Os Dois Amores/II

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No fim do muro que defendia o jardim do "Céu cor-de-rosa", estava, como já dissemos, o "Purgatório-trigueiro".

Era uma velha casinha, cujas paredes se mostravam carcomidas pelo tempo: entrava-se por uma rótula em péssimo estado; havia ao lado desta, e pela parte direita, uma janela sem vidraças, mas com postigos que se abriam para os lados, e nada mais. Nem mesmo da rua se podia fazer uma justa idéia do pequeno sótão que, como envergonhado, deitava suas janelas para trás, e que apenas assinalava sua existência pela parte anterior, na elevação do telhado enegrecido e limoso, o que ainda mais afeava a antiga casinha, simulando corcova enorme de velha.

Aquela triste e miserável habitação tinha em si um não sei quê de repugnante; e todavia não era maldição, não era escárnio o que o povo votava ao velho casebre; era sim a cruel antítese, que a fazia conhecer por um nome afrontoso.

No entanto, a interessante moça do "Céu cor-de-rosa", bendizia a existência daquela casinha, e pedia ao céu que jamais se lhe mudasse a moradora: justa razão tinha ela para assim o pedir.

A "Bela Órfã" gostava, e muito, de passar no jardim a sua hora matutina em completa liberdade; e seu jardim podia ser quase todo devassado pelo pequeno sótão da velha casa; mas a janela desse sótão, que podia incomodar a moça, não se abria nunca; e por conseqüência nenhum morador lhe devia ser tão agradável como essa pobre velha, que parecia amar a obscuridade, e tinha as janelas sempre fechadas.

Apesar do muito que pareça mau gosto, a despeito mesmo de que erro se julgue abandonar uma personagem ainda pouco conhecida, para nos irmos ocupar já de outras por sem dúvida baldas do interesse que terá podido merecer a primeira; perderemos de vista, por um momento, a "Bela Órfã", para travar conhecimento agora com a velha bruxa. Ainda bem que não é pecado, neste caso, desprezar o cami­nho do "Céu", a fim de penetrar no interior do "Purgatório".

Eram oito horas da noite.

A saleta do "Purgatório-trigueiro" estava fracamente alu­miada por uma única luz deposta sobre antiga mesa redon­da, junto da qual tomavam café e pão a velha Irias e um man­cebo de agradável presença, que deveria contar cerca de vinte anos; uma escrava da mesma idade que a primeira, esperava de braços cruzados, e a alguma distância, a termina­ção da ceia.

Irias era uma mulher setuagenária, alta, magra, de cabelos completamente brancos, de olhos verdes, que deveriam ter si­do belíssimos, e que ainda aos setenta anos ela os conservava sempre repletos de fogo e de vivacidade: tinha ainda todos os dentes iguais, alvos e belos; vestia nessa noite um simples vestido de chita escura sem enfeite algum, e escondia os cabelos brancos por debaixo de um lenço de Alcobaça atado à cabeça.

O mancebo era de estatura regular. Tinha cabelos pretos e anelados e a fronte elevada e bela. Seus olhos pardos, que às vezes, por passageiros instantes, se acendiam e darde­javam olhares ardentes, mostravam-se de ordinário desmaia­dos e amortecidos; por baixo de suas pálpebras inferiores desenhavam-se olheiras roxeadas e filhas talvez da vigília e do estudo; a tez pálida desse mancebo condizia, enfim, perfeitamente, com o parecer melancólico e abatido e com o silêncio obstinado que guardava desde o começo da refeição; estava ele de calças brancas e com um lencinho de seda encarnada ao pescoço, e finalmente vestia um chambre de riscadinho azul abotoado até em cima.

Embora a melancolia devesse ser natural nesse mancebo, é provável que alguma coisa, fora do comum, nele houvesse naquela noite; pois que a velha Irias lhe lançava de relance vistas perscrutadoras e ele cem vezes tinha já estremecido, como por uma horripilação momentânea e súbita.

Terminada a ceia, a velha e o mancebo ergueram-se, rezaram, e tornaram a sentar-se, ao mesmo tempo que a escrava retirou de sobre a mesa o velho serviço.

Uma hora longa e muda passou então para aquele mancebo, que meditava, e para aquela velha, que observava.

O moço tinha deixado cair a cabeça até encostar a barba na mão esquerda, apoiando-se com o cotovelo sobre a mesa: parecia esquecido de si mesmo e só entregue a um profundo cogitar de recônditos pensamentos; pesadas idéias como que se lhe exalavam d’alma, e se lhe iam encrespar em sua fronte elevada, cujas rugas horizontais poderiam dizer-se ondas de um ânimo em tempestade.

