão não me faça corar de vergonha, aparecendo ainda diante de mim.

"Meu pai disse-me: — Consuma o fogo todas as minhas riquezas antes que tu possas tocar em uma só moeda dos meus cofres.

"E minha mãe disse: — Vai, meu filho; mas volta um dia com o rosto descoberto para provar a tua inocência.

"Na sala estavam ainda três pessoas que nada disseram: Vossa Mercê, meu tio, que hesitava; Honorina, minha prima, que nada parecia compreender; Lúcia, que me tinha dado de mamar, e que chorava como minha mãe.

"Quando eu saí da sala, ouvi as maldições de meus maiores; quando eu me apartei da casa, vi que as portas se fecharam para mim. Delirante e exasperado corri para o mar; ia vingar-me, suicidando-me, quando uma fiel escrava me veio entregar uma bolsa e um anel dos cabelos de minha mãe. Então eu me lembrei das suas palavras: — Vai-te, meu filho; mas volta um dia com o rosto descoberto para provar tua inocência.

"Eu tornei à vida!... guardei o precioso anel, guardei a bolsa, oh!... era a bolsa de minha mãe, que podia receber sem corar!... eu tornei à vida, um anjo me tinha arrancado do suicídio: isto não é um sacrilégio; uma mãe é o segundo anjo da guarda do filho.

"Agora, meu tio, Vossa Mercê consentirá que eu conte, em poucas palavras, quanto me tem sucedido de então para cá.

"Sem plano algum de vida, sem destino e sem meios, vi-me só no mundo e na idade das loucuras; era preciso seguir um caminho, tomei o primeiro que se me apresentou. A cidade da Bahia se achava em braços com o gênio da revolta; o governo chamava soldados; eu me ofereci, como voluntário, vesti uma farda, tomei uma espingarda, e parti.

"Lá, no empenho do jogo dos combates, em que tantas mil vezes um homem defronte de outro pára a vida contra a vida, eu estive cem vezes a ponto de perder a partida; mas fosse porque o anel de cabelos de minha mãe seja um talismã sagrado, ou porque a morte fuja daquele que a não teme, e antes a procura, eu ouvi assobiar por cima da minha cabeça e em volta de mim mil balas inimigas, sem que uma só me tacasse. O corpo a que pertencia foi um dos primeiros que entrou na cidade.

"Houve cenas horríveis, que é necessário esquecer.

"Uma, porém, dentre todas preciso eu lembrar, porque teve ela benéfica influência sobre a minha vida.

"Sabe-se que o desespero e o delírio dos vencidos ateou o archote do incêndio. Em certa ocasião uma força, na qual eu me contava, era empregada a apagar as chamas que estavam terrivelmente devorando algumas casas. Defronte de uma dessas vi um homem velho, respeitável, com os vestidos queimados e caído por terra; ouvi as suas vozes... eram gritos de dor indizível... — minha filha!... — dizia ele... depois uma mulher, também velha, também respeitável, que uma, duas e três vezes se tinha atirado às chamas, e outras três caído para trás sufocada, avançou para nós, e com lamentos que repassavam o coração dos que a ouviam, com acento de aflição tão profunda, como o amor de uma mãe, ela, apontando para uma janela, exclamou: — minha filha!... minha filha!...

"Eu olhei, e vi através das chamas aparecer uma moça, que recuou pela força do fumo... ela tinha estendido os braços, implorando compaixão... pedindo que a salvassem... e a morte, a morte com cem línguas de fogo ia prestes devorá-la...

"Era uma cena horrível!... e na minha alma brilhou o pensamento de salvar essa moça...

"Outra vez olhei... as chamas tinham conquistado toda a casa... fantasmas de fumo defendiam as portas... o instinto da conservação me empurrava para longe daquele inferno... o generoso pensamento de salvar a moça ia apagar-se...

"A mãe da desditosa chorava... pedia... mandava... bradava convulsa e delirante...

"O seu grito era um... único... cruel e despedaçador... sempre o mesmo, mil vezes repetido... ela bradava:

"— Minha filha!

"Oh!... mas aquela dor de mãe caiu no meu coração e se espalhou na minha alma... lembrei-me de minha mãe! e, beijando o anel de seus cabelos, gritei — eu a salvo! — e desapareci nas chamas.

"Ouvi o sussurro da multidão, que se espantava da minha temeridade... quase sufocado... subi o primeiro andar... a pobre moça tinha caído desmaiada... levantei aquele precioso fardo, e desci...

