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Origem das espécies/Dificuldades levantadas contra a hipótese da descendência com modificações

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CAPITULO VI


Dificuldades levantadas contra a hipótese e descendência com modificações


Muitas objecções se devem, sem dúvida, ter apresentado ao espírito do leitor antes que haja chegado a esta parte da minha obra. Umas são tão graves, que ainda hoje não posso reflectir nelas sem me sentir um tanto abalado; mas, tanto quanto posso julgar, a maior parte são apenas aparentes, e quanto às dificuldades reais, não são, creio eu, fatais à hipótese que sustento.

Podem agrupar-se estas dificuldades e estas objecções assim como segue:

  1. Se as espécies derivam de outras espécies por graus insensíveis, porque não encontramos inumeráveis formas de transição? Porque não está tudo na natureza no estado de confusão? Porque são as espécies tão bem definidas?
  2. É possível que um animal tendo, por exemplo, a conformação os hábitos do morcego, possa formar-se em seguida a modificações sofridas por outro animal tendo hábitos e conformação inteiramente diferentes? Podemos nós acreditar que a selecção natural consiga produzir, de uma parte, órgãos insignificantes tais como a cauda da girafa, que serve de apanha-moscas e, por outra parte, um órgão tão importante como o olho?
  3. Os instintos podem adquirir-se e modificar-se pela acção da selecção natural? Como explicar o instinto que possui a abelha para construir as células e que lhe faz exceder assim as descobertas dos maiores matemáticos?
  4. Como explicar que as espécies cruzadas umas com outras ficam estéreis ou produzem descendentes estéreis, enquanto que as variedades cruzadas umas com outras ficam fecundas?

Discutiremos aqui os dois primeiros pontos; consagraremos o capítulo seguinte a algumas objecções diversas; o instinto e a hibridez farão o objecto de capítulos especiais.

DA FALTA OU DA RARIDADE DAS VARIEDADES DA TRANSIÇÃO

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A selecção natural actua apenas pela conservação das modificações vantajosas; cada nova forma, sobrevindo numa localidade suficientemente povoada, tende, por consequência, a tomar o lugar da forma primitiva menos aperfeiçoada, ou outras formas menos favorecidas com as quais entra em concorrência, e termina por exterminá-las. Assim, a extinção e a selecção natural vão constantemente de acordo. Por conseguinte, se admitimos que cada espécie descende de alguma força desconhecida, esta, assim como todas as variedades de transição, foram exterminadas pelo facto único da formação e do aperfeiçoamento de uma nova forma.

Mas porque não encontramos nós frequentemente na crusta terrestre os restos destas inumeráveis formas de transição que, segundo esta hipótese, devem ter existido? A discussão desta questão encontrará melhor lugar no capítulo relativo à imperfeição dos documentos geológicos; limitar-me-ei a dizer aqui que os documentos fornecidos pela geologia são infinitamente menos completos do que se crê ordinàriamente. A crusta terrestre constitui, sem dúvida, um vasto museu; mas as colecções naturais provindo deste museu são muito imperfeitas e têm sido reunidas além disso com longos intervalos.

Como quer que seja, objectar-se-á sem dúvida que devemos encontrar certamente hoje muitas formas de transição quando muitas espécies próximas habitam uma mesma região.

Tomemos um exemplo muito simples: atravessando um continente de norte a sul, encontra-se ordinàriamente, com intervalos sucessivos, espécies muito próximas, ou espécies representativas, que ocupam evidentemente pouco mais ou menos o mesmo lugar na economia natural do país. Estas espécies representativas encontram-se muitas vezes em contacto e confundem-se mesmo umas com outras; pois, à medida que uma se torna cada vez mais rara, a outra aumenta pouco a pouco e acaba por substituir a primeira. Mas, se nós compararmos estas espécies onde elas se confundem, não são em geral tão absolutamente distintas umas das outras, por todas as particularidades de conformação, como o podem ser os indivíduos tomados mesmo no centro da região que constitui o seu habitat ordinário, Estas espécies próximas, na minha hipótese, descendem de uma origem comum; durante o decorrer das suas modificações, cada uma delas deve ter-se adaptado às condições de existência da região que habita, deve ter suplantado e exterminado a forma original semelhante, assim como todas as variedades que formam as transições entre o seu estado actual e os seus diferentes estados anteriores. Não se deve esperar encontrar actualmente, em cada localidade, numerosas variedades de transição, posto que devam ter existido e que possam estar aí enterrados no estado fóssil. Mas porque se não encontram actualmente, nas regiões intermediárias, apresentando condições de existência intermediárias, variedades ligando intimamente umas às outras as formas extremas? Eis uma dificuldade que me embaraçou durante muito tempo; mas pode explicar-se, creio eu, até certo ponto.

Em primeiro lugar, é necessário evitar concluir que uma região foi contínua durante longos períodos, porque assim o é hoje. A geologia parece demonstrar-nos que, mesmo durante as últimas partes do período terciário, a maioria dos continentes eram divididos em ilhas nas quais as espécies distintas podiam formar-se separadamente, sem que as variedades intermediárias pudessem existir nas zonas intermédias. Em seguida a modificação na forma das terras e as alterações climatéricas, as superficies marinhas actualmente contínuas devem ter existido muitas vezes até uma época recente, num estado muito menos uniforme e muito menos contínuo que ao presente. Mas não insisto sobre este meio de evitar a dificuldade; julgo, com efeito, que muitas espécies perfeitamente definidas são formadas nas regiões estritamente contínuas; mas creio, por outra parte, que o estado outrora dividido de superfícies que não fazem hoje mais do que uma, representou um papel importante na formação de novas espécies, sobretudo nos animais errantes que se cruzam fàcilmente.

Se observamos a distribuição actual das espécies sobre um vasto território, vemos que são, em geral, muito numerosas numa grande região, que depois se tornam de repente cada vez mais raras sobre os limites desta região e que terminam por desaparecer. O território neutro, entre duas espécies representativas, é pois geralmente muito estreito, comparativamente ao que é próprio a cada uma delas. Observamos o mesmo facto fazendo a ascensão de uma montanha; Alphonse de Candolle fez notar com que rapidez desaparece por vezes uma espécie alpina comum. As sondagens efectuadas à draga nas profundezas do mar fornecem resultados análogos a E. Forbes. Estes factos devem causar alguma surpresa àqueles que consideram o clima e as condições físicas da existência como os elementos essenciais da distribuição dos seres organizados; porque o clima, a altitude ou a profundidade variam de maneira gradual e insensível. Mas se pensarmos que cada espécie, mesmo no seu centro especial, aumentaria imensamente em número sem a concorrência que lhe opõem as outras espécies; se nós pensarmos que quase todas servem de presa às outras ou lutam entre si; se nós pensarmos, enfim, que cada ser organizado tem, directa ou indirectamente, as relações mais íntimas e mais importantes com os outros seres organizados, é fácil compreender que a extensão geográfica de uma espécie, habitando um país qualquer, está longe de depender exclusivamente das mudanças insensíveis das condições físicas, mas que esta extensão depende essencialmente da presença de outras espécies com as quais se encontra em concorrência e que, por conseguinte, ou lhes serve de presa, ou a ela servem de presa. Ora, como estas espécies são por si mesmas definidas e se não confundem por gradações insensíveis, a extensão de uma espécie qualquer dependendo, em todos estes casos, da extensão das outras, tende a ser por si mesma nitidamente circunscrita. Além disso, sobre os limites do seu habitat, aí onde existe em menor número, uma espécie está extremamente sujeita a desaparecer em seguida às flutuações no número dos seus inimigos ou dos seres que lhe servem de presa, ou ainda com as mudanças na natureza do clima; a distribuição geográfica da espécie tende então a definir-se ainda mais manifestamente.

As espécies vizinhas, ou espécies representativas, quando habitam uma região contínua, são ordinàriamente distribuídas de tal maneira que cada uma delas ocupa um território considerável e havendo entre elas um território neutro, comparativamente estreito, no qual se tornam de repente cada vez mais raras; as variedades não diferindo essencialmente das espécies, a mesma regra se lhes aplica provàvelmente. Ora, no caso de uma espécie variável habitando uma região muito extensa, teremos de adaptar duas variedades a duas grandes regiões e uma terceira variedade a uma zona intermediária limitada que as separe. A variedade intermediária, habitando uma região restrita, é, por consequência, muito menos numerosa; ora, tanto quanto o posso julgar, é o que se passa entre as variedades no estado da natureza. Pude observar exemplos admiráveis desta regra nas variedades intermediárias que existem entre as variedades bem talhadas do género Balanus. Resulta também dos documentos que me transmitiram M. Watson, o Dr. Asa Gray e M. Wollaston, que as variedades ligando duas outras formas quaisquer são, em geral, numèricamente menos numerosas que as formas que elas ligam. Ora, se podemos confiar nestes factos e nestas induções, e concluir que as variedades que ligam outras existem ordinàriamente em menor número que as formas extremas, devemos compreender igualmente por que as variedades intermédias não podem persistir durante longos períodos, e por que, em regra geral, são exterminadas e desaparecem mais depressa que as formas que ligavam primitivamente entre si.

Já vimos, com efeito, que todas as formas numèricamente fracas correm mais risco de ser exterminadas do que as que compreendem numerosos indivíduos; ora, neste caso particular, a forma intermediária está essencialmente exposta às invasões das formas muito próximas que a circundam de todos os lados. Há, além disso, uma consideração muito mais importante: é que, enquanto se executam as modificações que, pensamos nós, devem aperfeiçoar duas variedades e convertê-las em duas espécies distintas, as duas variedades que são, numèricamente falando, as mais fortes e que ocupam um habitat mais extenso, têm grandes vantagens sobre a variedade intermediária que existe em pequeno número numa estreita zona intermediária. Com efeito, as formas que compreendem numerosos indivíduos têm mais probabilidade do que as formas menos numerosas de apresentar, num tempo dado, mais variações à acção da selecção natural. Por consequência, as formas mais comuns tendem, na luta pela existência, a vencer e a suplantar as formas menos comuns, porque estas últimas modificam-se e aperfeiçoam-se mais lentamente. É em virtude deste princípio, julgo eu, que as espécies comuns em cada país, como vimos no segundo capítulo, apresentam, em média, um maior número de variedades bem definidas do que as espécies mais raras. Para bem fazer compreender a minha opinião, suponhamos três variedades de carneiros, uma adaptada a uma vasta região montanhosa, a segunda habitando um terreno comparativamente restrito e acidentado, a terceira ocupando as planícies extensas que se encontram na base das montanhas. Suponhamos, além disso, que os habitantes destas três regiões empregam mil cuidados e inteligência para melhorar as raças pela selecção; as probabilidades de bom êxito são, neste caso, todas em favor dos grandes proprietários da montanha ou da planície e devem chegar a melhorar os seus animais muito mais prontamente que os pequenos proprietários da região intermédia mais restrita. Por conseguinte, as melhores raças da montanha e da planície não tardarão a suplantar a raça intermediária menos perfeita, e as duas raças, que eram na origem numèricamente mais fortes, encontrar-se-ão em contacto imediato, tendo a variedade desaparecido diante delas.

Para resumir, creio que as espécies chegam a ser assaz bem definidas e a não apresentar, em momento algum, um caso inextricável de formas intermediárias.

