O moço loiro/XIV
No fim da quinta quadrilha Lucrécia sentou-se junto de Honorina, e esperou ansiosa pelo momento de sua vingançazinha de moça. Quando a orquestra deu o sinal desejado, ela lhe perguntou:
— Com quem dança esta quadrilha, minha senhora?...
— Juro-lhe que me não lembro; eu não conheço aqui ninguém; pediram-me contradanças... disse que sim; e espero que me venham buscar.
— Oh! quisesse o céu que ficasse sentada, Honorina, eu não danço agora, e passearíamos sós.
— Raquel, eu também o desejo; mas tenho medo de o desejar em vão.
— Preferes tu passear comigo a dançar a sexta quadrilha?...
— Sim... mas...
— Pois vem cá, vamos para a toilette, e desceremos para passear, quando a quadrilha tiver começado.
— E o cavalheiro com quem me comprometi dançar?...
— Virá buscar-te, e, não te encontrando, procurará outra senhora.
— Porém, Raquel, deve-se fazer tal?...
— Ora... ora... ora... quando eu digo que tu és simples demais, Honorina!... escuta: todas nós, quando temos pouca vontade de dançar, ou não queremos fazer com algum cavalheiro, com quem a civilidade nos obrigou a comprometer-nos, apelamos sempre para a toilette, não pode haver melhor desculpa! estive concertando o cabelo... fui pregar um colchete que se rebentou... etc. etc. etc., são coisas que se dizem e que devem contentar.
— Porém, Raquel, deve-se fazer tal?...
— Deve-se, Honorina; é mesmo uma compensação; porque muitas vezes os nossos cavalheiros nos deixam ficar sentadas, entretidos e colados na mesa do écarté; ora, é muito mais natural e muito menos repreensível, que uma moça se esqueça de um cavalheiro, presa defronte do toucador, do que um cavalheiro se esqueça de uma senhora por um baralho de cartas; por conseqüência, anda... vamos... vem esquecer-te...
— Eu não sei...
— Mas para que há de deixar de dançar?... perguntou Lucrécia afetuosamente.
— Para passear comigo, minha senhora, respondeu Raquel, levando Honorina pela mão, e quase à força.
A viúva ficou exasperada com tão imprevisto contratempo; com frieza acompanhou Otávio, que a veio receber, e dançou sem prazer algum.
No entanto, Raquel apenas sentiu que a quadrilha tinha começado, tomou o braço de Honorina e disse sorrindo-se:
— Agora que já te esqueceste, e que já concertaste o teu cabelo, desçamos para passear.
E as duas moças desceram e, dirigindo-se ao terrado, foram atravessando a sala do jogo.
— Quanta gente! disse Honorina; todo esse mundo, Raquel, diverte-se jogando?...
— Sem dúvida... o que tem isso?...
— É que deve ser um jogo bem interessante.
— Sim... sim... é o écarté, jogo um bocadinho menos complicado do que o diabrete.
— Ora, Raquel!
— Como queres que te diga, Honorina?
— Então aquela gente toda...
— Empenha-se por ganhar ou perder dinheiro da maneira a mais desenxabida do mundo.
Nesse momento, e quase ao mesmo tempo, Honorina e Raquel entravam no terrado, e Tomásia saía dele.
Tomásia tinha sofrido uma contrariedade no meio de sua glória dessa noite: o cavalheiro, que lhe havia pedido a sexta quadrilha, a tinha deixado ficar sentada, e Tomásia, quando não dançava, ou brigava com Venâncio, ou arquejava.
Há um costume velho nos saraus: ali se contam certos moços que querem dançar sempre e a todo o custo; e, se encontram todas as moças engajadas, atiram-se para dois lados das sociedades, os quais eles consideram talvez como dois esquadrões de reserva: são as crianças e as senhoras idosas; aí vão eles encher o número das quadrilhas que lhes faltam; porém, se no correr do sarau aparece alguma jovem que os queira ouvir, os meus senhores não têm dúvida nenhuma de deixar esperando inutilmente tanto a velha como a criança, que a vão buscar para a quadrilha.