"No entanto, o que eu sofria era inexplicável: uma nuvem de fumo densa e ardente me sufocava e abrasava as entranhas... aqui a escada cedia debaixo dos meus pés, e eu tombava com o meu pobre fardo... ali havia um caminho de brasas a atravessar com os meus pés nus... acolá uma tábua caía sobre mim... uma parede estava prestes a esmagar-nos... oh! era horrível!... e só a bondade de um Deus, e a lembrança de minha mãe me deram forças... chegávamos à porta... eu ia outra vez passar por um mar de chamas; mas... um monstro de fumo, imenso... abrasador... insuperável me empurrou para longe!... oh!... eu senti um desespero horrível no coração... a cabeça pesava-me... a boca se abria-se-me as narinas se me dilatavam... e o fumo, o fumo entrava por elas para queimar-me! um não sei quê brilhou diante de meus olhos... um amor da vida, um desejo de salvar-me, forte e irresistível, se apossou de mim... abracei-me com a infeliz moça... fechei os olhos, atirei-me às chamas e não vi mais nada.

"Quando abri os olhos, achei-me num quarto decentemente mobiliado; eu estava deitado, e uma jovem senhora velava junto do meu leito.

"A essa moça tinha eu salvado das chamas com a minha temeridade, e ela por sua vez me salvava então com os seus cuidados e dedicação. Ela chamava-se Emília.

"Graças a mil obsequiosos desvelos eu me restabeleci prontamente; o pai de Emília alcançou a minha baixa e me empregou em sua casa, pois ele é um rico negociante da Bahia.

"Vendo pela minha educação, e por essa fraca instrução que eu tinha adquirido, que só um grande infortúnio me poderia ter obrigado a fazer-me soldado, perguntou pela minha família e pelo meu passado. Eu abaixei os olhos e guardei silêncio; o pai de Emília respeitou o meu segredo e deu-me a sua estima.

"Emília era bela, e eu sensível: nós nos amamos; a gratidão da sua família alimentou o nosso amor.

"Ao tempo coube fazer o resto.

"Em janeiro de 1842 já estava casado com Emília; pareceu-me que a fortuna começava a sorrir-se para mim...

"Era ilusão! a fortuna tinha apenas preparado um novo golpe para ferir-me no coração...

"Há dezoito meses que sou viúvo.

"Por conseqüência, meu tio, agora estou livre; podia voltar ao Rio de Janeiro; mas há alguma outra prisão, que não posso quebrar; é essa cena, que teve lugar na última hora que passei na casa de meus pais. Meu tio, a minha resolução é irrevogável.

"Por falta de um nome ilustre, na carência de tradições de antigos parentes, condes, marqueses, duques, ou elevados fidalgos, a nossa família, meu tio, alimenta o seu orgulho com a lembrança de certas qualidades, com a memória dum caráter forte e talvez extravagante, com que sempre se tem apresentado todos os que têm o sobrenome que eu tive.

"Quando algum dos meus antigos parentes se comprometia a alguma coisa, cumpria a promessa por força, quaisquer que fossem os sacrifícios a que devesse sujeitar-se.

"Um dos meus velhos avós, porque uma vez, em Lisboa, não viu o rei, que passava, e um soldado fez-lhe tirar o chapéu, tratando-o vilmente, jurou que nunca mais traria chapéu na cabeça, viveu ainda cinqüenta anos, e cumpriu à risca o juramento.

"Um outro, sendo levado à Inquisição para ser obrigado a descobrir um segredo que jurara guardar, cortou a língua com os dentes, temendo que as torturas o pudessem nalgum momento fazer esquecer a sua palavra.

"Uma das nossas antepassadas, porque seu filho mais velho se havia portado sem valor num encontro com os infiéis, tomada de vergonha, protestou que nunca mais sairia do seu quarto; só dez anos depois saiu pela primeira vez... num esquife para enterrar-se.

"Meu avô e meu pai deram exemplos da mesma vontade forte, da mesma força de caráter.

"Porém, eles diziam que a árvore já de velha começava a perder o antigo viço; que em Vossa Mercê começara ela a definhar; e que eu não era mais que um fruto degenerado.

"Mas eu quero mostrar que, se não sigo em tudo os passos daqueles que me repeliram, acompanho-os, todavia, em alguma coisa; que se não tenho as velhas idéias, os velhos costumes, os velhos prejuízos que eles trouxeram do século passado e queriam fazer vigorar no século presente, herdei deles a mesma fortaleza de coração e firmeza de vontade.

"No meio de todas as extravagâncias, de que eu próprio acuso o meu gênio, sei tornar-me inabalável naquilo a que uma vez determino.

"Meu tio, eu jurei a mim próprio, e aqui o declaro a Vossa Mercê para o fazer presente à minha avó, à minha prima e à pobre Lúcia, declaro, digo, que cumprirei as ordens que recebi dos meus maiores, executarei as suas vontades, modificando-as apenas em um ponto para obedecer também a minha mãe.