  1. Porque as novas variedades se formam muito lentamente. A variação, com efeito, segue uma marcha muito lenta e a selecção natural nada pode, até que se apresentem diferenças ou variações individuais favoráveis, e até que se encontre, na economia natural da região, um lugar que melhor possam preencher alguns dos seus habitantes modificados. Ora, estes novos lugares produzem-se apenas em virtude de mudanças climatéricas muito lentas, ou depois da emigração acidental de novos habitantes, ou talvez, e numa escala maior, porque, modificando-se lentamente alguns dos antigos habitantes, as antigas e as novas formas assim produzidas actuam e reagem umas sobre as outras. Resulta disto que, em todas as regiões e em todas as épocas, devemos encontrar apenas poucas espécies apresentando ligeiras modificações, permanentes até um certo ponto; ora, é este certamente o caso.
  2. Porque as superfícies hoje contínuas, devem ter uma época comparativamente recente, existindo como partes isoladas sobre as quais muitas formas, mais particularmente entre as classes errantes e aquelas que se copulam para cada ninhada, puderam tornar-se assaz distintas para ser consideradas como espécies representativas. Neste caso, as variedades intermediárias que ligam as espécies representativas à origem comum deviam algumas vezes existir em cada uma destas estações ladas; mas estas cadeias foram exterminadas pela selecção natural, de tal maneira que se não encontram mais no estado vivo.
  3. Logo que duas variedades ou mais se formaram em diferentes partes de uma superfície estritamente contínua, é provável que as variedades intermediárias se formassem ao mesmo tempo nas zonas intermediárias; mas a duração destas espécies deve ser de ordinário muito curta. Estas variedades intermediárias, com efeito, pelas razões que já demos (razões tiradas principalmente do que nós sabemos sobre a distribuição actual de espécies muito próximas, ou espécies representativas, assim como a das variedades reconhecidas), existem nas zonas intermediárias em menor número do que as variedades que elas ligam entre si. Esta única causa bastaria para expor as variedades intermediárias a um extermínio acidental; mas é, além disso, quase certo que devem desaparecer ante as formas que ligam à medida que a acção da selecção natural se faz sentir mais; formas extremas, com efeito, compreendendo um maior número de indivíduos, apresentam em média mais variações e são, por consequência, mais sensíveis à acção da selecção natural, e mais dispostas a um melhoramento ulterior.

Enfim, considerando agora não um tempo dado, mas o tempo tomado no seu todo, deviam certamente existir, se a minha teoria é fundada, inumeráveis variedades intermediárias ligando intimamente umas às outras as espécies de um mesmo grupo; mas a marcha única da selecção natural, como temos feito tantas vezes lembrar, tende constantemente a eliminar as formas parentes e os fuzis intermediários. Poderia encontrar-se a prova da sua existência passada apenas nos restos fósseis que, como tentaremos demonstrá-lo no capítulo subsequente, apenas se conservam de uma maneira extremamente imperfeita e intermitente.

DA ORIGEM E DAS TRANSIÇÕES DOS SERES ORGANIZADOS TENDO UMA CONFORMAÇÃO E HÁBITOS PARTICULARES

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Os adversários das ideias que proponho têm algumas vezes perguntado como sucede, por exemplo, que um animal carnívoro terrestre possa transformar-se num animal tendo hábitos aquáticos; visto que como poderia ter subsistido este animal durante o estado de transição? Seria fácil demonstrar que existem hoje animais carnívoros que apresentam todos os graus intermediários entre usos verdadeiramente terrestres e usos verdadeiramente aquáticos; ora, estando cada um deles submetido à luta pela existência, precisa necessàriamente de estar bem adaptado ao lugar que ocupa na natureza. Assim, a Mustela vison da América do Norte tem os pés palmados e parece-se com a lontra pela pele, pelas patas curtas e pela forma da cauda. Durante o Estio, este animal nutre-se de peixes e mergulha para aí se sustentar; mas, durante o longo Inverno das regiões setentrionais, abandona as águas congeladas e, como as outras doninhas, nutre-se de ratos e animais terrestres. Seria muito mais difícil de responder se houvesse escolhido um outro caso e se tivessem perguntado, por exemplo, como explicar que um quadrúpede insectívoro se possa transformar num morcego voante. Creio, contudo, que semelhantes objecções não têm grande valor.

Nesta ocasião, como em muitas outras, conheço toda a importância que haveria em expor todos os exemplos admiráveis que colhi sobre os hábitos e conformações de transição entre estas espécies vizinhas, assim como sobre a diversificação de hábitos, constantes ou acidentais, que se observam numa mesma espécie. Não precisaria de nada menos que de uma longa lista de factos semelhantes para minorar a dificuldade que apresenta a solução de casos análogos aos do morcego.

Tomemos a família dos esquilos; observamos nela uma gradação insensível, desde os animais cuja cauda é apenas ligeiramente achatada, e outros, assim como o faz observar sir J. Richardson, cuja parte posterior do corpo é apenas ligeiramente dilatada, com a pele dos flancos um pouco desenvolvida, até aos que se chamam os Esquilos volantes. Estes últimos têm os membros e mesmo a raiz da cauda unidos por uma larga membrana que lhes serve de pára-quedas e lhes permite transpor, cortando o ar, grandes distâncias de uma árvore a outra. Não podemos duvidar que cada uma destas conformações não seja útil a cada espécie de esquilo no seu habitat, ora permitindo-lhe escapar às aves ou aos animais carniceiros e procurar mais ràpidamente a nutrição, ora sobretudo diminuindo o perigo das quedas. Mas não resulta daqui que a conformação de cada esquilo seja absolutamente a melhor que se pode conceber em todas as condições naturais. Suponhamos, por exemplo, que o clima e a vegetação vêm a mudar, que tenha havido emigração de outros roedores ou de outros animais ferozes, ou que antigas espécies destas últimas se modificaram, a analogia conduz-nos a crer que os esquilos, ou alguns pelo menos, diminuiriam em número ou desapareceriam, a não ser que se não modificassem e se não aperfeiçoassem para evitar esta nova dificuldade da sua existência.

Não vejo pois dificuldade alguma, sobretudo nas condições de existência em via de alteração, à conservação contínua de indivíduos tendo a membrana dos flancos sempre mais desenvolvida, sendo útil toda a modificação, multiplicando-se cada uma até que, graças à acção acumuladora da selecção natural, um perfeito esquilo volante seja produzido.

Consideremos de momento o Galeopiteco ou lémur volante, que classificavam outrora entre os morcegos, mas que se coloca hoje entre os insectívoros. Este animal tem uma membrana lateral muito larga, que parte do ângulo do maxilar e se estende até à cauda, envolvendo os membros e os dedos alongados; esta membrana é provida de um músculo extensor. Posto que qualquer indivíduo adaptado a deslizar no ar não ligue actualmente o galcopiteco aos outros insectívoros, pode, contudo, supor-se que estes fuzis existiram outrora e que cada um deles se desenvolveu da mesma forma que os esquilos volantes menos perfeitos, apresentando cada grau de conformação uma certa utilidade para o seu possuidor. Não vejo tão-pouco dificuldade insuperável para acreditar, além disso, que os dedos e o antebraço do galeopiteco, ligados pela membrana, possam ser consideràvelmente alongados pela selecção natural, modificações que, no ponto de vista dos órgãos do voo, converteriam este animal num morcego. Vemos talvez, entre certos morcegos, cuja membrana da asa se estende do vértice da espádua à cauda, cobrindo as patas posteriores, os vestígios de um aparelho primitivamente adaptado a deslizar no ar, mais do que ao voo pròpriamente dito.

Se uma dezena de géneros tivesse desaparecido, quem ousaria suspeitar que existiram aves cujas asas lhes serviam apenas de pás para bater a água, como o ganso de asas curtas (Micropterus d'Eyton); de barbatanas na água e de patas anteriores na terra como no pinguim; de velas no avestruz, e de algum uso funcional no aptérix? Contudo, a conformação de cada uma destas aves é-lhes excelente nas condições de existência em que se encontra colocada, porque cada uma deve lutar para viver, mas não é necessàriamente a melhor que se possa conceber em todas as condições possíveis. Não precisaria concluir das observações que precedem que algum dos graus de conformação de asas que aqui são indicadas, e que todas talvez resultem da falta do uso, deve indicar a marcha natural segundo a qual as aves terminaram por adquirir a perfeição do voo; mas estas observações servem pelo menos para demonstrar a diversidade possível nos meios de transição.

Se se tiver em consideração que certos membros das classes aquáticas, como os crustáceos e os moluscos, são adaptados à vida terrestre; que existem aves e mamíferos volantes, insectos volantes de todos os tipos imagináveis; que houve antigamente répteis volantes, não repugna conceber que os peixes volantes, que podem actualmente lançar-se no ar e percorrer distâncias consideráveis elevando-se e sustentando-se por meio das suas barbatanas trementes, tivessem podido modificar-se de maneira a tornar-se animais perfeitamente alados. Se assim fosse, quem imaginaria que, num estado de transição anterior, estes animais habitavam o Oceano e se serviam de seus órgãos de voo nascentes, tanto como o podemos saber, com o único fim de escapar à voracidade dos outros peixes?

Quando vemos uma conformação absolutamente perfeita e apropriada a um hábito particular, tal como a adaptação das asas da ave para o voo, é preciso que nos lembremos que os animais apresentando as primeiras conformações graduais e transitórias deviam raramente sobreviver até à nossa época, porque teriam de desaparecer diante dos seus sucessores que a selecção natural tornou gradualmente mais perfeitos. Podemos concluir, além disso, que os estados transitórios entre as conformações apropriadas a hábitos de existência muito diferentes deviam raramente, num antigo período, desenvolver-se em grande número e em muitas formas subordinadas. Assim, para tornar ao nosso exemplo imaginário do peixe volante, não parece provável que os peixes capazes de se elevar até ao verdadeiro voo revestissem muitas formas diferentes, aptas a apanhar, de diversas maneiras, presas de diversa natureza sobre a terra e sobre a água, antes que os órgãos do voo tivessem atingido um grau de perfeição assaz elevado para lhes assegurar, na luta pela existência, uma vantagem decisiva sobre outros animais. A probabilidade de descobrir, no estado fóssil, as espécies representantes das diferentes transições de conformação, é pois menor, porque existiram em menor número que as espécies tendo uma conformação completamente desenvolvida.

Citarei de momento dois ou três exemplos de diversificações e de mudanças de hábitos entre indivíduos de uma mesma espécie. Num e noutro caso, a selecção natural poderia fàcilmente adaptar a conformação do animal aos seus hábitos modificados ou exclusivamente a um deles sòmente. Contudo, é difícil determinar (isto, porém, importa-nos pouco), se os hábitos se transformam ordinàriamente primeiro, modificando-se a conformação em seguida, ou se ligeiras modificações de conformação trazem uma mudança de hábitos; é provável que estas duas modificações se apresentem algumas vezes simultâneamente. Como exemplo de alterações de hábitos, basta assinalar numerosos insectos britânicos que se nutrem hoje de plantas exóticas, ou exclusivamente de substâncias artificiais. Poder-se-iam citar inumeráveis casos de modificações de hábitos; algumas vezes observei, na América meridional, um papa-moscas (Saurophagus sulphuratus) pousar em um ponto, depois arremessar-se para um outro, como o faria um gavião; depois, noutros momentos, ficar imóvel à beira da água para aí se precipitar à procura de peixe, como o faria um gavião-pescador. Pode ver-se no nosso país o grande melharuco (Parus major) trepar aos ramos como um pica-pau; algumas vezes, como a pega-parda, mata as avezinhas dando-lhes golpes na cabeça, como tive ocasião de observar, e mais frequentemente ainda ouvi martelar as sementes do teixo sobre um ramo e quebrá-las como o faria a citela. Hearne viu, na América do Norte, o urso negro nadar durante horas, a grande goela aberta, e apanhar assim os insectos na água, da mesma forma como o faria uma baleia.