A cena de concentração e de silêncio se foi prolongando mais e mais, sem que o mancebo pudesse arrancar-se dos braços de um pensamento em que, talvez a pesar seu, se achava embebido; e sem que também a velha ousasse despertar o moço daquele completo sono da matéria, que deixa a alma livre toda entregue a esse vivíssimo trabalho, que os homens chamam meditação.

O toque de recolher veio despertar o mancebo. O som dos bronzes pareceu tocar dolorosamente sua alma; e ele erguendo-se imediatamente, e sacudindo a cabeça como para espalhar o enxame de tristes idéias, que a pejavam, corou, olhando para Irias, e disse:

— É tarde: boa-noite, minha mãe.

Tomou então uma vela, acendeu-a, e sumiu-se por um corredor estreito e úmido, no fim do qual encontrou a escadinha do sótão, que vagarosamente galgou.

A velha em silêncio o abençoou, e duas lágrimas grossas e brilhantes vieram pendurar-se das pálpebras de seus olhos verdes, semelhantes a gotas de orvalho prestes a tombar do ápice de duas folhas de uma árvore secular.

Mas quem era esse mancebo?...

Chegado a casa de Irias apenas há dois meses, fora rece­bido como um extremosamente amado filho; e logo após sua vida correu triste e misteriosa, desconhecida e abafada, como alguns desses lúgubres pensamentos noturnos, que no leito concebem, e que no leito se deixam até o repousar da seguinte noite.

Sem um único amigo; só, Cândido (este o nome do man­cebo) deixava o pequeno sótão do "Purgatório-trigueiro" pouco depois do amanhecer, e voltava de novo a ele quando a noite desdobrava o manto das trevas sobre a cidade do Rio de Janeiro.

E ninguém tinha até então notado naquele mancebo, que duas vezes por dia passava triste e silencioso o limiar da porta do "Purgatório-trigueiro". Apenas o par terrível o observava cuidadoso: Jacó o tinha seguido por vezes, mas parara vendo-o entrar em uma muito freqüentada rua da corte na casa de um advogado. Jacó, que fora escrivão, detestava a justiça agora, e tinha medo de quem com ela estava em relação; e portanto, mesmo para os dois maldizentes e curiosos vizinhos, a vida de Cândido era um mistério... o pesadelo de Jacó... o tormento de Helena.

E o resto de sua vida, à noite, era ainda um novo segredo até para a velha Irias; era um segredo sepultado dentro de antigo sótão.

E a filha de Paulo Ângelo, ao romper de todas as auroras, passeava negligente e descuidada pelo seu jardim, e mal po­dia adivinhar que a essas horas a janeleta fechada do triste sótão do "Purgatório-trigueiro" encerrava um mancebo em toda força dos anos, que então ali descansava, ou... quem sabe o que ele fazia?

Mas quem era esse mancebo?...

É meia-noite. Uma luz pálida e fraca alumia uma rude câmara, cujas paredes mal rebocadas, e já aqui e ali fendi­das, ameaçam desabar bem cedo. Tábuas já meio apodre­cidas, e que rangem ao pisar de um pé menos leve, fazem o assoalho dessa câmara, que nem ao menos é forrada. No fundo vê-se uma pequena janela, e iguais a esta duas outras, que se abrem uma para cada lado. Todas três se acham fechadas. Mas naquela, que fica à direita, uma fenda larga de três dedos deixa passar os raios da lua, que vem inundar o interior daquele aposento resfriado incessantemente pelas brisas da noite, que entram pela fenda da janela.

Vê-se ao lado esquerdo uma mesa pequena, e sobre ela tudo o que é de mister para escrever. Defronte dessa uma outra muito maior coberta de livros, de papéis e de estam­pas; não longe desta um leito baixo e estreito; a um canto uma harpa, cujas cordas, pela maior parte rebentadas, atestam o esquecimento de seu dono.

Eis o sótão do "Purgatório-trigueiro" todo completo.

Na hora em que fizemos a descrição da câmara desse sótão, a qual era o sótão inteiro, à meia-noite, um mancebo achava-se sentado junto da mesa pequena, e tinha o rosto caído sobre um livro, onde acabara de escrever algumas linhas. Seu braço direito estendia-se sobre a mesa, e ele apertava ainda a pena entre os dedos.

Cândido havia involuntariamente adormecido.

Quem se tivesse então colocado por trás do mancebo e lhe afastasse um pouco a cabeça, poderia ler uma página do li­vro da vida daquele homem. Este livro era o seu diário, a urna onde sepultava os pensamentos de cada um de seus dias.

