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O moço loiro/VI

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— Honorina, disse a velha Ema depois de empregar alguns instantes em coordenar as suas idéias, foi há muito tempo, talvez há seis séculos passados, que sucedeu o que te vou contar.

Nas imediações da cidade de Lisboa havia uma família que se compunha de marido e mulher, cujos nomes não puderam chegar até nós, e de uma moça que era filha deles, que se chamava Arabela; pobre, mas temente a Deus, essa família passava os seus dias sossegada e felizmente.

Arabela, porém, era o que dizia a terminação de seu nome: tão encantadora e engraçada, que, quando passava por alguma rua, os que estavam à janela gritavam para dentro das casas — lá vem ela —, e todos corriam para vê-la, porque já sabiam que quem vinha era Arabela, tão carinhosa e humana que não havia no seu bairro quem, pela ventura de Arabela, não rezasse algumas orações.

Também nunca em tão fresca idade, pois que bem moça era, se vira unidos a tanta inocência, caráter tão firme, prudência tão consumada, e tão seguro e são juízo; por isso todos a tinham em grande respeito e estima. Os seus próprios pais com ela se aconselhavam nas conjunturas difíceis, em que às vezes se achavam; as palavras de Arabela eram para eles oráculos infalíveis; a sua vontade como uma ordem santa, a que com prazer à risca se cumpre.

Apesar da sua pobreza, Arabela mostrava-se tão formosa, que era conhecida de todos pelo nome de Rosa do Tejo, porque o rubor das suas faces semelhava o aspecto, e a virtude da sua alma o perfume da flor.

Arabela tinha feito dezoito anos, e via-se cercada de apaixonados requestadores, que à porfia se extremavam em dar-lhe mais altas provas do amor que os consumia, e que, surda ou insensível achando-a, corriam dela para os pais, a pedir-lhes a filha.

Os pais de Arabela, porém, sabendo o quanto era a moça prudente e recatada, jamais fizeram por dirigir-lhe a vontade para aquilo de que ela parecia querer fugir.

Entretanto, apareceu entre os pretendentes de Arabela um rico e jovem fidalgo, que, levado dos lindos olhos e perfeições da pobre moça, se esqueceu de que alta era a sua linhagem, elevados os seus teres e, descendo do seu brilhante palácio a uma rasteira casinha, veio pôr o seu coração de grande senhor aos pés de uma humilde aldeã.

Debalde o seu muito ostentar de galas e louçainhas, debalde o seu alto despender de agrados e extremos, o grande senhor passava por baixo dos olhos da pobre aldeã com o seu amor tão mal-atendido como os outros: ainda não era a D. Rui Vaz que devia pertencer a alma de Arabela.

Mas o amor de Rui Vaz era tão ardente como puro; e foi ele, a despeito das repulsas da moça, oferecer seu nome à família dela: era um partido imensamente brilhante; era um nome de fidalgo que ia cobrir o desconhecido e simples da popular; era um palácio que se trocava por uma cabana; era um futuro que se oferecia a quem não tinha passado e só podia contar com um pobre presente. Os pais de Arabela foram entusiasmados aplaudir a filha; mas recuaram espantados, porque ela lhes respondeu:

— Não foi para este que eu nasci.

— Mas olha, Arabela, disse o pai, que se trata do Sr. D. Rui Vaz, rico fidalgo de alta linhagem.

— Que hoje me ama, tornou a moça, que casando-se comigo há de ainda amar-me um ano, e depois se envergonhará de meus pais e terá enfim pejo de andar comigo a seu lado.

Os pais calaram-se, porque era isso, na verdade, o que havia de acontecer; mas depois a mãe disse:

— Pensa, Arabela, que já fizeste dezoito anos, e que é tempo de tomar um marido que te proteja; cumpre escolher um noivo.

— Eu já o tenho escolhido, minha mãe.

— Então, quem é?

— Gil Mendonça.

— Bom mancebo é ele, minha filha; mas tão pobre!

— Como eu também o sou, minha mãe; porém, ambos nos amamos.

— Homem, disse a mulher ao marido, irás levar a resposta de Arabela ao Sr. D. Rui Vaz.

— Irei, mulher; posto que me pareça loucura preferir um aldeão a um fidalgo; mas Arabela tem mais juízo do que nós pensamos; ela que assim o fez, é porque assim o devia fazer.