Como vemos algumas vezes indivíduos ter hábitos diferentes dos próprios da sua espécie e às outras espécies do mesmo género, pareceria que estes indivíduos deviam tornar acidentalmente ao ponto de partida de novas espécies, tendo hábitos anormais, e cuja conformação se afastaria mais ou menos da origem tipo. A natureza oferece casos semelhantes. Pode citar-se um caso de adaptação mais admirável do que aquele da conformação do picanço, para subir aos troncos das árvores e para apanhar os insectos nas fendas da cortiça? Há, contudo, na América setentrional picanços que se nutrem quase exclusivamente de frutos, e outros que, devido às asas alongadas, podem caçar os insectos no voo. Nas planícies do Prata, onde não rebenta uma única árvore, encontra-se uma espécie de picanço (Colaptes campestris) tendo dois dedos adiante e dois atrás, a língua longa e afilada, as penas caudais pontiagudas, bastante rígidas para sustentar a ave na posição vertical, mas não inteiramente rígidas como nos verdadeiros picanços, e um forte bico direito, que todavia não é tão direito nem tão forte como o dos verdadeiros picanços, mas que é contudo bastante sólido para furar a madeira. O Colaptes é, pois, quase um picanço em todas as partes essenciais da sua conformação. Mesmo os caracteres insignificantes, tais como a coloração, o som rouco da voz, o voo ondulado, mostram claramente a sua próxima semelhança com o picanço comum; posso, porém, afirmar, depois das minhas próprias observações, que confirmam aliás as de Azara, observador tão desvelado e tão exacto, que, em certos distritos consideráveis, o Colaptes não sobe às árvores e faz o ninho nos buracos que cava na terra. Contudo, como o verificou Hudson, este mesmo picanço, em outros distritos, frequenta as árvores e cava buracos no tronco para aí fazer o ninho. Como outro exemplo de hábitos variados deste género, posso juntar que de Saussurre descreveu um Colaptes do México que cava buracos na madeira dura para aí depositar uma provisão de glandes.

O alcatraz é uma das aves marinhas mais aéreas que se conhecem; todavia, nas baías tranquilas da Terra do Fogo, poder-se-ia certamente tomar o Puffinuria Brrardi por um colimbo ou um pinguim, para observar os seus hábitos gerais, a sua facilidade extraordinária para mergulhar, a sua maneira de nadar e de voar, quando se pode decidir a fazê-lo; contudo, esta ave é essencialmente um alcatraz, mas algumas partes da sua organização foram profundamente modificadas para as adaptar aos novos hábitos, enquanto que a conformação do picanço do Prata é apenas muito pouco modificada. As observações mais minuciosas, feitas sobre o cadáver de uma calhandra-marinha (melro da água), jamais deixariam suspeitar os seus hábitos aquáticos; contudo, esta ave, que pertence à família dos melros, encontra apenas a sua subsistência mergulhando, e serve-se das asas debaixo da água e prende com as patas as pedras do fundo. Todos os membros da grande ordem dos himenópteros são terrestres, à excepção do género proctotrupes, de que sir John Lubbock descobriu os hábitos aquáticos. Este insecto entra muitas vezes na água ajudando-se não com as patas, mas com as asas e pode aí ficar quatro horas sem tornar à superfície; não parece, todavia, apresentar modificação alguma de conformação em relação com os seus hábitos anormais.

Aqueles que crêem que cada ser foi criado tal como é hoje devem sentir por vezes uma certa admiração quando encontram um animal que tem hábitos e conformação que não concordam. Os pés palmados do ganso e do pato são claramente conformados para a natação. Há, contudo, nas regiões elevadas gansos com pés palmados, que jamais se aproximam da água; só Audubon viu a fragata cujos quatro dedos são palmados, colocar-se sobre a superfície do Oceano. Por outra parte, os colimbos e as gaivotas, aves eminentemente aquáticas, têm como palmouras apenas uma ligeira membrana prendendo os dedos. Não parece evidente que os longos dedos desprovidos de membranas das permaltas são feitos para andar nos pântanos e sobre os vegetais flutuantes? A gaivota-marreco e o codornizão pertencem a esta ordem; contudo, a primeira destas aves é quase tão aquática como a gaivota, e a segunda também quase terrestre como a codorniz ou a perdiz. Nestes casos, e poderiam citar-se muitos outros, os hábitos sofrem alteração sem que a conformação seja modificada de maneira correspondente. Poder-se-ia dizer que o pé palmado do ganso das altas regiões se tornou quase rudimentar quanto às suas funções, mas não quanto à conformação. Na fragata, uma forte chanfradura da membrana interdigital indica um princípio de alteração na conformação. Quem acredita nos actos numerosos e separados da criação, pode dizer que, nos casos desta natureza, aprouve ao Criador substituir um indivíduo pertencendo a um tipo por um outro pertencendo a um outro tipo, o que me parece ser o enunciado do mesmo facto numa forma aperfeiçoada. Quem, pelo contrário, crê na luta pela existência ou no princípio da selecção natural, reconhece que cada ser organizado tenta constantemente multiplicar-se em número; sabe-se, além disso, que se um ser varia por pouco que seja nos hábitos e na conformação, e obtém assim uma vantagem sobre qualquer outro habitante da mesma localidade, se apodera do lugar deste último, por mais diferente que seja do que ele ocupava primeiramente. Também se não experimenta surpresa alguma vendo gansos e fragatas com os pés palmados, posto que estas aves habitem a terra e se coloquem raramente sobre a água; codornizões de dedos alongados vivendo nos prados em lugar de viver nas lagoas; picanços habitando lugares desprovidos de árvores; e, enfim, melros ou himenópteros mergulhadores e alcatrazes tendo os costumes dos pinguins.

ÓRGÃOS MUITO PERFEITOS E MUITO COMPLEXOS

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Parece absurdo ou impossível, eu o reconheço, supor que a selecção natural pudesse formar a visão com todas as inimitáveis disposições que permitem ajustar o foco a diversas distâncias, admitir uma quantidade variável de luz e corrigir as aberrações esféricas e cromáticas. Quando se afirmou pela primeira vez que o Sol é imóvel e que a Terra gira em torno dele, o senso comum da humanidade declarou falsa a doutrina; mas sabe-se que o velho ditado: Vox populi, vox Dei, não se admite em matéria científica. A razão diz-nos que se, como é certamente o caso, se pode demonstrar que existem numerosas gradações entre um olho simples e imperfeito e um olho complexo e perfeito, sendo cada uma destas gradações vantajosa ao ser que a possui; que se, além disso, o olho varia algumas vezes e que estas variações são transmissíveis por hereditariedade, o que é igualmente o caso; que se, enfim, estas variações são úteis a um animal nas condições variáveis da sua existência, a dificuldade de admitir que um olho complexo e perfeito possa ser produzido pela selecção natural, posto que insuperável para a nossa imaginação, em nada contradiz a nossa teoria. Não temos mais de nos ocupar em saber como um nervo pôde tornar-se sensível à acção da luz, como não temos de nos ocupar a procurar a origem da vida dele; todavia, como existem certos organismos inferiores sensíveis à luz, se bem que se não possa descobrir entre eles vestígio algum de nervação, não parece impossível que certos elementos do sarcode, de que são formados em grande parte, possam agregar-se e desenvolver-se em nervos dotados desta sensibilidade especial.

É exclusivamente na linha directa dos ascendentes que devemos procurar as gradações que têm trazido os aperfeiçoamentos de um órgão numa espécie qualquer. Mas isto é quase impossível, e somos forçados a dirigir-nos a outras espécics e a outros géneros do mesmo grupo, isto é, aos descendentes colaterais da mesma origem, a fim de ver quais são as gradações possíveis nestes casos em que, por casualidade, algumas destas gradações fossem transmitidas com poucas modificações. Além disso, o estado de um mesmo órgão em classes diferentes pode incidentalmente lançar alguma luz sobre os graus que o levaram à perfeição.

O órgão mais simples a que se possa dar o nome de olho, consiste em um nervo óptico, cercado de células pigmentares, e coberto de uma membrana transparente, mas sem lente nem qualquer outro corpo refringente. Podemos, demais, segundo M. Jourdain, descer mais baixo ainda e encontrarmos então grupos de células pigmentares parecendo representar o órgão da vista, mas estas células são desprovidas de nervos e repousam simplesmente sobre tecidos sarcódicos. Órgãos tão singelos, incapazes de qualquer visão distinta, podem servir apenas para distinguir a luz da obscuridade. Em algumas artérias, determinadas pequenas depressões na camada de pigmento que cerca o nervo são, segundo o autor que acabámos de citar, cheias de matérias gelatinosas transparentes, compostas de uma superfície convexa semelhando a córnea dos animais superiores. M. Jourdain supõe que esta superfície, sem poder determinar a formação de uma imagem, serve para concentrar os raios luminosos. e tornar a percepção mais fácil. Esta simples concentração da luz constitui o primeiro passo, e até mais importante, para a constituição de um olho verdadeiro, susceptível de formar imagens; basta então, com efeito, ajustar a extremidade nua do nervo óptico que, em alguns animais inferiores, é profundamente escondido no corpo e que, em alguns outros, se encontra mais perto da superfície, a uma distância determinada do aparelho de concentração, para que a imagem se forme sobre esta extremidade.

Na grande classe dos articulados, encontramos, como ponto de partida, um nervo óptico simplesmente coberto de um pigmento; este último forma algumas vezes uma espécie de pupila, mas não há ai nem lente nem vestígio de aparelho óptico. Sabe-se actualmente que as numerosas facetas que, pela sua reunião, constituem a córnea dos grandes olhos compostos dos insectos, são verdadeiras lentes, e que os cones interiores encerram filamentos nervosos muito singularmente modificados. Estes órgãos, contudo, são tão diversificados nos articulados, que Müller havia estabelecido três classes principais de olhos compostos, compreendendo sete subdivisões e uma quarta classe de olhos simples agregados.

Sc reflectirmos em todos estes factos, muito pouco destrinçados aqui, relativos à imensa variedade de conformação que se nota nos olhos dos animais inferiores; se lembrarmos quanto as formas actualmente vivas são pouco numerosas comparativamente às que são extintas, já não é difícil admitir que a selecção natural pudesse transformar um aparelho simples, consistindo num nervo óptico recoberto de um pigmento e composto de uma membrana transparente, em um instrumento óptico tão perfeito como o possuído por qualquer indivíduo que seja da classe dos articulados.

Quem admitir este ponto não pode hesitar em ir mais longe, e se encontra, depois de ter lido este volume, que a teoria da descendência, com as modificações que traz a selecção natural, explica um grande número de factos de outra maneira inexplicáveis, deve admitir que a selecção natural pôde produzir uma conformação tão perfeita como o olho de uma águia, ainda que, neste caso, não conheçamos os diversos estados de transição. Tem-se objectado que, para que o olho possa modificar-se por completo, ficando um instrumento perfeito, é preciso que seja a sede de muitas alterações simultâneas, facto que se considera como irrealizável pela selecção natural. Mas, como tentei demonstrá-lo na minha obra sobre as variações dos animais domésticos, não é necessário supor que as modificações são simultâneas, contanto que sejam muito ligeiras e muito graduais. Diferentes formas de modificações podem também tender para um mesmo fim geral; assim, como o fez notar M. Wallace, «se uma lente tem um foco muito curto ou muito longo, esta diferença pode corrigir-se, quer por uma modificação da curva, quer por uma modificação da densidade; se a curva é irregular e os raios não convergem para um mesmo ponto, todo o melhoramento na regularidade da curva constitui um progresso. Assim, nem a contracção da íris, nem os movimentos musculares do olho são essenciais à visão; são ùnicamente progressos que podem juntar-se e aperfeiçoar-se em todas as épocas da construção do aparelho». Na mais alta divisão do reino animal, a dos vertebrados, podemos partir de um olho muito simples, que consiste, no branquióstomo, apenas num pequeno saco transparente provido de um nervo e cheio de pigmento, mas desprovido de qualquer outro aparelho. Nos peixes e nos répteis, como o faz notar Owen, «a série das gradações das estruturas dióptricas é considerável». Um facto significativo, é que mesmo no homem, segundo Virchow, que tem uma tão grande autoridade, a magnífica lente cristalina se forma no embrião por uma acumulação de células epiteliais alojadas numa ruga da pele que afecta a forma de um saco; o corpo vítreo é formado por um tecido embrionário subcutâneo. Contudo, para se chegar a uma justa concepção relativamente à formação do olho com todos os seus maravilhosos caracteres, que não são todavia ainda absolutamente perfeitos, é preciso que a razão vença a imaginação; ora, eu próprio muito tenho sentido quanto isto é difícil, para ficar admirado de outros que hesitam em levar tão longe o princípio da selecção natural.