A Tomásia tinha sucedido, pouco mais ou menos, isso mesmo: seu prometido cavalheiro tinha deparado com uma jovem piedosa, e para logo esqueceu-se completamente de Tomásia, apesar mesmo de ser dona da casa.
Era por isso que Tomásia se achava em horas de tempestade; ardendo em desejos de encontrar em quem despejar seus furores, sua boa fortuna lhe mostrou o pobre Venâncio, que se dirigia para o interior da casa.
— Aonde vais, Venâncio?...
— Tomásia, vou ver como vai isto cá por dentro...
— E que tem o senhor com o que vai pelo interior da casa?... não sabe que isso pertence ao cuidado das senhoras?...
— Está bem, Tomásia, não te aflijas... estás tão colérica...
— Colérica?... e como não estar, se sinto a todos os momentos que me acho casada com um tolo, um água-morna, que para nada serve...
— Oh! senhora, nem mesmo agora me deixa descansar?!
— Vamos... vá para a sala... ou mesmo será melhor que fique cá dentro, para me não envergonhar.
— Então, Tomásia, disse pacificamente Venâncio, queres que vá ou que fique?..
— Quero que me não exasperes!... bradou a mulher; anda... dá-me o braço, e conduze-me à sala.
O pobre homem chegou-se para ela, e, torcendo-se com a dor dos beliscões que recebia, a foi acompanhando com os lábios enfeitados pelo sorriso mais mal fingido do mundo.
No entanto Honorina e Raquel se haviam assentado juntas em um dos bancos do terrado e conversavam alegremente, quando entrou um jovem, que poderia ter pouco mais ou menos vinte e dois anos, e que se foi sentar defronte delas triste e pensativo.
As duas moças, com uma rápida vista de olhos, fizeram um completo exame do recém-chegado: era moço, magro e de estatura ordinária; tinha belos cabelos loiros, que lhe caíam em anéis em derredor da cabeça; estava pálido e triste, o que não deixava de dar alguma graça a seu rosto simpático, e talvez bonito para rosto de homem; vinha vestido todo de preto e de gravata branca, e prendendo à fina camisa um rico alfinete de esmeralda; calçava, enfim, botins envernizados. A figura graciosa e modesta desse jovem tocou notavelmente as duas moças; como ele se conservasse silencioso e com os olhos fitos no chão, elas começaram a falar em voz baixa.
— Quem é?... perguntou Honorina.
— Eu não sei, respondeu Raquel, não me lembro de ter visto este moço.
— Está vestido sem exageração, e com elegância...
— Traz ao peito um alfinete de esmeralda... a cor verde quer dizer esperança; então é porque ele tem alguma esperança no coração.
— Olha... ele não é feio.
— E está melancólico e pensativo... em que pensará ele?...
— Meu Deus... eu não posso adivinhá-lo.
— Pois pergunta-lhe.
— Raquel! tu julgas-me doida?...
— Não... mas tinha vontade de saber em que ele pensa.
— É que tu és muito curiosa, Raquel.
— Mas não, Honorina, é que é muito mau costume vir um moço sentar-se melancólico e cabisbaixo defronte de duas moças... e pensando... pensando em quê?...
— Olha... ele suspirou; Raquel, saiamos daqui.
— Por quê?... pelo contrário, demoremo-nos.
— Olha... suspirou outra vez...
— Coitado! Honorina! pergunta-lhe se está doente.
— Eu!... Deus me livre.
— Pois então pergunto-lhe eu.
— Raquel!...
— O senhor está incomodado?... perguntou a moça em voz alta.
O mancebo pareceu estremecer; ouvindo a voz de Raquel, levantou a cabeça e fitou nas duas moças dois olhos cheios de fogo.
— Perdão, minhas senhoras, disse ele com voz comovida, perdão, se tenho cometido alguma falta!... eu não sei de mim mesmo!...
— Está doente?... perguntou outra vez Raquel.
— Cala-te, extravagante! disse Honorina ao ouvido da amiga.