A vontade de Arabela foi prontamente cumprida; e, ao mesmo tempo que D. Rui Vaz se sentia despeitado da sua má fortuna, tudo se dispunha para o casamento da linda popular com o feliz Gil Mendonça.

Na véspera do casamento, em volta de uma tão frugal como alegre mesa, estavam os noivos e seus pais, quando entrou o fidalgo, que vinha tentar o último esforço.

Convidado a tomar parte na parca ceia, ele sentou-se, comeu com boa vontade, e, depois de se levantarem da mesa, pôs em ação quanto podia para desviar Arabela de casar-se com Gil Mendonça, e aceitar a sua mão; pretendeu chamar ao seu partido os pais da moça, dando-lhes conta das suas imensas riquezas, e ganhar o mesmo Gil Mendonça, apelando para a sua generosidade, dizendo-lhe que, se ele sinceramente amava Arabela, devia sacrificar o seu amor para vê-la feliz na elevada posição que se lhe oferecia.

Os pais de Gil Mendonça ficaram duvidosos; os de Arabela inclinados a favor de D. Rui Vaz, porém calados, porque tinham sua filha na conta de muito prudente e sábia, pensavam que tudo quanto ela fazia era somente o que devia ser feito.

Gil Mendonça, silencioso e com os braços cruzados, esperava frio e impávido a resposta de Arabela.

— Sr. D. Rui Vaz, disse Arabela, eu sou reconhecida aos seus extremos; e quero provar que não os desmereço: a mulher que esquece o pobre a quem ama, pelo rico a quem apenas estima, tem coração que com dinheiro se compra?

— Oh! não... bradou o fidalgo.

— E o coração da mulher, prosseguiu a moça, deve ser tesouro sagrado, que nunca se venda, nem vender-se possa, e que só se troque por outro coração igual a ele. Sr. D. Rui Vaz, eu vos dedico a minha estima; Gil Mendonça, tu és o dono do meu amor.

— E tu, Gil Mendonça, disse o fidalgo, tu que dizes?...

— O que ela disse, respondeu o rústico.

— Pois bem, tornou Rui Vaz; pois bem. Gil Mendonça, eu dou-te metade das minhas riquezas, armar-te-ei cavaleiro, ofereço-te duas das minhas vilas, um dos meus castelos e o mais rico dos meus palácios; mas em troca de tudo isso, tu que és dono dos amor de Arabela, cede-mo.

— Vale mais, Sr. D. Rui Vaz, o coração de Arabela.

— Pois tudo, Gil Mendonça, tudo o que é meu... dou-te, tudo...

— Ainda é pouco.

— Oh!... dize! pois com que se pode comprar esse amor que eu aspiro, e a posse daquela moça?...

O popular sacudiu a cabeça friamente, como quem dizia:

— O amor nem se compra, nem se vende.

— E eles nem pensam no futuro daquela linda moça!... exclamou o fidalgo pegando no chapéu. Gil Mendonça! pobre Gil Mendonça! que darás tu por herança ao filho de Arabela?... oh! pobreza!... sempre pobreza!...

O rosto do plebeu pareceu anuviar-se; passado um momento, ele levantou a cabeça, e disse:

— Nobre Sr. D. Rui Vaz, o filho de Arabela não herdará de mim nem palácios, nem castelos, nem um colar de cavaleiro, porque plebeu nasci, e plebeu morrerei; mas juro, à face de Deus, que dia e noite trabalharei por ele, e para deixar-lhe uma herança que o livre da miséria e do infortúnio.

Depois, voltando-se para sua noiva, disse com voz grave e firme:

— Arabela! a Deus o juro!

No dia seguinte Arabela era à face dos altares a mulher de Gil Mendonça.

Alguns dias depois o nobre e leal cavaleiro Sr. D. Rui Vaz tinha desaparecido das terras de Portugal; era um jovem fidalgo que, aos vinte e cinco anos de idade, aborrecia o mundo...

Ao lado de Arabela, Gil Mendonça, senhor do seu coração, e certo da sua fidelidade, vivia feliz e sossegado; três anos se passaram, em que ele pedia ao céu um filho e, na esperança de vir a tê-lo, trabalhava com ardor indizível para preparar-lhe uma herança.

Ele nunca esquecia o seu juramento.

No fim de três anos Arabela concebeu, e Gil Mendonça, festejando com entusiasmo tal acontecimento, sentiu, todavia, com tristeza que se achava ainda tão pobre como dantes. E ainda trabalhou mais...

No fim de nove meses, Arabela deu à luz uma linda menina, a quem puseram o nome de Isabel.

