Os Dois Amores/XV

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Meia hora depois que Anacleto e Celina tinham saído para se dirigirem ao Passeio Público, um carro parou junto do alpendre do "Céu cor-de-rosa", e Sa­lustiano apeou-se dele.

Mariana, que o recebeu, estava só na sala.

Apresentou-se Salustiano com ar triunfante; a filha de Anacleto estava pelo contrário pálida, mas com semblante desdenhoso.

Sentaram-se ambos muito perto um do outro. Houve um curto silêncio, e Salustiano falou primeiro:

— Enfim, estamos um momento a sós, minha senhora!

— É verdade, respondeu com voz segura Mariana, eu preparei este momento.

— Como?...

A viúva levantou-se, foi fechar a porta da sala, e tomando de novo o seu lugar:

— O senhor mo havia exigido, disse; no serão de anteontem despediu-se de mim com estas palavras: "depois de amanhã, às cinco horas da tarde!" não foi assim...

— Ah! Sim... creio que sim, respondeu Salustiano, fingindo que se lembrava.

— E eu para obedecer-lhe, menti a meu pai; convidei-o para passear hoje à tarde, e na hora de sair queixei-me de um pequeno incômodo, e forcei-o com rogos a fazer o pas­seio só com minha sobrinha.

— V. Exa. é a mesma bondade!... disse o moço com insolente ironia.

— Oh! não! senhor; falemos seriamente; não há bondade da minha parte, nem polidez da sua. O caso é simples: aqui está um senhor e uma escrava.

A firmeza com que Mariana pronunciou essas palavras obrigou Salustiano a fazer um movimento de admiração.

— Porque, continuou ela, eu compreendo perfeitamente o que sejam as cerimônias, e as etiquetas em uma assembléia; mas quando se acham a sós, e cara a cara, duas pessoas que se procuraram adrede para tratar de uma questão cuja base, apesar de ser um segredo, é de ambos conhecida, para que, senhor, estar com vãs palavras encobrindo uma triste verdade?... para que vestir em belas roupas um horrível esque­leto?...

Mas enquanto Mariana assim se exprimia, retomara Salustiano seu sangue frio habitual, e já com seu insolente e costumeiro sorriso nos lábios, respondeu em tom de gracejo.

— É, minha senhora, que eu tenho minhas tendências para diplomata.

— Menos isso, senhor, tornou Mariana; pode sim um homem, imprevistamente dono do segredo de uma mulher, impor-lhe, por preço de seu silêncio, condições indignas; isso será apenas vilania... baixeza de alma; mas ridicularizar essa mulher, senhor?! oh já não é só vilania, é infâmia!

— Senhora! disse Salustiano.

— E preciso é que me conheça bem, que faça justiça a meu caráter. Se tenho tremido, se me tenho humilhado a seus olhos nas sociedades, é porque me curvo ante a pureza dos outros, e nunca porque dobre os joelhos ao seu poder. Quando estivermos sós, eu hei de conservar-me sempre na minha posição, alta, elevada muito sobre a sua; porque a vítima é sempre menos infame do que o algoz. A quem eu temo, a quem eu respeito, não é o senhor, é as almas nobres.

— Senhora!...

— Nada de falsas posições entre nós, continuou a viúva: o que somos ambos, ambos o estamos vendo. Eu sou uma mulher indigna, e o senhor é um homem baixo e vil. Suponhamos agora que nenhum de nós tem pejo, e falemos claramente um ao outro como dois sicários que tratam de um crime. Eis aqui como deve passar esta hora entre nós dois: creio que torno tudo muito fácil. O que quer o se­nhor de mim?...

Aquela mulher alta, bela, morena, de olhos cheios de fogo, orgulhosa e veemente, dava incrível força a suas palavras; com seu olhar ardente humilhava Salustiano, que ficou de novo espantado e em silêncio junto dela.

A viúva repetiu a pergunta que já havia feito.

— O que quer de mim, senhor?!

— Confesso, senhora, disse Salustiano, que não vinha pre­parado para uma conversação da natureza que parece dese­jar; todavia, pois que assim o quer, esforçar-me-ei por mos­trar-me sem pejo, e falar-lhe como um sicário que com outro conversa sobre um crime.

— Bem; é isso mesmo: o que quer, pois?...

— Primeiramente quero saber quem é este mancebo que tão assiduamente freqüenta a sua casa, e a quem ouço dar o nome de Cândido.

— Sei que se chama Cândido.

— E mais nada?...

— E mais nada.