Uma página apenas se oferece a saciar nossa curiosidade. Eis, pouco mais ou menos, o que estava escrito:

"15 de setembro. — Hoje foi como ontem, e amanhã será como hoje. O porvir começa a desenhar-se a meus olhos sob a forma de um esqueleto. Não há nada novo na minha vida. É somente a mocidade, que tem por seu passado a in­fância, que ainda não geme nem medita, que goza já e ainda espera; é somente a mocidade quem se pode sorrir para a vida. E todavia eu que sou moço, moço dos melhores anos, eu me não posso sorrir para ela!... quando pois o farei?... quando for velho?... mas o velho chora os erros do passado, o sofrimento do presente, chora a morte, que é todo o seu futuro, e enfim medita sobre a eternidade. Por conseqüência eu nunca hei de sorrir para a vida."

"16 de setembro. — Terrível sonho tive eu à noite passada. Dormindo, vi uma mulher, que se envergonhava de me olhar... era minha mãe!... eu a estive vendo, como se a houvesse algum dia conhecido... chorei ajoelhado a seus pés, e ela praguejou contra mim, porque eu sou a prova do seu erro. Amaldiçoou-me, porque eu sou para ela (talvez!) um remorso, que incessante a dilacera. Preciso repetir mil vezes, a mim mesmo, que isso foi um sonho. Porque achar minha mãe é a única esperança, que neste mundo tenho, e ser amado por ela, uma ambição desesperada. Eu adoro a minha mãe sem tê-la nunca visto; daria minha vida por uma bênção dela. Meu Deus! dai-me minha mãe!"

"17 de setembro. — Há somente dois sentimentos capazes de encher toda a alma de um mancebo: são eles — amor e ambição —. Careço de bases para desenvolver qualquer dos dois. Para mim, portanto, não há felicidade possível. É horrível a vida do homem que tem um coração cheio de amor e carece de quem lhe aceite esse sentimento de fogo; que possui um pensamento repleto de nobre ambição, e não tem asas para voar ao ponto que mira. Disseram-me um dia que eu tinha talento e gênio; pois sim; suponhamos que se não enganaram. Tenho talento e gênio, mas não posso dei­xar a obscuridade; porque se eu sair em claro dia, o primeiro que me encontrar, perguntar-me-á — quem és tu? — e eu não terei uma palavra para responder-lhe. Tenho talento e gê­nio; porém se amar uma mulher, ela há de rir-se de minha audácia, de minha loucura, há de zombar do pobre que a ama; e se for também louca para chegar a amar-me, terá de descer muito para ir até o fundo do abismo onde a sociedade tem posto em exílio o homem pobre. Oh! é preciso pois passar pela vida sem gozar nenhum desses grandes afetos... sem ter pais, que me abençoem; sem ter esposa, com quem me identifique; sem ter filhos, em quem me sinta renascer. Oh!... só! sempre só."

"18 de setembro. — Não foi uma visão, meu Deus?... será possível que fosse realidade?... o que se está passando ainda agora, o que eu tenho na cabeça, o que eu sinto no coração não se exprime... não se descreve... não, é impossível; mas fica eternamente impresso na alma."

"19 de setembro. — Oh!... era... é realidade!"

"20 de setembro. — Minha mãe, perdão! três dias passados, sem que eu vos desse mais que momentâneos pensamentos; foram três dias de embriaguez ou de sono; mas enfim eis-me despertado. Sim... dormi, porque cheguei a esquecer-me de minha posição e de minha desgraça; em castigo, porém, aqui estou eu agora mais desgraçado que nunca. O que eu sofro... as lúgubres idéias que me fervem no cérebro, não serão aqui exaladas. Não! eu tenho vergonha do que sofro; se aqui as escrevesse, e depois alguém a meus olhos lesse este papel, eu creio que morreria de pejo. E todavia eu precisava tanto de escrever!... quando se tem derramado em um papel aquilo que na alma se está sentindo, o coração de quem sofre como que fica livre de um peso enorme. Eia, pois!... escrevamos sempre... um nome só... não! um nome, não! Bastam duas letras — "Ce" —."

Com essas duas letras tinha-se exatamente terminado a página, de que copiamos os anteriores pensamentos.

Cândido havia parado de escrever; e provavelmente, sem querer, adormecera com o rosto caído sobre o papel, e os lábios sobre aquelas duas letras — Ce.

É possível que o seu último pensamento da vigília fosse o dar um beijo nas duas letras, que lhe pareciam ser tão caras.

Prolongou-se o dormir do mancebo até quase o amanhecer; hora em que, como se o próprio coração o despertasse, ergueu-se ele rápido, e foi até a fresta que havia na janela do lado direito.

A noite ainda não se havia de todo dissipado.

— Ainda é cedo, disse.

Mas ficou no mesmo lugar, olhando pela fresta; e dir-se-ia que esperava ver dali cair sobre a terra o primeiro raio do sol.

Pela fenda da janela, a que Cândido se chegara, e onde permanecia, devassava-se quase todo jardim do "Céu cor-de-rosa". Ao fundo deste via-se um pequeno e gracioso caramanchão coberto de trepadeiras de mil espécies.