A comparação entre o olho e o telescópio apresenta-se naturalmente ao espírito. Sabemos que este último instrumento foi aperfeiçoado pelos esforços contínuos e prolongados das mais altas inteligências humanas, e concluímos daí naturalmente que o olho se formou por um processo análogo. Será esta conclusão presunçosa? Temos o direito de supor que o Criador põe em jogo forças inteligentes análogas às do homem? Se quisermos comparar o olho a um instrumento óptico, devemos imaginar uma camada espessa de um tecido transparente, embebido de líquido, em contacto com um nervo sensível à luz; devemos supor também que as diferentes partes desta camada mudam constantemente e lentamente de densidade, de forma a separar-se em zonas, tendo uma espessura e uma densidade diferentes, desigualmente distantes entre si e mudando gradualmente de forma à superfície. Devemos supor, além disso, que uma força representada pela selecção natural, ou a persistência do mais apto, está constantemente espiando todas as ligeiras modificações que afectem camadas transparentes, para conservar todas as que, em diversas circunstâncias, em todos os sentidos e em todos os graus, tendem a permitir a perfeição de uma imagem mais distinta. Devemos supor que cada novo estado do instrumento se multiplica por milhões, para se conservar até que se produza um melhor que substitua e anule os precedentes. Nos corpos vivos, a variação causa as ligeiras modificações, a reprodução multiplica-as quase ao infinito, e a selecção natural apodera-se de cada melhoramento com uma segurança infalível. Admitamos, enfim, que esta marcha se continua durante milhões de anos e se aplica durante cada um a milhões de indivíduos; poderemos nós admitir então que se possa ter formado assim um instrumento óptico vivo, tão superior a um aparelho de vidro como as obras do Criador são superiores às do homem?

MODOS DE TRANSIÇÕES

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Se se chegasse a demonstrar que existe um órgão complexo que se não possa formar por uma série de numerosas modificações graduais e ligeiras, a minha teoria não poderia certamente defender-se. Mas não posso encontrar caso algum semelhante. Sem dúvida, existem muitos órgãos dos quais não conhecemos as transições sucessivas, sobretudo se examinarmos as espécies muito isoladas que, segundo a minha teoria, foram expostas a uma grande extinção. Ou então, ainda, se tomarmos um órgão comum a todos os membros de uma classe, porque, neste último caso, este órgão deve ter surgido numa época remota desde a qual os numerosos membros desta classe se desenvolveram; ora, para descobrir as primeiras transições que sofreu este órgão, ser-nos-ia preciso examinar as formas muito antigas já de há muito extintas.

Não devemos concluir a impossibilidade da produção de um órgão por uma série gradual de transições de uma natureza qualquer a não ser com extrema circunspecção. Poder-se-iam citar, nos animais inferiores, numerosos exemplos de um mesmo órgão exercendo ao mesmo tempo funções absolutamente distintas. Assim, na larva da libelinha e no caboz (Cobites) o canal digestivo respira, digere e excreta. A hidra pode ser voltada de dentro para fora, e então a sua superfície exterior digere e o estômago respira. Em casos semelhantes, a selecção natural poderia, se daí resultasse qualquer vantagem, especializar para uma única função todo ou parte de um órgão que até aí tivesse desempenhado duas funções, e modificar também considerável- mente a sua natureza por graus insensíveis. Conhecem-se muitas plantas que produzem regularmente, ao mesmo tempo, flores diferentemente constituídas; ora, se estas plantas não produzissem mais que flores de uma única forma, uma mudança considerável se efectuaria no carácter da espécie com uma grande rapidez comparativa. Contudo, é provável que as duas espécies de flores produzidas pela mesma planta sejam, no princípio, diferenciadas uma da outra por transições insensíveis que se podem ainda observar em alguns casos.

Dois órgãos distintos, ou o mesmo órgão sob duas formas diferentes, podem desempenhar simultâneamente a mesma função no mesmo indivíduo, o que constitui um modo muito importante de transição. Tomemos um exemplo: há peixes que respiram por guelras o ar dissolvido na água, e que podem, ao mesmo tempo, absorver o ar livre pela bexiga natatória, estando este último órgão cindido em divisões fortemente vasculares e munido de um canal pneumático para a introdução do ar. Tomemos um outro exemplo no reino vegetal; as plantas sobem de três maneiras diferentes, contornando-se em espirais, segurando-se a um suporte por gavinhas, ou ainda pela emissão de radículas aéreas. Estes três modos observam-se ordinàriamente em grupos distintos, mas há algumas espécies em que se encontram dois destes modos, ou mesmo os três combinados no mesmo indivíduo. Em casos semelhantes um dos dois órgãos poderia fàcilmente modificar-se e aperfeiçoar-se de forma a desempenhar a função por si só; então, o outro órgão, depois de ter auxiliado o primeiro no decurso do seu aperfeiçoamento, poderia, por seu turno, modificar-se para desempenhar uma função distinta, ou atrofiar-se completamente.

O exemplo da bexiga natatória nos peixes é excelente, visto que nos demonstra claramente o facto importante de um órgão primitivamente construído num ponto distinto, isto é, para fazer flutuar o animal, poder converter-se em um órgão tendo uma função muito diferente, isto é, a respiração. A bexiga natatória funciona também, em certos peixes, como um acessório do órgão do ouvido. Todos os fisiólogos admitem que pela conformação e pela posição, a bexiga natatória é homóloga ou idealmente semelhante aos pulmões dos vertebrados superiores; está-se pois perfeitamente seguro em admitir que a bexiga natatória foi realmente convertida em pulmão, isto é, em um órgão exclusivamente destinado à respiração.

Pode concluir-se do que precede que todos os vertebrados providos de pulmões descendem por geração ordinária de algum antigo protótipo desconhecido, que possuía um aparelho flutuador ou, por outra, uma bexiga natatória. Podemos assim, e é uma conclusão que tiro da interessante descrição que Owen fez destas partes, compreender o facto estranho de que tudo o que bebemos e que comemos deve passar adiante do orifício da traqueia, com risco de cair nos pulmões, apesar do notável aparelho que permite a oclusão da glote. Nos vertebrados superiores, as guelras desaparecem completamente; contudo, no embrião as fendas laterais do pescoço e a espécie de botoeira feita pelas artérias indicam ainda a posição primitiva. Mas pode conceber-se que a selecção natural tenha podido adaptar as guelras, actualmente desaparecidas por completo, em algumas funções. muito diferentes; Landois, por exemplo, demonstrou que as asas dos insectos tiveram por origem a traqueia; é pois muito provável que, nesta grande classe, os órgãos que serviam outrora à respiração se encontrem transformados em órgãos servindo para o voo.

É tão importante ter bem presente no espírito a probabilidade da transformação de uma função em outra, quando se consideram as transições dos órgãos, que citarei um outro exemplo. Nota-se nos cirrípedes pedunculados duas pregas membranosas, que chamei freios ovígeros e que, com o auxilio de uma secreção viscosa, servem para reter os ovos no saco até que sejam nascidos. Os cirrípedes não têm guelras, toda a superfície do corpo, do saco e dos freios serve para a respiração. Os cirrípedes sésseis ou balanídeos, por outra parte, não possuem freios ovígeros, os ovos ficam livres inteiramente na concha bem fechada; nas, numa posição correspondendo à que ocupam os freios, têm membranas muito extensas, com muitas pregas, comunicando livremente com as lacunas circulatórias do saco e do corpo, e que todos os naturalistas têm considerado como guelras. Ora, creio que não pode contestar-se que os freios ovígeros numa família são estritamente homólogos com as guelras de uma outra família, porque se notam todas as gradações entre os dois aparelhos. Não deve pois duvidar-se que as duas pequenas rugas membranosas que primitivamente serviam de freios ovígeros, auxiliando a respiração, foram gradualmente transformadas em guelras pela selecção natural, por um simples aumento de tamanho e pela atrofia das glândulas glutiníferas. Se todos os cirrípedes pedunculados que têm experimentado uma extinção muito mais considerável que os cirrípedes sésseis tivessem desaparecido completamente, quem poderia jamais imaginar que as guelras desta última família eram primitivamente órgãos destinados a impedir que os ovos não fossem arrastados para fora do saco?

O professor Cope e alguns outros naturalistas dos Estados Unidos insistiram, recentemente, sobre um outro modo possível de transição, consistindo numa aceleração ou atraso trazido à época da reprodução. Sabe-se actualmente que alguns animais estão aptos a reproduzir-se numa idade muito precoce, antes mesmo de terem adquirido os seus caracteres completos; ora, se esta faculdade chegasse a tomar numa espécie um desenvolvimento considerável, é provável que o estado adulto destes animais se perderia cedo ou tarde; neste caso, o carácter da espécie tenderia a modificar-se e a deteriorar-se consideràvelmente, sobretudo se a larva diferisse muito da forma adulta. Sabe-se ainda que há um número bastante grande de animais que, depois de terem atingido a idade adulta, continuam a mudar de carácter durante quase toda a vida. Nos mamíferos, por exemplo, a idade modifica algumas vezes muito a forma do crânio, facto de que o Dr. Murie observou exemplos admiráveis nas focas. Todos sabem que a complicação das ramificações dos cornos do veado aumenta muito com a idade, e que as penas de algumas aves se desenvolvem muito quando envelhecem. O professor Cope afirma que os dentes de certos lagartos sofrem grandes modificações de forma quando avançam em idade; Fritz Müller observou que os crustáceos, depois de atingirem a idade adulta, podem revestir caracteres novos, afectando não somente partes insignificantes, mas mesmo partes muito importantes. Em todos estes casos — e são numerosos — se a idade da reprodução fosse retardada, o carácter da espécie modificar-se-ia pelo menos no estado adulto; é mesmo provável que as fases anteriores e precoces do desenvolvimento fossem, em alguns casos, precipitadas e finalmente perdidas. Não posso emitir a opinião de que algumas espécies tenham sido várias vezes, ou não tenham sido mesmo modificadas por este modo de transição comparativamente sucedâneo; mas, se o caso é apresentado, é provável que as diferenças entre os novos e os adultos e entre os adultos e os velhos fossem primitivamente adquiridas por graus insensíveis.

DIFICULDADES ESPECIAIS DA TEORIA DA SELECÇÃO NATURAL

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Apesar de que só com extrema reserva devíamos admitir a impossibilidade da formação de um órgão por uma série de transições insensíveis, apresentam-se, contudo, alguns casos sèriamente difíceis.