No dia que se seguiu ao do batizado, Gil Mendonça falou a sua mulher.

— Arabela, tu tens visto com que ardor eu trabalho e como mal nos paga a fortuna. Todos os dias me parece estar ouvindo as palavras daquele fidalgo que te amou: — que darás tu por herança ao filho de Arabela?... enfim, tu deste-me uma filha, eu lembro-me também, que por Deus te permiti dar-lhe uma herança; vejo que nada faço na minha terra, e vou partir.

— Partir para onde?...

— Vou correr o mundo, Arabela, e conseguirei sem dúvida uma herança para deixarmos a Isabel.

A despeito das lágrimas e dos conselhos de Arabela, Gil Mendonça fez de sua roupa uma trouxa, tomou um bastão e o chapéu, e, recebendo a bênção de seus pais, beijou sua filha, abraçou ternamente a sua esposa, e partiu.

Gil Mendonça não sabia escrever, e Arabela não esperava notícias dele; contentou-se com chorar as suas saudades, consolando-se com o lindo anjinho que das suas entranhas recebera o nome do céu.

O tempo foi correndo; os dias e semanas foram passando, depois meses e anos, sem que chegasse notícia alguma de Gil Mendonça.

No entanto, ia crescendo Isabel; linda e engraçada como fora Arabela nessa feliz idade, sua mãe espelhava os antigos encantos infantis no rosto, e as suas virtudes no coração de Isabel.

Com toda a sublime ternura do amor maternal, Arabela perdeu primeiro as noites velando junto do berço querido, bebeu depois entusiasmada os sorrisos meigos e inocentes da filha da sua alma, escutou e decorou a sua primeira palavra, ensinou-lhe a repetir o nome de seu pai, dirigiu os seus primeiros passos, e, quando Isabel começou a falar, aprendeu logo de sua mãe a pedir a Deus o regresso de Gil Mendonça.

Ao amanhecer de todos os dias Arabela levava Isabel pela mão à porta da rua e, mostrando-lhe uma estrada, que fronteira ficava, dizia-lhe:

— Foi por ali, Isabel, que por amor do teu futuro partiu teu pai; é por ali que ele deverá voltar; todas as manhãs viremos esperar por ele, todas as tardes também; no entanto, Isabel, continua ser a boa menina, para que ele te ache bonita, e te ame como eu.

E depois Arabela voltava o rosto para esconder as lágrimas de Isabel, que poderia chorar também, e afligir assim o seu coração maternal. Ainda se passou muito tempo sem que murchasse na alma de Arabela a esperança de ver chegar seu marido, e sem que este tornasse. Finalmente chegou o dia do natalício de Isabel.

Tinham-se passado nove anos depois que Gil Mendonça partiu em procura de melhor fortuna.

Ao amanhecer, Arabela, como costumava, levou Isabel pela mão até à porta, e disse:

— Isabel, fazes hoje nove anos; há quase outro tanto que teu pai, por amor do teu futuro, nos deixou, partindo por ali... e é por ali que ele deverá voltar; esperemos...

O dia se passou como tantos outros, e, ao quebrar da tarde, Arabela, que se sentia abatida e aflita, sem, contudo, adivinhar a causa do que sofria, recolheu-se ao seu quarto, ficou só, chorando em segredo as suas saudades.

Isabel foi, segundo costumava fazer com sua mãe, sentar-se à porta da casa e, fitando os olhos na estrada fronteira, como não tivesse ao lado sua mãe para repetir-lhe as palavras que sempre lhe ouvia, repetiu-as ela mesma:

— Foi por ali que, por amor do meu futuro, partiu meu pai, e é por ali que ele deverá voltar: continuarei a ser boa menina, para que ele me ache bonita e me ame como minha mãe.

Então ela viu vir chegando em direção à sua casa um velho peregrino, que parou a dois passos diante dela.

— Boa-tarde, minha menina! disse o peregrino.

— Boa-tarde, meu velho! respondeu ela.

— Olhavas com tanta curiosidade para mim, que me lembrei de vir perguntar a causa.

— Ora... é que o senhor vinha pelo mesmo caminho por onde deve vir meu pai.

— Teu pai?... e como te chamas, menina?...

— Isabel, meu velho.

— Isabel?!... repetiu o peregrino com violenta comoção; e depois continuou: Isabel, eu tenho fome, dar-me-ás que comer?