As auras da madrugada entravam pela fenda da janela do sótão, impregnadas de mil embriagadores perfumes, como o bafo de cem anjos, que a um só tempo respirassem.

À luz incompleta e duvidosa do começar do dia, tinha sucedido essa outra, que acompanha o primeiro rubor do oriente, que é como um sorrir de saudação e de amor, que o sol oferece à terra.

De repente Cândido estremeceu da cabeça até os pés; inclinou-se para diante, e sua perna direita recebeu todo peso de seu corpo. Operou-se então em seu semblante, e em todo ele, uma mímica expressiva e eloqüente. Os olhos vivos e animados pareciam acompanhar um único objeto com olhar apaixonado, ardente e cheio de fascinação magnética; rubor febril embelecia-lhe as faces... suas narinas se dilatavam pouco a pouco; a boca entreaberta deixava passar sua respi­ração suspirosa e comprimida, e ao mesmo tempo sua mão esquerda apertava o peito no lugar do coração, que palpitava forte e freqüente, como em uma hora de perigo; tremor nervoso, porém leve, agitava-lhe todo o corpo.

Tudo isso era a alma virgem de um jovem, que por suas mil bocas saudava a aparição de uma mulher formosa.

Com efeito abrira-se uma pequena porta, que do "Céu cor-de-rosa" deitava para o jardim, e uma mulher tinha-se misturado com as flores.

Era uma moça de dezesseis anos. Mercê da hora e do lu­gar, vinha ela em livre desalinho. Vestia um vestido azul-claro, leve, de mangas curtas, e comprido, como é moda ain­da hoje. Cabelos castanhos quase pretos caíam bastos, lon­gos e ondeados até um palmo do chão, de modo a fazer inveja a essas gregas, de quem fala Gemelli; sua fronte era branca e lisa; seus olhos azuis e belos, como os das mais belas mulheres do Norte. Fugitivo rubor lhe assomava às faces. Formavam sua boca breve e ornada de lindíssimos dentes, dois lábios úmidos e rubros, como o bico de uma trocaz. Seu nariz era bem feito como os das beldades da Circássia; e a seu colo altivo e branco como a neve seguia um seio alvo palpitante... perigoso de se contemplar...

Delgada e graciosa como a palmeira de nossos bosques, essa moça com cintura de georgiana, com suas mãozinhas delicadas e finas, com seus pés de menina, com todas as suas formas mimosas e puras, mostrava-se verdadeiramente encan­tadora.

Era uma dessas belezas delicadas e flexíveis, a quem um homem apertaria a mão muito de leve, e teria ainda assim mesmo medo de haver ofendido seus brandos tecidos; a quem um esposo beijaria no rosto com a ponta dos lábios, temeroso de desbotá-la com o simples toque deles; era um desses tipos de brandura delicado e fino, como uma violeta, um jacinto ou uma pétala de rosa.

Era a "Bela Órfã".

A interessante moça passeou durante alguns momentos por entre suas flores; examinou o estado de seus arbustinhos mais queridos; enfim chegou-se a uma roseira e colheu um botão de rosa.

Tinha colhido a sua imagem.

Entrou depois no caramanchão e reclinou-se negligentemente em um banco de relva. Aproveitando a inclinação desse belo corpo, e ajudados pelo impulso dos zéfiros, os ca­belos da moça derramaram-se sobre ela.

Quem a visse então debaixo daquele teto de flores, reclinada em um leito cor de esmeralda, com seu seio e seu colo cobertos pelas longas madeixas quase negras, com seu comprido vestido azul-celeste agitado pelas auras, com seu rosto tão belo como surgindo dentre aquela chusma de anéis de madeixas, a julgaria talvez uma encantadora fada, ou tomá-la-ia pela visão de um sonho.

A moça parecia esquecida de si própria na posição que tomara, quando um brando raio do sol que acabava de nascer veio refletir sobre seu rosto.

Então ergueu-se, e olhando como em despedida para suas flores, saiu do caramanhão, e pouco depois desapareceu pela pequena porta por onde tinha vindo.

O anjo acabava de entrar no céu.

Cândido, imóvel, silencioso e em êxtase, havia acompanhado com seu olhar magnético aquela mulher angélica em todos os seus movimentos. Vendo-a desaparecer, exalou um suspiro longo e doloroso, que talvez desde muito sufocava no coração; e enfim pronunciou vagarosamente com enlevo indizível e demorando-se em cada sílaba, um nome, só um nome, como se esse nome fosse um hino completo, e em cada uma de suas sílabas achassem seus lábios melíflua doçura.

Ele disse pois baixinho e preguiçosamente:

— Celina!