Um dos mais sérios é o dos insectos neutros, cuja conformação é muitas vezes diferente por completo da dos machos ou das fêmeas fecundas; tratarei este assunto no próximo capítulo. Os órgãos eléctricos dos peixes oferecem ainda grandes dificuldades, porque é impossível conceber por que fases sucessivas estes maravilhosos aparelhos puderam desenvolver-se. Além de que, não há lugar para surpresas, pois não sabemos mesmo para que servem. No gimnonoto e no torpedo constituem esses órgãos, sem dúvida, um poderoso agente de defesa e talvez um meio de agarrar a presa; além disso, na raia, que possui na cauda um órgão análogo, manifesta-se pouca electricidade, mesmo quando o animal está muito irritado, assim como o observou Matteucci; manifesta-se mesmo tão pouco, que a custo se pode supor neste órgão as funções que acabamos de indicar. Demais, como demonstrou o Dr. R. Mac Donnell, a raia, além do órgão pré-citado, possui um outro junto da cabeça; não se sabe se este último órgão é eléctrico, mas parece ser absolutamente análogo à bateria eléctrica do torpedo. Admite-se geralmente que existe uma estreita analogia entre estes órgãos e o músculo ordinário, tanto na estrutura íntima e na distribuição dos nervos, como na acção que exercem sobre eles diversos reagentes. É preciso, sobretudo, observar que uma descarga eléctrica acompanha as contracções musculares, e, como afirma o Dr. Radcliffe, «no estado de repouso o aparelho eléctrico do torpedo parece ser a sede de uma descarga muito semelhante à que se efectua nos músculos e nos nervos no estado de inacção, e o choque produzido pela descarga súbita do aparelho do torpedo não seria de forma alguma uma força de natureza particular, mas simplesmente uma outra forma da descarga que acompanha a acção dos músculos e do nervo motor». Não podemos actualmente ir mais longe com a explicação; mas, como nada sabemos relativamente aos hábitos e conformação dos antepassados dos peixes eléctricos existentes, seria extremamente temerário afirmar a impossibilidade de estes órgãos poderem desenvolver-se gradualmente em virtude de transições vantajosas.

Uma dificuldade muito mais séria ainda parece embaraçar-nos quando se trata destes órgãos; encontram-se, com efeito, numa dúzia de espécies de peixes, dos quais alguns são muito alongados pelas suas afinidades.

Quando um mesmo órgão se encontra em muitos indivíduos da mesma classe, sobretudo nos indivíduos tendo hábitos de vida muito diferentes, podemos ordinàriamente atribuir este órgão a um antepassado comum que o transmitisse por hereditariedade aos descendentes; podemos, além disso, atribuir a sua falta, em alguns indivíduos da mesma classe, a uma desaparição provindo do não uso ou da acção da selecção natural. De tal maneira que, se os órgãos provinham por hereditariedade de algum remoto antepassado, poderíamos atender a que todos os peixes eléctricos seriam muito particularmente aliados uns aos outros; mas tal não é certamente o caso. Demais, a geologia não nos permite pensar que a maior parte dos peixes possuíam outrora órgãos eléctricos que os descendentes modificados hoje perderam. Todavia, se estudarmos este assunto de mais perto, compreendemos que os órgãos eléctricos ocupam diferentes partes do corpo de alguns peixes que os possuem; que a conformação destes órgãos difere com relação ao arranjo das placas, e, segundo Pacini, com relação aos meios empregados para excitar a electricidade, e, enfim, que estes órgãos estão providos de nervos vindos de diferentes partes do corpo, e talvez esta a diferença mais importante de todas. Não se podem, pois, considerar estes órgãos eléctricos como homólogos, quando muito podem considerar-se como análogos com relação à função. Não há, pois, razão alguma para supor que provenham por hereditariedade de um antepassado comum; se se admitisse, com efeito, esta comunhão de origem, estes órgãos deveriam assemelhar-se exactamente a todos os respeitos. Assim se desvanece a dificuldade inerente ao facto de um órgão, aparentemente o mesmo, se encontrar em algumas espécies afastadas umas das outras; fica-nos, contudo, para explicar esta outra dificuldade, menor certamente, mas considerável ainda: por que série de transições passaram estes órgãos em cada grupo separado de peixes?

Os órgãos luminosos que se encontram em alguns insectos pertencendo a famílias muito diferentes e que estão situados em diversas partes do corpo, oferecem, no nosso estado de ignorância actual, uma dificuldade absolutamente igual à dos órgãos eléctricos. Poder-se-iam citar outros casos análogos; nas plantas, por exemplo, a disposição curiosa por meio da qual uma massa de pólen sustentada por um pedúnculo com uma glândula adesiva, é evidentemente a mesma nas orquídeas e asclépias — géneros afastados tanto quanto possível das plantas. com flores; — mas, aqui ainda, as partes não são homólogas. Em todos os casos em que os seres, muito afastados entre si na escala da organização, são providos de órgãos particulares e análogos, nota-se que, posto que o aspecto geral e a função destes órgãos possam ser os mesmos, podem, contudo, discernir-se sempre entre eles algumas diferenças fundamentais. Por exemplo, os olhos dos cefalópodes e dos vertebrados parecem absolutamente semelhantes; ora, nos grupos tão afastados uns dos outros, nenhuma parte desta semelhança pode ser atribuída à transmissão por hereditariedade de um carácter possuído por um antepassado comum. M. Mivart apresentou este caso como oferecendo uma dificuldade especial, mas é-me impossível descobrir o valor do seu argumento. Um órgão destinado à visão deve compor-se de tecidos transparentes e conter uma lente. qualquer para permitir a formação de uma imagem no fundo de uma câmara escura. Além desta semelhança superficial, não há analogia alguma real entre os olhos dos chocos e os dos vertebrados: contudo, podem convencer-se, consultando a admirável memória de Hensen a respeito dos olhos dos cefalópodes. E-me impossível entrar aqui em particularidades; posso, contudo, indicar alguns pontos de diferença. O cristalino, nas sibas melhor organizadas, compõe-se de duas partes colocadas uma atrás da outra e forma como que duas lentes que, juntamente, têm uma conformação e uma disposição muito diversas das dos vertebrados. A retina é completamente dessemelhante; apresenta, com efeito, uma inversão real dos clementos constitutivos e as membranas formando os invólucros do olho contêm um grande gânglio nervoso. As relações dos músculos são tão diferentes quanto é possível e é o mesmo para outros pontos. Daqui resulta uma grande dificuldade em apreciar até que ponto convém empregar os mesmos termos na descrição dos olhos dos cefalópodes e dos vertebrados. Pode, diga-se de passagem, negar-se que, em cada um destes casos, o olho pudesse desenvolver-se pela selecção natural com ligeiras variações sucessivas; mas, se se admite para um, este sistema é evidentemente possível para outro, e pode-se, aceite este modo de formação, deduzir por antecipação as diferenças fundamentais existindo na estrutura dos órgãos visuais dos dois grupos. Da mesma forma que dois homens fazem algumas vezes a mesma invenção, independentemente um do outro, da mesma forma também parece que nos casos pré-citados, a selecção natural, actuando pelo bem de cada ser e aproveitando todas as variações favoráveis, produz órgãos análogos, pelo menos no que diz respeito à função, em seres organizados distintos que nada devem de analogia de conformação que neles se nota à herança de um antepassado comum.

Fritz Müller seguiu com muito cuidado uma argumentação quase análoga para tirar as conclusões indicadas neste volume. Várias famílias de crustáceos compreendem algumas espécies providas de um aparelho respiratório que lhes permite viver fora da água. Em duas destas famílias muito próximas, que foram mais particularmente estudadas por Müller, as espécies parecem-se, por todos os caracteres importantes, a saber: os órgãos dos sentidos, o sistema circulatório, a posição dos tufos do pêlo que forram os seus estômagos complexos, enfim, toda a estrutura das guelras que lhes permite respirar na água, até aos ganchos microscópicos que servem para as limpar. Poder-se-ia pois esperar que, em algumas espécies das duas famílias que vivem em terra, os aparelhos igualmente importantes da respiração aérea fossem semelhantes; mas porque motivo se encontra diferente este aparelho, destinado nestas espécies a um mesmo fim especial, enquanto os outros órgãos importantes são muito semelhantes ou mesmo idênticos?

Fritz Müller sustenta que esta semelhança em tantos pontos de conformação deve, segundo a teoria que defendo, explicar-se por uma transmissão hereditária que vai até um antepassado comum. Mas como a grande maioria das espécies que pertencem às duas famílias pré-citadas, da mesma maneira que todos os outros crustáceos, têm hábitos aquáticos, é extremamente improvável que o antepassado comum fosse provido de um aparelho adaptado à respiração aérea. Müller foi assim levado a examinar com cuidado este aparelho respiratório nas espécies que dele são providas; viu que este aparelho difere, em cada uma delas, em muitas relações importantes, como, por exemplo, a posição dos orifícios, o modo de abrir e fechar, e algumas particularidades acessórias. Ora, não se explicam estas diferenças, nem mesmo poderia esperar-se encontrá-las, na hipótese de certas espécies pertencendo a famílias distintas serem pouco a pouco adaptadas a viver cada vez mais fora da água e a respirar o ar livre. Estas espécies, com efeito, pertencendo a famílias diversas, deveriam diferir até certo ponto; ora, a sua variabilidade não devia ser exactamente a mesma, em virtude do princípio de que a natureza de cada variação depende de dois factores, isto é, da natureza do organismo e das condições ambientes. A selecção natural, por consequência, deveria actuar sobre elementos ou variações de natureza diferente, a fim de chegar a um mesmo resultado funcional, e as conformações assim adquiridas devem necessàriamente diferir. Na hipótese de criações independentes, este caso fica ininteligível completamente. A série de raciocínios que precedem, parece ter tido uma grande influência para determinar Fritz a adoptar as ideias que tenho desenvolvido na presente obra.

Um outro zoólogo distinto, o falecido professor Claparède, chegou ao mesmo resultado raciocinando da mesma forma. Demonstra que certos ácaros parasitas, pertencendo a subfamílias e a famílias distintas, são providos de órgãos que lhes servem para se segurar aos pêlos. Estes órgãos devem desenvolver-se de uma maneira independente e não podem ser transmitidos por um antepassado comum; nos diversos grupos, estes órgãos são formados por uma modificação das patas anteriores, das patas posteriores, das mandíbulas ou lábios, e dos apêndices da face inferior da parte posterior do corpo.


Nos diferentes exemplos que acabámos de discutir, vimos que, nos seres mais ou menos afastados uns dos outros, um mesmo fim é atingido e uma mesma função desempenhada por órgãos assaz semelhantes em aparência, mas que o não são na realidade. Demais, é regra geral na natureza, que o mesmo fim seja atingido pelos meios mais diversos, mesmo nos seres que têm entre si estreitas afinidades. Que diferença de construção não há, com efeito, entre a asa emplumada de uma ave e a asa membranosa do morcego; e, mais ainda, entre as quatro asas da borboleta, as duas asas da mosca, as duas asas e os dois élitros de um coleóptero? As conchas bivalves são construídas para abrir e fechar; mas que variedade de modelos se notam na conformação da charneira, desde a longa série de dentes que se encaixam regularmente uns nos outros na núcula, até ao simples ligamento da amêijoa? A disseminação das sementes dos vegetais é favorecida pela pequenez, pela conversão das cápsulas num ligeiro invólucro em forma de balão, pela situação ao centro de uma polpa carnuda composta das mais diversas partes, tornada nutritiva, revestida de vistosas cores de maneira a chamar a atenção das aves que as devoram, pela presença de ganchos, de arpéus de várias formas, de barbas denteladas, por meio dos quais aderem aos pêlos dos animais; pela existência de asas e de tufos tão variados pela forma como elegantes pela estrutura, que fazem o brinquedo da menor corrente de ar. A realização do mesmo fim pelos meios mais diversos é tão importante, que citarei ainda um exemplo. Alguns autores sustentam que, se os seres organizados foram talhados de tantas maneiras diferentes, é por simples amor da variedade, como os brinquedos num bazar; mas uma tal ideia da natureza é inadmissível. Nas plantas que têm os sexos separados assim como naquelas que, se bem que hermafroditas, não podem fazer cair espontâneamente o pólen sobre os estigmas, é necessário um concurso acessório para que a fecundação seja possível. Numas, o pólen em grânulos muito leves e não aderentes é levado pelo vento, e lançado assim sobre o estigma por mero acaso; é o modo mais simples que se pode conceber. Há um outro bem diferente, ainda que seja igualmente simples: consiste em que uma flor simétrica segrega algumas gotas de néctar procurado pelos insectos, que, introduzindo-se na corola para o recolher, transportam o pólen das anteras aos estigmas.