— Vamos mal, senhora; não vi, como desejava, satisfeita minha primeira pergunta; desvaneço-me porém de esperar que uma exigência, que agora farei, será completamente e cedo cumprida.

— E o que exige o senhor?... perguntou Mariana.

— Que as portas desta casa sejam fechadas a esse mancebo.

— Quem abre e fecha as portas desta casa a todas as pessoas não é a filha, é o pai.

Salustiano levantou os ombros e disse:

— Embora; eu o exijo.

Mordeu Mariana os lábios de despeito, e depois perguntou:

— E por quê?... e para que havemos de fechar as portas desta casa a esse infeliz moço?...

— Já o disse uma vez, senhora, porque eu o exijo.

— Oh!... e crê que há de ser humildemente obedecido, não é assim?...

— Tenho a certeza disso.

— Senhor! senhor!... exclamou a filha de Anacleto; não compreende que isso é já muito abusar?... oh! um cava­lheiro zombando, insultando uma mulher, porque sente que ela não tem por si quem a defenda; que existe abatida com a consciência de um crime! Mas um cavalheiro deve sentir que quando chega a exaltação, quando mais não pode sofrer, quando enfim determina vingar-se, uma mulher vale o dobro de um homem; porque de ordinário o homem sabe somente matar, e a mulher sabe também morrer.

Salustiano começava a rir.

— O senhor se está aí rindo porque não sente que estas palavras pronunciadas por uma senhora à face de um cavalheiro eqüivalem à maior das afrontas que um homem pode fazer a outro... mas deve rir-se... o senhor tem consciência de não ter generosidade nem honra.

Salustiano continuava a rir.

— O senhor se está aí rindo porque se persuade que sempre que estivermos juntos, haverá um senhor para mandar, e uma escrava para obedecer, não é isso?...

— Talvez.

— Sim... talvez ainda por algum tempo, mas um dia...

Aí se interrompeu Mariana, e encarando de perto Salustiano, prosseguiu:

— Qual é porém a razão por que as portas desta casa se hão de fechar a esse mancebo?... tem o senhor concebido algum projeto, diante do qual se levante ele?... que projeto é o seu, portanto? creio que ainda me assiste o direito de fazer tais perguntas.

— E eu tenho a certeza de que não preciso descobrir o alvo a que atiro, para ser satisfeito no que pretendo.

— Ah! senhor! isso é já demais.

— Estou falando, senhora, na suposição tristíssima de que nenhum de nós tem pejo, e somos como dois sicários que tratam de um crime.

— Oh! pois bem, exclamou com violência Mariana; vamos ao fim: pensa que não vejo o que se passa diante de meus olhos?... quer que lhe trace o painel de seu comportamento para comigo, e que lhe exponha seus últimos projetos?... ouça pois.

Salustiano descansou uma perna sobre a outra com inaudito sangue frio, e disse:

— Ouvirei, senhora; note porém que se vai fazendo tarde.

Mariana começou.

— Um acaso funesto, um acontecimento talvez determinado por Deus, para castigo de um crime que eu cometi, depôs em suas mãos um documento que prova esse crime. Quando eu soube que semelhante documento existia em seu poder, foi no meio de uma festa, no seio dos prazeres, dos quais o senhor mesmo me foi arrancar dizendo-me — és minha escrava!... — Oh! eu tremi realmente! e vejo bem que tinha razão de tremer: tremi, porque desde então havia no mundo um homem que possuía o meu fatal segredo; tremi, mas nun­ca pensei que esse homem abusasse tanto, e de maneira tão indigna, de uma pobre mulher sem defesa.

— Vai-se fazendo tarde, senhora, repetiu Salustiano.

— Senhor, senhor; já se não lembra acaso do que conosco se passou nos primeiros tempos de nosso desgraçado conhecimento?... lá nessas sociedades que foram o meu delírio, a minha fascinação; lá nessas assembléias eu me supunha admirada e querida; porque, confessarei tudo, tenho ainda hoje orgulho de ser bela; lá mesmo foi o senhor perturbar meus inocentes gozos; lá ostentou diante de seus amigos que merecia um amor que eu lhe não tinha, que eu lhe não podia dar; lá ostentou ter subjugado, ter conquistado o coração da mulher casada; e eu que observava isso, eu que sentia como as mulheres murmuravam contra mim, e os homens pareciam ter piedade de meu marido; eu que via o monstro da calúnia erguer-se contra minha fama de esposa fiel; eu... eu sorria ou corava, à vista de todos, quando o senhor se aproximava de mim ou me oferecia o braço convidando-me para um passeio; porque, enfim, eu era sua escrava!... Em resultado o senhor era um homem infame e eu uma mulher covarde.