"Assim meu avô disse: ‘Vai-te para sempre de meus olhos e’ se tens piedade de nós, muda teu nome, eu cumpri e cumprirei o que ele quis, pois nunca mais lhe apareci; e, se não mudei o meu nome, pelo menos até agora ainda ninguém me viu assinar o sobrenome que eu tinha de família.

"Minha avó disse: Torne-se em pedra o pão que comprares com o dinheiro pelo qual vendeste os brilhantes da cruz da família. O ladrão não me faça corar de vergonha, aparecendo ainda diante de mim... O meu pão não se tem tornado em pedra, porque o dinheiro com que o compro é ganho com o suor do meu rosto; mas cumprirei também a vontade de minha avó; enquanto ela não se convencer que eu fui vilmente caluniado, não terá, eu o juro, não terá de envergonhar-se, vendo-me diante dos seus olhos.

"Meu pai disse: Consuma o fogo todas as minhas riquezas, antes que tu possas tocar numa só moeda dos meus cofres. Não quero, portanto, um ceitil da herança que me deve tocar pela desgraçada morte de meu avô e de meu pai; cedo todos esses bens para dote de minha prima, e se Vossa Mercê os não quiser aceitar, divida-os com a minha boa Lúcia e os pobres. Quanto a mim, respeitarei a vontade de meu pai, não querendo nada das suas riquezas.

"E minha mãe disse: Vai, meu filho; mas volta um dia com o rosto descoberto para provar a tua inocência. Eis aqui enfim a ordem de minha mãe, que eu ainda não cumpri, mas espero cumpri-la toda inteira, sim, minha mãe! para ir, beijando a sepultura em que descansas, dizer às tuas cinzas — já tenho o rosto descoberto! já provei a minha inocência!

"Mas, enquanto a vontade de minha mãe não for executada à risca, não, nenhum daqueles que injustamente me condenaram me tornará a ver.

"Vossa Mercê, meu tio, que nessa hora de maldições estava também na sala, e não praguejou contra mim; porque hesitava... não hesitei, e creia que me caluniaram.

"Minha prima, que também aí estava, e parecia nada compreender do que se passava, compreenda agora que há no mundo uma serpente venenosa, que morde na honra do homem! é a calúnia, foi ela quem me mordeu.

"Lúcia chorava porque sabia que eu não era capaz de cometer uma ação infame; não se arrependa de ter chorado; ela me fazia justiça; e depois de minha mãe, foi o único coração que tive, onde a minha inocência achasse abrigo.

"Mas eu vejo que tenho abusado da paciência de meu tio; esta carta já vai sendo por demais extensa. Meu tio fica por ela sabendo as minhas inabaláveis resoluções, e, portanto, termino-a aqui. A bênção de minha avó e a amizade de meu tio, outrora as pedi inutilmente; agora só por outra maneira as pretendo conseguir: consegui-las-ei. Há, porém, alguma coisa que me não envergonho de mandar, é uma saudade à minha pobre Lúcia.

"Cidade da Bahia... junho de 1844.

Lauro."

— Então, minha mãe, exclamou Hugo, o rapaz está louco ou não?... Vão agora arrancá-lo de lá.

— Faz bem em não vir, disse Ema; porque me esconderia para não ser obrigada a ver-lhe o rosto.

— Mas, minha mãe, ele escreve de tal modo, que custa muito a não pensar que o caluniaram!

— Também tu, Hugo?

— Minha mãe, é que há uma força tal nas palavras deste pobre Lauro!

— Palavras!... disse Ema, e não é este tempo de escândalo, de irreligião e de liberdade, o tempo das palavras?... todos vós falais bem, falais assim; mas em outrora um só cabelo da barba de um homem valia mais do que valem os vossos mais sagrados juramentos!

— Eis aí minha mãe mortificando-se sem razão.

— Pois não é assim?... tantas leis, tantas constituições, tantas câmaras, e para quê? para desmoralizar o povo, para perverter a mocidade, como se perverteu aquele rapaz até chegar a roubar um objeto sagrado!

— Porém, minha avó, se fosse uma calúnia como ele jura que é?...

— Até tu, Honorina?... até tu, quando foi a ti mesma que ele roubou?...

— A mim, minha avô?... mas como eu não me lembro...

— Oh! era preciso que não falássemos nisso, como não falamos, para ocultar no silêncio a nossa vergonha: lembrar que um nosso filho cometeu tal crime é aprofundar ainda mais uma chaga, que nunca pode sarar; mas enfim... eu quero contar-te, e ainda mais que por direito te pertencia o objeto sagrado. Escuta.

Honorina chegou-se para sua avó com viva demonstração de curiosidade.