— Oh!... muito doente... respondeu o moço animando-se; muito doente na verdade!... na minha cabeça está um fogo que me devora; no meu coração se cria... se agita um sentimento que eu nunca experimentei até há bem poucos dias, mas que hoje é já suficientemente forte para fazer-me desgraçado!...
— Ora aí está o que tu querias ouvir; já sabes em que ele pensava?... murmurou Honorina ao ouvido de Raquel.
— Espera, tola, deixa ouvir a relação da moléstia do moço, disse Raquel; e, voltando-se para o mancebo, continuou: e, portanto, veio ao sarau para distrair-se? Tem passado melhor?...
— Cheguei agora mesmo, minha senhora.
— Ah! pensei que tinha estado cá desde o começo...
— Eu não sabia deste sarau... não fui convidado... não conheço aqui ninguém...
— Então?...
— Passei... ouvi tocar... entrei; ninguém me perguntou quem eu era, cheguei até aqui; a primeira pessoa que me falou, foi V. Ex.ª
— Mas... quase uma imprudência; podiam tê-lo tratado mal.
— Pois se eu digo que estou louco!... que padeço, e não sei o que tenho... oh!... não! isso não, eu sei bem o que padeço.
— Portanto...
— Eu amo.
As moças não disseram palavra.
— É uma nova imprudência que pratico, estar ocupando a atenção das senhoras com a relação dos meus sofrimentos; mas eu preciso falar para consolar-me!... Eu amo... muito! como ninguém amou ainda! amo uma virgem bela, inocente e pudibunda; e ela não sabe o que eu sofro, ignora a paixão que por ela nutro, ignora que vou morrendo pouco a pouco... em silêncio... com o meu segredo escondido no fundo de minha alma. Devo eu fazê-la corar diante de mim, perguntando-lhe se também me ama?... ou se me paga com ingratidão?...
— Como terá sempre de chegar a esse extremo... disse Raquel.
— Oh!... não!... balbuciou Honorina.
— Eu penso como a senhora, continuou o mancebo: fazê-la corar à minha vista, não; seria demais para ela. Eu tenho estudado o meio. V. Ex.as me têm tratado tão agradavelmente, que não hesito em confessar-lhes tudo.
— Vamos... Raquel, vamos para dentro.
— Não... deixa o senhor acabar.
— Minhas senhoras, o meu projeto é filho de um sonho: é, pois, um sonho que eu quero realizar. Eu sonhei que me havia encontrado com a jovem, que me faz enlouquecer de amor; não querendo implorar ali a sua gratidão, mas desejando merecê-la, fingi uma paixão... contei uma história, e disse que, para saber se era ou não amado, em uma manhã a mulher que eu amava acharia sobre a janela de seu gabinete uma sempre-viva... se ela fosse grata... guardaria a flor; se me desprezasse, deixá-la-ia cair para o lado de fora.
— É um bonito sonho, disse Raquel.
— Que continua ainda, minha senhora. No dia seguinte, a jovem senhora, que eu amava e a quem havia contado a minha história, quando acordou achou em cima da janela de seu gabinete uma sempre-viva!... lembrou-se de mim... lembrou-se do homem que a adorava...
— E o que fez?... perguntou Raquel.
— Despertei nesse momento, minha senhora! ficou, pois, o meu sonho incompleto; mas eu quero aproveitar-me dele... realizá-lo... para ver no que acaba...
— Raquel... Raquel... vê como chega tanta gente... tu és louca, Raquel!...
— Sim... disse o moço; é a multidão que chega... a multidão que me pesa. Devo sair, minhas senhoras; agradeço a obsequiosa atenção com que fui ouvido: o sofrimento a merecia!...
O moço, como para não ser conhecido, escondeu parte do rosto com o lenço e desapareceu no meio da multidão; Honorina e Raquel não o viram mais durante o resto do sarau.
Aquele mancebo, cujo nome as duas moças ignoravam, mas que tinha uma figura nobre e simpática, e uma voz tão doce como comovida, deixou no espírito de ambas uma sensação serena e agradável.
O sarau terminou às duas horas da manhã.