— Sim, sim, entre: nós lhe daremos pão, ovos, bolos e vinho.

O velho peregrino entrou, e daí a pouco foi cercado por toda a família, que lhe ofereceu uma frugal refeição. O semblante desse homem era respeitável: a cabeça estava toda branca, a voz era trêmula e compassada.

— Boa gente, disse ele depois de dar fim à sua alimentação, é hoje o dia em que faz nove anos aquela menina?...

— Sim... sim... e como o sabeis?...

— Eu vos trago novas do Sr. Gil Mendonça...

Um grito de Arabela interrompeu o peregrino:

— E onde está ele?... perguntou.

— Na eternidade, Arabela! respondeu o velho.

— Morto!... morto!... Isabel!... tu és órfã!... e eu sou viúva!... minha mísera filha!

Arabela abraçada em sua filha soluçava de um modo terrível; era a expressão de uma dessas dores profundas, que se trocaria em amargoso e despedaçador silêncio, se ao pé não estivesse uma filha para desfazê-la em lágrimas.

— Minha filha! minha pobre Isabel! exclamou depois de muito tempo Arabela, que te resta agora?...

— A herança de seu pai, respondeu o peregrino; a herança de seu pai, que trazer-vos venho.

Todos olharam admirados para aquele homem.

— Arabela, continuou ele, modera tua justa aflição, e escuta-me; vós todos ouvi-me; Isabel, sossega tua mãe, e atende-me também. Gil Mendonça, casando-se com Arabela, jurou que à força de seu braço saberia ganhar bastante para deixar ao filho, que tivesse, uma herança, que o tirasse da miséria e do infortúnio. Trabalhando sem descansar, trabalhando com ardor admirável, Gil Mendonça não deu um passo avante, e no fim de três anos o céu lhe havia concedido uma filha; mas ele achava-se ainda tão pobre como dantes. Então, entendeu que lhe cumpria ir buscar em outras terras a fortuna; deixou pátria, esposa, filha e família, deixou tudo, e, com sua vontade de ferro no coração, vagou pelo mundo oito anos; mas parece que a sua estrela o tinha condenado a ser pobre, de modo que baldados todos os seus esforços, ele se via sempre o mesmo, tendo por únicos bens a trouxa de seus vestidos e o bordão do peregrino.

Sempre animoso, sempre trabalhando, ele correu a Espanha, a Itália, grande parte da Alemanha e voltou de novo à Itália, entrou na França, sem que a fortuna lhe tivesse sido um dia menos adversa. Há seis meses passados, enfim, ele estava em Provença e se dirigia à cidade de Aix.

Passava perto de uma ermida, viu sua porta aberta, e a ela se dirigiu para ofertar suas orações ao Altíssimo... Dentro da ermida havia sussurro; e passavam-se cenas de horrível profanação... Gil Mendonça entrou e ficou pasmado do que via; o altar estava destruído, imagens santas feitas pedaços rolavam pela terra... homens furiosos... uma horda de demônios em delírio, que em uma mão traziam um facho e na outra um machado, pareciam querer levar a destruição inda além.

Eram os maniqueus, os devastadores dos templos e das imagens, os gênios de destruição e do horror!

Um pobre e velho eremita, um desgraçado monge, coberto de cabelos brancos, e meio caído em um canto da ermida, se abraçava com ardente devoção com uma pequena e santíssima cruz de ouro, que tinha arrancado do altar, destruído logo depois, para assim salvá-la das mãos sacrílegas dos maniqueus.

Esse velho indefeso e inerme estava cercado por vinte miseráveis, que contra ele despejavam pragas, maldições e ameaças.

— Tem ainda uma cruz nas mãos! exclamou um deles, seja quebrada, seja destruída!

— Não! não!... não!... exclamou o pobre monge matai-me antes!...

Mas uma onda de maniqueus caiu sobre ele, e um desses monstros arrancou-lhe a cruz dentre as mãos...

O monge caiu de joelhos, e, levantando as mãos para o céu, pôde apenas exclamar:

— A cruz de Jesus Cristo!... quem salva a cruz de Jesus Cristo!?...

O sacrílego, que arrancara o Santo Lenho das mãos do monge, estava a dois passos de Gil Mendonça, em quem os maniqueus não tinham reparado, e levantava uma pedra para quebrar a cruz, quando com voz de trovão Gil Mendonça bradou:

— Judeu! pára!...