Partindo deste estado tão simples, encontramos um número infinito de combinações tendo todas um mesmo fim, realizado de uma maneira análoga, mas arrastando modificações em todas as partes da flor. Logo que o néctar está armazenado em receptáculos afectando as formas mais diversas, os estames e os pistilos são também modificados de diferentes maneiras, algumas vezes são dispostos em laços, outras vezes também são susceptíveis de movimentos determinados por irritabilidade e elasticidade. Partindo daí, poderemos passar em revista quantidades inumeráveis de conformações para chegar, enfim, a um caso extraordinário de adaptação que o Dr. Crüger recentemente descreveu nos coriandros. Uma parte do lábio inferior (labellum) desta orquídea é escavado de maneira a formar uma grande tina onde caem continuamente gotas de água quase pura segregada por duas pontas colocadas por cima; logo que a tina está semicheia, a água escoa-se por um canal lateral. A base do labellum que se encontra por cima da tina é por si mesma escavada e forma uma espécie de aposento provido de duas entradas laterais; neste aposento encontram-se excrescências carnudas muito curiosas. O homem mais engenhoso não poderá imaginar para que servem todos estes aparelhos se não for testemunha do que se passa. O Dr. Crüger notou que muitos zângãos visitam as flores desta orquídea não para sugar o néctar, mas para roer as saliências carnudas que encerra a câmara colocada por cima da tina; fazendo isto, os zângãos lançam-se frequentemente uns aos outros na água, banham as asas e, não podendo fugir, são obrigados a passar pelo canal lateral que serve de despejo do tanque. O Dr. Crüger viu uma procissão contínua de zângãos saindo assim do seu banho involuntário. A passagem é estreita e coberta pela coluna de tal maneira que o insecto, abrindo aí um caminho, roça a princípio o dorso con- tra o estigma viscoso e em seguida contra as glândulas igual- mente viscosas das massas de pólen. Estas aderem ao dorso do primeiro zângão que atravessou a passagem e este as leva. O Dr. Crüger enviou-me em álcool uma flor contendo um zângão morto antes que se desembaraçasse completamente da passagem e no dorso do qual se vê uma massa de pólen. Quando o zângão assim carregado de pólen foge para outra flor ou torna uma segunda vez à mesma e que, impelido por seus camaradas, cai na água e torna a sair pela passagem, a massa de pólen que leva sobre o lado acha-se necessàriamente em contacto com o estigma viscoso, adere-lhe e a flor assim é fecundada. Compreendemos então a utilidade de todas as partes da flor, das pontas segregando a água, da tina semicheia que impede os zângãos de fugir e os força a introduzir-se no canal para sair e por isso mesmo a roçar-se contra o pólen e contra o estigma igualmente viscosos.

A flor de uma outra orquídea muito próxima, o Catasetum, tem uma construção igualmente engenhosa, que corresponde ao mesmo fim, posto que seja muito diferente. Os zângãos visitam esta flor como a do coriandro para lhe roer o labellum; tocam pois, inevitávelmente uma longa peça afilada, sensível, que chamei antena. Esta, desde que lhe tocam, faz vibrar uma certa membrana que se rompe imediatamente; esta ruptura faz mover uma mola que projecta o pólen com a rapidez de uma flecha na direcção do inseeto ao dorso do qual adere pela extremidade viscosa. O pólen da flor masculina (porque, nesta orquídea, os sexos são separados) é assim transportado à flor feminina, onde se encontra em contacto com o estigma, bastante viscoso para quebrar certos fios elásticos; o estigma retém o pólen e é assim fecundado.

Pode perguntar-se como, nestes casos precedentes e numa série de outros, se chegam a explicar todos estes graus de complicação e estes meios tão diversos para obter o mesmo resultado. Pode responder-se, sem dúvida alguma, que, como já o fizemos notar, quando duas formas que diferem entre si em certo grau começam a variar, a sua variabilidade não é idêntica e, por consequência, os resultados obtidos pela selecção natural, ainda que tendem para o mesmo fim geral, não devem também ser idênticos. É preciso lembrar igualmente que todos os organismos muito desenvolvidos sofreram numerosas modificações; ora, como cada conformação modificada tende a transmitir-se por hereditariedade, é raro que uma modificação desapareça completamente sem ter sofrido novas alterações. Daqui resulta que a conformação das diferentes partes de uma espécie, para qualquer uso que estas partes sirvam além disso, representa a soma de numerosas alterações hereditárias que a espécie tem sucessivamente experimentado, para adaptar-se a novos hábitos e a novas condições de existência.

Enfim, ainda que, em muitos casos, seja muito difícil fazer mesmo a menor conjectura sobre as transições sucessivas que trouxeram os órgãos ao estado natural, estou contudo admirado, pensando quanto é mínima a proporção entre as formas vivas e conhecidas e as que são extintas e desconhecidas, de que seja tão raro encontrar um órgão de que se não possam indicar alguns estados de transição. É certamente verdadeiro que se vêem raramente aparecer num indivíduo novos órgãos que parecem ter sido criados com um fim especial; é mesmo o que demonstra o velho axioma de história natural de que se tem exagerado um pouco a significação: Natura non facit saltum. A maior parte dos naturalistas experimentados admitem a ver- dade deste adágio; ou, para empregar as expressões de Milne Edwards, a natureza é pródiga em variedades, mas avara em inovações. Para que haverá, na hipótese das criações, tantas variedades e tão poucas novidades reais? Porque é que todas as partes, todos os órgãos de tantos seres independentes, criadas, como se supõe, separadamente para ocupar um lugar distinto na natureza, estiveram tão ordinàriamente ligadas umas às outras por uma série de gradações? Porque não teria passado a natureza sucedâneamente de uma conformação para outra? A teoria da selecção natural faz-nos compreender claramente porque não sucede assim; a selecção natural, com efeito, actua apenas aproveitando leves variações sucessivas, não pode pois jamais dar saltos bruscos e consideráveis, só pode avançar por graus insignificantes, lentos e seguros.

ACÇÃO DA SELECÇÃO NATURAL SOBRE OS ÓRGÃOS POUCO IMPORTANTES EM APARÊNCIA

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A selecção natural actuando sòmente pela vida e pela morte, pela persistência do mais apto e pela eliminação dos indivíduos menos aperfeiçoados, experimentei algumas vezes grandes dificuldades para me explicar a origem ou a formação de partes pouco importantes; as dificuldades são tão grandes, neste caso, como quando se trata dos órgãos mais perfeitos e mais complexos, porém são de uma natureza diferente.

Em primeiro lugar, a nossa ignorância é tão grande relativamente ao conjunto da economia orgânica de um ser qualquer, para que possamos dizer quais são as modificações importantes e quais as modificações sem valor. Num capítulo precedente, indiquei alguns caracteres insignificantes, tais como a lanugem dos frutos ou a cor do pericarpo, a cor da pele e dos pêlos dos quadrúpedes, sobre os quais, em razão da sua relação com as diferenças constitucionais, ou em razão de determinarem os ataques de certos insectos, a selecção natural pôde certamente exercer qualquer acção. A cauda da girafa assemelha-se a um caça-moscas artificial; parece então inacreditável que este órgão pudesse ser adaptado ao uso actual por uma série de ligeiras modificações que seriam melhor apropriadas a um fim tão insignificante como o de caçar moscas. Devemos reflectir, contudo, antes de qualquer afirmação positiva mesmo neste caso, porque sabemos que a existência e a distribuição do gado silvestre e de outros animais na América meridional dependem absolutamente da sua aptidão para resistir aos ataques dos insectos; de maneira que os indivíduos que têm meios de se defender destes pequenos inimigos podem ocupar novas pastagens e assegurar-se assim de grandes proveitos. Não é porque, com raras excepções, os grandes mamíferos possam ser realmente destruídos pelas moscas, mas são de tal maneira cansados e enfraquecidos pelos ataques incessantes, que estão mais expostos a doenças e menos em estado de procurar a nutrição em tempo de carestia, ou escapar aos animais ferozes.

Os órgãos hoje insignificantes têm tido provavelmente, em alguns casos, uma alta importância para um remoto antepassado. Depois de se aperfeiçoarem lentamente em qualquer período anterior, estes órgãos transmitem-se às espécies existentes quase no mesmo estado, apesar de lhes servirem hoje de muito pouco; não quer isto dizer que a selecção natural arrastasse todo o desvio improfícuo à conformação delas. Poder-se-ia talvez explicar a presença habitual da cauda e os numerosos usos para que serve este órgão em tantos animais terrestres cujos pulmões ou bexigas natatórias modificadas revelam a origem aquática, pelo papel importante que desempenha a cauda, como órgão de locomoção em todos os animais aquáticos. Uma cauda bem desenvolvida estando formada num animal aquático, pode ser em seguida modificada para diversos usos, como apanha-moscas, como órgão preênsil, como meio de se voltar, no cão por exemplo, ainda que, nesta última relação, a importância da cauda deve ser muito diminuta, visto que a lebre, que quase não tem cauda, se volta ainda mais ràpidamente que o cão.

Em segundo lugar, podemos fàcilmente enganar-nos atribuindo importância a certos caracteres e julgando que são devidos à acção da selecção natural. Não devemos perder de vista os efeitos que podem produzir a acção definida das mudanças nas condições de existência — as pretendidas variações espontáneas que parecem depender, num fraco grau, da natureza das condições ambientes — a tendência ao regresso aos caracteres desde há muito perdidos — as leis complexas do crescimento, tais como a correlação, a compensação, a pressão que uma parte pode exercer sobre outra, etc. — e, enfim, a selecção sexual, que determina muitas vezes a formação de caracteres úteis a um dos sexos e em seguida sua transmissão mais ou menos completa ao outro sexo para o qual não têm utilidade alguma. Todavia, as conformações assim produzidas indirectamente, ainda que sem vantagens para a espécie, podem, depois, tornar-se úteis à sua descendência modificada que se encontra em novas condições vitais ou que adquiriu outros hábitos.

Se não houvesse picanços verdes e não soubéssemos que há muitas espécies de picanços de cor negra e malhada, teríamos provavelmente pensado que a cor verde do picanço é uma admirável adaptação, destinada a dissimular aos seus inimigos esta ave tão eminentemente florestal. Teríamos, por consequência, ligado muita importância a este carácter e teríamo-lo atribuído à selecção natural; ora, esta cor é devida provavelmente à selecção sexual. Uma palmeira trepadora do arquipélago malaio eleva-se ao longo das árvores mais altas por meio de ganchos admirávelmente construídos e dispostos na extremidade dos ramos. Este aparelho presta, sem dúvida, os maiores serviços a esta planta; mas, como podemos reconhecer ganchos quase semelhantes em muitas árvores que não são trepadoras e estes ganchos, se é necessário julgar pela distribuição das espécies espinhosas da África e da América meridional, devem servir de defesa às árvores contra os animais, da mesma forma os ganchos da palmeira podem ter sido desenvolvidos na origem com o fim defensivo, para se aperfeiçoarem depois e ser utilizados pela planta quando sofreu novas modificações e se tornou trepadora. Considera-se ordinàriamente a pele nua que cobre a cabeça do abutre como uma adaptação directa que lhe permite escavar incessantemente nas carnes em putrefacção; o facto é possível, mas esta desnudação poderia ser devida também à acção directa da matéria pútrida. É necessário, contudo, não avançar por este terreno a não ser com uma extrema prudência, porque sabe-se que o peru macho tem a cabeça desnudada, e a sua nutrição é muito diferente. Sustenta-se que as suturas do crânio, nos pequenos mamíferos, são admiráveis adaptações que auxiliam o acto da parturição; não é duvidoso que elas facilitam este acto, e mesmo são indispensáveis. Mas, como as suturas existem também no crânio das avezinhas e dos pequenos répteis, que têm apenas de sair de um ovo quebrado, podemos concluir que esta conformação é uma consequência das leis do crescimento e que foi depois utilizada na parturição dos animais superiores.