Sua voz ressoou terrivelmente no seio da ermida; uma multidão de braços se levantou contra ele!... mas Gil Mendonça sem hesitar descarregou o seu bastão sobre a cabeça do sacrílego, e, ao mesmo tempo que este caía desmaiado, ele se apossava da cruz. Então os maniqueus avançaram sobre Gil Mendonça, que se defendeu nobremente; enfim, cercado de todos os lados, depois de ferido cem vezes, tendo sempre a cruz em seu peito, e já tinta com seu sangue, o valente cristão caiu debaixo de tantos golpes, quando também uma centena de religiosos agricultores entrando na ermida, começaram a bater e lançar por terra os maniqueus.

Meia hora depois os sacrílegos tinham sido completamente postos em fuga, deixando muitos dos seus companheiros mortos; no meio desses cadáveres, o monge foi levantar o frio corpo daquele que sacrificara sua vida em defesa do Santíssimo Lenho.

Gil Mendonça ainda respirava, e com força indizível apertava a cruz contra o coração.

Graças aos cuidados que lhe foram prodigalizados, ele abriu os olhos, viu ao pé de si o monge, e pôde falar. Contou então em poucas e entrecortadas palavras a história de sua vida; disse ao monge o nome de sua mulher e de sua filha, ensinou-lhe o lugar onde moravam, e concluiu dizendo:

— Monge! eu vou morrer; mas esta cruz é minha! esta cruz é o fruto de perto de nove anos de trabalho! esta cruz é a herança que deixo à minha filha; ela será feliz. Monge, tu me deves talvez a vida, serve-me, pois, no que te vou pedir: irás a Lisboa, sabe já onde moram meus parentes; de hoje a seis meses faz Isabel nove anos; tens cento e oitenta e um dias contados para lá ir; tu lhe entregarás nesse dia a cruz que passo agora às tuas mãos; dize-lhe que foi resgatada com o sangue e com a vida de seu pai, que lha deixa por herança.

Uma herança havia eu jurado legar-lhe... herança que a pusesse a salvo do infortúnio e da miséria... perto de nove anos trabalhei para cumprir meu juramento... eu buscava ouro... ouro para minha filha... e graças a Deus, eu deixo mais do que ouro, mais do que tudo... a ela... e a todos os meus descendentes. Essa cruz deverá fazê-los felizes!... protegerá a inocência e a fraqueza!... dize a minha filha, que sempre que nascer para o futuro uma herdeira do nosso nome, se lhe entregará a cruz, quando fizer nove anos, até que venha uma nova herdeira, e complete também essa idade... Monge... a herança de minha filha é sagrada!... cumpre o que te peço... leva minhas despedidas a meus pais... a Arabela... e a Isabel... e enfim... reza por minha alma...

Gil Mendonça deixou então cair a cabeça e expirou; o monge rezou duas horas ao lado de seu cadáver, e, erguendo-se depois, disse em voz baixa:

— E ele morreu sem reconhecer-me!

— Agora, Isabel, tu já ouviste as disposições de teu pai; recebe, pois, a herança que te pertence.

E isto dizendo, o velho peregrino tirou do seio uma cruz de ouro, que entregou a Isabel.

Toda essa história tinha sido ouvida com a maior atenção, no mais profundo silêncio. No fim dela, a cruz foi por todos beijada, e o pranto da família recomeçou.

Ao amanhecer do dia seguinte, o velho peregrino abençoou a triste família, e partiu para nunca mais voltar.

Quando, ao quebrar da estrada, a casa de Arabela tinha de desaparecer para sempre a seus olhos, o peregrino voltou-se, e, limpando duas grossas lágrimas, disse:

— E Arabela viu-me!... ouviu-me!... e não me reconheceu!

E esse monge, cujos cabelos estavam completamente brancos... esse monge pálido... magro... com o rosto enrugado... as mãos trêmulas... o andar mal seguro... esse monge, que todos julgariam octogenário... tinha apenas trinta e cinco anos...

Oh!... é porque há alguma coisa que envelhece e gasta o homem ainda mais do que o tempo... é a paixão desgraçada, que não se extingue nunca... que escondida no fundo do coração... acabrunha o espírito e muda o aspecto do homem...

E aquele monge...

Gil Mendonça esteve nos seus braços... viu-o... ouviu-o... e não o reconheceu!

E esse peregrino...

Arabela hospedou-o em sua casa... viu-o... ouviu-o... e não o reconheceu!

Nunca mais se ouviu falar, e nunca mais se falou em D. Rui Vaz.