A nossa ignorância é profunda relativamente às causas das ligeiras variações ou das diferenças individuais; nada seria melhor para nos fazer compreender as diferenças que existem entre as raças dos animais domésticos nos diferentes países, e, mais particularmente, nos países pouco civilizados onde tem havido apenas pouca selecção metódica. Os animais domésticos dos selvagens, nos diferentes países, têm muitas vezes de prover à própria subsistência, e estão, até certo ponto, expostos à acção da selecção natural; ora, os indivíduos que têm constituições ligeiramente diferentes, poderiam prosperar mais em climas diversos. No gado silvestre, a susceptibilidade aos ataques das moscas está em relação com a cor: o mesmo sucede com a acção venenosa de certas plantas, de tal maneira que a própria coloração se acha assim submetida à acção da selecção natural. Alguns observadores estão convencidos que a humidade do clima afecta o crescimento dos pêlos e que existe certa relação entre os pêlos e os chifres. As raças das montanhas diferem sempre das raças das planícies; uma região montanhosa deve exercer provavelmente determinada influência sobre os membros posteriores porque têm um trabalho mais rude a desempenhar, e talvez mesmo também sobre a forma da bacia; por consequência, em virtude da lei das variações homólogas, os membros anteriores e a cabeça devem provavelmente ser afectados também. A forma da bacia poderia também afectar, pela pressão, a forma de algumas partes do animalzinho no seio da mãe. A influência das altas regiões na respiração tende, como temos boa razão para acreditar, a aumentar a capacidade do peito e a determinar, por correlação, outras alterações. A falta de exercício junta a uma abundante nutrição tem provavelmente, sobre todo o organismo, efeitos ainda mais importantes; é isto, sem dúvida, como H. von Nathusius acaba de demonstrar recentemente, no seu excelente tratado, a causa principal das grandes modificações que sofreram as raças porcinas. Mas, somos demasiado ignorantes para poder discutir a importância relativa das causas conhecidas e desconhecidas da variação; tenho feito, pois, as notas que precedem ùnicamente para demonstrar que, se nos é impossível avaliar as diferenças características das raças domésticas, ainda que se admita geralmente que estas raças derivam directamente da mesma origem ou de um muito pequeno número de origens, não deveríamos insistir muito sobre a nossa ignorância quanto às causas precisas das ligeiras diferenças que existem entre as verdadeiras espécies.

ATÉ QUE PONTO É VERDADEIRA A DOUTRINA UTILITÁRIA; COMO SE ADQUIRE A BELEZA

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As observações precedentes levam-me a dizer algumas palavras sobre o protesto que fizeram alguns naturalistas contra a doutrina utilitária, após a qual cada particularidade de conformação se produziu para vantagem do seu possuidor. Sustentam que muitas conformações foram criadas por simples amor da beleza, para encantar os olhos do homem ou os do Criador (este último ponto, contudo, está fora da discussão científica), ou por mero amor da variedade, ponto que já discutimos. Se estas doutrinas fossem fundadas, seriam absolutamente fatais à minha teoria. Admito completamente que muitas conformações já não têm hoje utilidade absoluta para o seu possuidor, e, talvez, nunca fossem úteis aos seus antepassados; mas isto não prova que estas conformações tenham tido ùnicamente por causa a beleza e a variedade. Sem dúvida alguma, a acção definida da mudança das condições e as diversas causas de modificações que indicámos têm produzido em conjunto um efeito provávelmente muito grande, independentemente das vantagens assim adquiridas. Mas, e é esta uma consideração ainda mais importante, a maior parte do organismo de cada criatura vivente é-lhe transmitido por herança; por conseguinte, ainda que decerto cada indivíduo seja perfeitamente apropriado ao lugar que ocupa na natureza, muitas conformações não têm hoje relação bem directa e bem íntima com as suas novas condições de existência. Assim, é difícil acreditar que os pés palmados do ganso que habita as regiões elevadas, ou os da fragata, tenham uma utilidade muito especial para estas aves; não podemos acreditar que os ossos similares que se encontram no braço do macaco, na perna anterior do cavalo, na asa do morcego e na palheta da foca tenham utilidade especial para estes animais. Podemos pois, com toda a segurança, atribuir estas conformações à hereditariedade. Mas, sem dúvida alguma, os pés palmados foram também úteis ao antepassado do ganso terrestre e da fragata, que são hoje na maior parte aves aquáticas. Podemos acreditar também que o antepassado da foca não tinha uma palheta, mas um pé com cinco dedos, próprio para prender ou para marchar; podemos talvez acreditar, além disso, que os diversos ossos que entram na constituição dos membros do macaco, do cavalo e do morcego foram primitivamente desenvolvidos em virtude do princípio da utilidade, e que provieram provavelmente da redução de ossos mais numerosos que se encontravam na barbatana de algum antepassado remoto, parecendo um peixe, antepassado de toda a classe. É a custo possível determinar que parte é necessário atribuir às diferentes causas de alterações, tais como a acção definida das condições ambientes, as pretendidas variações espontâneas e as leis complexas do crescimento; mas, depois de ter feito estas importantes reservas, podemos concluir que toda a minúcia de conformação em cada ser vivo é ainda hoje, ou foi outrora, directa ou indirectamente útil ao seu possuidor.

Quanto à opinião de que os seres organizados receberam a beleza para agradar ao homem — opinião subversiva de toda a minha teoria — farei, contudo, primeiramente notar que o sentido do belo depende evidentemente da natureza do espírito, independentemente de toda a qualidade real no objecto admirado, e que a ideia do belo não é inata ou inalterável. A prova desta asserção, é que os homens de diferentes raças admiram, nas mulheres, um tipo de beleza absolutamente diferente. Se os belos objectos fossem apenas criados para agradar ao homem, seria necessário demonstrar que havia menos beleza sobre a Terra antes que o homem tivesse aparecido em cena. As admiráveis volutas e os cones da época eocénia, os amonitas tão elegantemente esculpidos, do período secundário, foram criados para que o homem pudesse, após milhares de séculos mais tarde, admirá-los nos seus museus? Há poucos objectos tão admiráveis como os delicados invólucros siliciosos das diatomáceas; foram, pois, criados para que o homem possa examiná-los e admirá-los servindo-se dos mais fortes aumentos do microscópio? Neste último caso, como em muitos outros, a beleza depende por completo da simetria de crescimento. Colocam-se as flores no número das mais belas produções da natureza; mas tornaram-se brilhantes, e, por consequência, belas, para fazer contraste com as folhas verdes, de forma que os insectos possam distingui-las fàcilmente. Cheguei a esta conclusão, porque encontrei, como regra invariável, que as flores fecundadas pelo vento, não têm jamais uma corola revestida de brilhantes cores. Diversas plantas produzem ordinàriamente duas espécies de flores: umas abertas e com cores brilhantes de forma a atrair os insectos, outras fechadas, incolores, privadas de néctar, e que os insectos nunca visitam. Podíamos concluir que, se os insectos se não tivessem desenvolvido à superfície da terra, as nossas plantas não estariam cobertas de flores admiráveis e apenas teriam produzido as tristes flores que vemos nos pinheiros, nos carvalhos, nas nogueiras, nos freixos, nas gramíneas, nos espinafres, nas urtigas, que são todas fecundadas pela acção do vento. O mesmo raciocínio pode aplicar-se aos frutos; todos admitem que um morango ou uma cereja bem madura é tão agradável à vista como ao paladar; que os frutos vivamente coloridos do psilo e as bagas escarlates do azevinho são admiráveis objectos. Mas esta beleza não tem outro fim que não seja atrair as aves e os insectos, para que devorando os frutos disseminem as sementes; observei, com efeito, e não há excepção a esta regra, que as sementes são sempre assim disseminadas quando são envolvidas de um fruto qualquer (isto é, quando estão encerradas numa massa carnuda) com a condição de que este fruto tenha uma coloração brilhante ou que seja muito aparente porque é branco ou negro.

Demais, admito de bom grado que um grande número de animais machos, tais como todas as nossas aves mais magníficas, alguns répteis, alguns mamíferos, e uma série de borboletas admiràvelmente coloridas, adquiriram a beleza pela sua própria beleza; mas obteve-se este resultado pela selecção sexual, isto é, porque as fêmeas escolheram continuamente os mais belos machos; este embelezamento não teve, pois, por objecto o ser agradável ao homem. Poder-se-iam fazer as mesmas referências relativamente ao canto das aves. Lícito nos é concluir, de tudo o que precede, que uma grande parte do reino animal possui pouco mais ou menos o mesmo gosto para as belas cores e para a música. Quando a fêmea é tão brilhantemente colorida como o macho, o que é raro nas aves e nas borboletas, isto parece resultar de que as cores adquiridas pela selecção sexual foram transmitidas aos dois sexos em lugar de ser sòmente aos machos. Como é que o sentimento da beleza, na forma mais simples, isto é, a sensação de prazer particular que inspiram certas cores, certas formas e certos sons, foi primitivamente desenvolvido no homem e nos animais inferiores? É um ponto muito obscuro. Encontramo-nos, além disso, nas mesmas dificuldades se quisermos explicar como certos sabores e certos perfumes nos impressionam admiràvelmente, enquanto que outros nos causam uma aversão geral. Em todos estes casos, o hábito parece ter desempenhado um certo papel; mas èstas sensações devem ter algumas causas fundamentais na constituição do sistema nervoso de cada espécie.

A selecção natural não pode, de maneira alguma, produzir modificações numa espécie com o fim exclusivo de assegurar uma vantagem a uma outra espécie, ainda que, na natureza, uma espécie procura incessantemente tirar vantagem ou aproveitar-se da conformação das outras. Mas a selecção natural pode muitas vezes produzir — e nós temos numerosas provas de que ela o faz — conformações directamente prejudiciais a outros animais, tais como os ganchos da víbora e o ovopositor do icnêumon, que lhe permite depositar os ovos no corpo de outros insectos vivos. Se se conseguisse provar que uma parte qualquer da conformação de uma dada espécie foi formada com o fim exclusivo de procurar certas vantagens a outra espécie, seria a ruína da minha teoria; estas partes, com efeito, não poderiam ser produzidas pela selecção natural. Ora, posto que nas obras sobre a história natural se citem numerosos exemplos para este efeito, não pude encontrar um único que me parecesse ter algum valor. Admite-se que a cobra cascavel está armada de ganchos venenosos para a sua própria defesa e para destruir a sua presa: mas alguns escritores supõem ao mesmo tempo que esta serpente está provida de um aparelho sonoro que, advertindo a sua presa, lhe causa um prejuízo. Acreditaria isto de tão bom grado como que o gato recurva a extremidade da cauda, quando se prepara para saltar, com o único fim de advertir o rato que deseja apanhar. A explicação mais provável é que a serpente cascavel agita o aparelho sonoro, como a cobra enche o papo, a vibora se tumefaz, no momento em que emite o silvo tão duro e tão violento, com o fim de assustar as aves e os animais selvagens que atacam mesmo as espécies mais venenosas. As serpentes, numa palavra, operam em virtude da mesma causa que faz a galinha erriçar as penas e estender as asas quando um cão se aproxima dos pintainhos. Mas falta-me o espaço para entrar em mais minudências sobre os numerosos meios que empregam os animais para tentar intimidar os seus inimigos.

A selecção natural não pode determinar num indivíduo uma conformação que lhe seja mais nociva do que útil, porque sòmente pode actuar por e para seu bem. Como Paley o fez notar, órgão algum se forma com o fim de causar uma dor ou um prejuízo ao seu possuidor. Se se estabelece justamente a balança do bem e do mal causados por cada parte, aperceber-se-á que por fim cada uma delas é vantajosa. Se, no decorrer dos tempos, nas condições de novas existências, uma parte qualquer se torna nociva, modifica-se; se assim não for, o ser extingue-se, como tantos milhões de outros seres se extinguiram antes dele.

A selecção natural tende sòmente a tornar cada ser organizado tão perfeito, ou um pouco mais perfeito, que os outros habitantes do mesmo país com os quais se encontra em concorrência. É isto, sem refutação, o cúmulo da perfeição que se pode produzir no estado de natureza. As produções indígenas da Nova Zelândia, por exemplo, são perfeitas se as compararmos entre si, mas cedem hoje o terreno e desaparecem ràpidamente ante as legiões invasoras de plantas e de animais importados da Europa. A selecção natural não produz a perfeição absoluta; tanto quanto o podemos julgar, além de que não é no estado da natureza que nós encontramos estes altos graus. Segundo Müller, a correlação para a aberração da luz não é perfeita, mesmo no mais perfeito de todos os órgãos, o olho humano. Helmholtz, de que ninguém pode contestar o critério, depois de ter descrito nos termos mais entusiastas o maravilhoso poder do olho humano, junta estas singulares palavras: «O que temos descoberto de inexacto e de imperfeito na máquina óptica e na produção da imagem sobre a retina não é nada comparativamente com as fantasias que encontramos no domínio da sensação. Pareceria que a natureza tivera prazer em acumular as contradições para tirar todo o fundamento à teoria de uma harmonia preexistente entre os mundos interiores e exteriores». Se a nossa razão nos leva a admirar com entusiasmo uma série de disposições inimitáveis da natureza, esta mesma razão nos diz, apesar de que nos podemos enganar fàcilmente nestes dois casos, que algumas outras disposições são menos perfeitas. Podemos nós, por exemplo, considerar como perfeito o aguilhão da abelha, que ela não pode, sob pena de perder as vísceras, retirar da ferida que faz a certos inimigos, porque este aguilhão é dentado, disposição que causa necessàriamente a morte do insecto?

Se considerarmos o aguilhão da abelha como tendo existido em qualquer remoto antepassado em estado de instrumento perfurante e dentado, como se encontra em tantos membros da mesma ordem de insectos; que, depois, este instrumento seja modificado sem se aperfeiçoar para preencher o seu fim actual, e que o veneno, que ele segrega, primitivamente adaptado a algum outro uso, tal como a produção de galhas, tenha também aumentado de poder, podemos talvez compreender como sucede que o emprego do aguilhão cause tantas vezes a morte do insecto. Com efeito, se a aptidão a picar é útil à comunidade, ela reúne todos os elementos necessários para expor-se à selecção natural, apesar de causar a morte a alguns dos seus membros. Admiramos o surpreendente poder do olfacto que permite aos machos de um grande número de insectos encontrar a sua fêmea, mas podemos nós admirar nas abelhas a produção de tantos milhares de machos que, à excepção de um único, são completamente inúteis à comunidade e que terminam por ser trucidados pelos irmãos industriosos e estéreis? Por mais repugnância que tenhamos para o fazer, deveríamos admirar a selvagem aversão instintiva que possui a abelha-mestra para destruir, desde o nascimento, as novas mestras, suas filhas, ou ela própria a morrer no combate; não é duvidoso, com efeito, que actua para bem da comunidade e que, ante o inexorável princípio da selecção natural, pouco importa o amor ou o ódio maternal, posto que este último sentimento seja felizmente de excessiva raridade. Admiramos as combinações tão diversas, tão engenhosas, que asseguram a fecundação das orquídeas e de muitas outras plantas pela intervenção dos insectos; mas podemos nós considerar como igualmente perfeita a produção, nos nossos pinheiros, de espessas nuvens de pólen, de maneira a que algumas sementes possam sòmente cair por acaso sobre os óvulos?

RESUMO: A TEORIA DA SELECÇÃO NATURAL COMPREENDE A LEI DA UNIDADE DE TIPO E DAS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA

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Consagramos este capítulo à discussão de algumas das dificuldades que apresenta a nossa teoria e das objecções que se podem levantar contra ela. Muitas são sérias, mas creio que discutindo-as projectamos alguma luz sobre certos factos que a teoria das criações independentes deixa na obscuridade mais profunda. Temos visto que, durante um período dado, as espécies não são infinitamente variáveis, e que não são ligadas umas às outras por uma série de gradações intermediárias; em parte, porque a marcha da selecção natural é sempre lenta e, durante um tempo dado, actua apenas sobre algumas formas; em parte, porque a selecção natural envolve necessàriamente a eliminação constante e a extinção das formas intermediárias anteriores. As espécies mais próximas, habitando hoje uma superfície contínua, deviam muitas vezes formar-se, ainda que esta superfície não fosse contínua e que as condições exteriores de existência não se confundissem insensìvelmente em todas as suas partes. Quando duas variedades aparecessem em dois distritos de uma superfície contínua, forma-se algumas vezes uma variedade intermediária adaptada a uma zona intermediária; mas, em virtude de causas que temos indicado, a variedade intermediária é ordinàriamente menos numerosa que as duas formas que liga; por consequência, estas duas últimas, no decorrer de novas modificações favorecidas pelo número considerável de indivíduos que contêm, têm grandes vantagens sobre a variedade intermediária menos numerosa e tendem ordinàriamente a eliminá-la e a exterminá-la.

Vimos, neste capítulo, que é necessário usar da maior prudência antes de concluir a impossibilidade de uma mudança gradual dos mais diferentes hábitos de existência; antes de concluir, por exemplo, que a selecção natural não pôde transformar em morcego um animal que, primitivamente, só estava apto a pairar deslizando no ar.

Vimos que uma espécie pode mudar os hábitos se está colocada em novas condições de existência ou pode ter hábitos diversos, por vezes muito diferentes dos dos seus mais próximos congéneres. Se tivermos o cuidado de lembrar que cada ser organizado se esforça por viver em toda a parte onde pode, podemos compreender, em virtude do princípio que acabamos de exprimir, como sucede que haja patos terrestres de pés palmados, picanços não vivendo sobre as árvores, melros que mergulham na água e os alcatrazes que têm os hábitos dos pinguins.

O pensamento de que a selecção natural pôde formar um órgão tão perfeito como o olho, parece de natureza a fazer recuar o mais audaz; não há, contudo, impossibilidade alguma lógica para que a selecção natural, sendo dadas condições de vida diferentes, tenha conduzido a um grau de perfeição considerável um órgão, seja qual for, que passou por uma longa série de complicações muito vantajosas ao seu possuidor. Nos casos em que não conhecemos os estados intermediários ou de transição, é necessário não concluir prontamente que nunca existiram, porque as metamorfoses de muitos órgãos provam que alterações admiráveis de função são pelo menos impossíveis. Por exemplo, é provável que uma bexiga natatória se transformasse em pulmões. Um mesmo órgão, que simultâneamente exerceu funções muito diversas, e depois se especializou no todo ou em parte para uma única função, ou dois órgãos distintos tendo ao mesmo tempo desempenhado a mesma função, indo um melhorando enquanto que o outro lhe vinha em auxílio, são circunstâncias que deviam muitas vezes facilitar a transição. Vimos que os órgãos que servem para o mesmo fim e parecem idênticos, puderam formar-se separadamente, e de modo independente, em duas formas muito afastadas uma da outra na escala orgânica. Contudo, se se examinam estes órgãos com cuidado, podem quase sempre descobrir-se neles diferenças essenciais de conformação, o que é a consequência do princípio da selecção natural. Demais, a regra geral em a natureza é chegar aos mesmos fins por uma diversidade infinita de conformações e isto deriva naturalmente também do mesmo grande princípio. Em muitos casos, somos demasiado ignorantes para poder afirmar que uma parte ou um órgão tem assaz pouca importância para a prosperidade de uma espécie, para que a selecção natural não possa, por lentas acumulações, trazer modificações na sua estrutura. Em muitos outros casos as modificações são provavelmente o resultado directo das leis da variação ou do crescimento, independente de todas as vantagens adquiridas. Mas podemos afirmar que estas próprias conformações foram mais tarde postas à prova e modificadas de novo para bem da espécie, colocada em novas condições de existência. Podemos crer também que uma parte tendo tido outrora uma alta importância é muitas vezes conservada; a cauda, por exemplo, de um animal aquático existe ainda nos descendentes terrestres, se bem que esta parte tenha actualmente uma importância tão pequena, que, no seu estado actual, não poderia ser produzida pela selecção natural.

A selecção natural nada pode produzir numa espécie, com um fim exclusivamente vantajoso ou nocivo a uma outra espécie, se bem que possa trazer a produção de partes, de órgãos ou excreções muito úteis e mesmo indispensáveis, ou muito nocivas a outras espécies; mas, em todos os casos, estas produções são ao mesmo tempo vantajosas para o indivíduo que as possui.

Num pais bem povoado, a selecção natural actuando principalmente pela concorrência dos habitantes, só pode determinar o grau de perfeição relativamente aos tipos do país. Também, os habitantes de uma região mais pequena desaparecem geralmente diante dos de uma região maior. Nesta última, com efeito, há mais indivíduos tendo formas diversas, a concorrência é mais activa e, por conseguinte, o tipo de perfeição é mais elevado. A selecção natural não produz necessàriamente a perfeição absoluta, estado que, tanto quanto o podemos julgar, não podemos conseguir encontrar em parte alguma.

A teoria da selecção natural permite-nos compreender claramente o valor completo do antigo axioma: Natura non facit saltum. Este axioma, se for aplicado somente aos habitantes actuais do globo, não é rigorosamente exacto, mas torna-se estritamente verdadeiro quando se considera o conjunto de todos os seres organizados conhecidos ou desconhecidos de todos os tempos.

Admite-se geralmente que a formação de todos os seres organizados repousa sobre duas grandes leis; a unidade de tipo e as condições de existência. Entende-se por unidade de tipo esta concordância fundamental que caracteriza a conformação de todos os seres organizados de uma mesma classe e que é por completo independente dos seus hábitos e do modo de viver. Na minha teoria, a unidade de tipo explica-se pela unidade de descendência. As condições de existência, ponto sobre que o ilustre Cuvier tantas vezes tem insistido, fazem parte do princípio da selecção natural. Esta, com efeito, actua, seja adaptando actualmente as partes variáveis de cada ser às suas condições vitais orgânicas ou inorgânicas, seja tendo-as adaptado a estas condições durante longos períodos decorridos. Estas adaptações têm sido, em certos casos, provocadas pelo aumento do uso ou do não uso das partes, ou afectadas pela acção directa dos meios, e, sem excepções, têm sido subordinadas às diversas leis do crescimento e da variação. Por consequência, a lei das condições de existência é de facto a lei superior, pois que compreende, pela hereditariedade das variações e das adaptações anteriores, a da unidade de tipo.