— Vai-se fazendo tarde, senhora, tornou Salustiano.

— Não havia, não podia haver amor entre nós. Desde o primeiro dia em que nos encontramos, eu o aborreci, e o senhor nunca chegou a amar-me. Por que, pois, fazia crer a seus companheiros de devassidão, de orgias, e de calúnias, que eu era pouco fiel a meu esposo e sensível ao seu amor?... não sabe por quê?... o senhor era um homem infame! e eu por que não sabia vencer minha tão grande fraqueza?... por que não mostrava ao mundo, a meu marido, a todos, o homem indigno que zombava de mim e trazia em torturas a minha vida?... eu já disse a razão ainda há pouco: porque eu era uma mulher covarde.

— Lembre-se que é tarde, senhora!

— E agora?... sabe o que se está passando entre nós?... persuade-se de que eu não tenho já adivinhado a razão por que se atreve a exigir que seja expulso desta casa um nobre mancebo, que tem sabido merecer nossa amizade!... escu­te: há uma menina que é bela, bela com todo o esplendor e viço da mocidade; bela ainda mais por sua modéstia, e suas virtudes; uma menina cujo nome o povo abençoa, e que todos como que de ajuste a julgam encantadora. É um coração virgem; e perturbar a tranqüilidade desse coração, ganhá-lo com sua linda inocência, é uma conquista que deve encher de orgulho a qualquer desses moços fátuos e sem moral, que desonram a época em que vivem, fazendo glória da desventura das mulheres. Pois bem: o senhor tem lançado os olhos sobre essa menina, que é minha sobrinha.

— É verdade! exclamou Salustiano; eu a amo!

— Amá-la! oh! não, senhor; não desdoure assim o mais nobre dos sentimentos humanos... um homem vil não ama.

— Senhora!

— Mas, sendo por ora infrutíferos todos os seus esforços, conhecendo que até hoje nenhuma impressão tem feito no coração da modesta virgem, o senhor foi procurar uma coi­sa que explicasse essa indiferença de Celina, e lançou os olhos sobre um mancebo honrado, nobre, cheio de recomendáveis qualidades, que não nos fez ainda um só momento arrepender de o haver recebido em nossa casa. E julgando que esse moço é o único obstáculo a seus pretendidos triunfos, ousa vir aqui exigir de mim que lhe feche as portas de nossa casa! não é isso? não tenho adivinhado tudo?...

— Sim... é isso mesmo: faz-se-me preciso que Cândido não volte mais nunca ao "Céu cor-de-rosa".

— E acredita que Celina será por tal meio menos indiferente à sua improvisada paixão?... ah! senhor, a virtude e um amor santo deram o leite a essa menina. A natureza dela e a sua se repelem; lembre-se que ela é um inocente anjo, e que não há simpatia possível entre um bom anjo e um demônio. E seria possível que nós lhe sacrificássemos mi­nha sobrinha?...

— Eu o pensava, senhora.

— Oh!... tem a vencer primeiro a antipatia de Celina, o aborrecimento do velho Anacleto e o ódio de Mariana.

— E porventura não tenho eu alguma coisa a meu fa­vor?...

— Um dia se há de quebrar essa arma!...

— Senhora, disse Salustiano endireitando-se na cadeira; tenho-lhe escutado sossegadamente; justo é que me ouça ago­ra do mesmo modo.

— Mas vai-se fazendo tarde, senhor.

— A senhora pretendeu ter adivinhado meus sentimentos e não conhece ainda metade deles; quero dar-lhe idéia de mais alguns. Sim, o documento que possuo, me tem colo­cado na posição de senhor e a tem posto na de escrava. E eu, eu que sou rico e feliz, considero-a como uma de minhas riquezas, como a mais interessante carta do meu jogo dos prazeres da vida; e abuse ou não, hei de divertir-me jogando com essa carta, dela me servindo para ganhar as mais difíceis partidas. Sim! ostentei-me seu apaixonado e seu preferido, e o mundo em que vivemos acreditou que eu era amado e feliz.

— Oh! mas isso foi uma calúnia desse mundo, e uma infâmia de sua parte!

— Agora que já por muito tempo gozei a felicidade do parecer amado por uma senhora encantadora, quero realmente ganhar a posse de uma outra não menos bela. Amo, e ame ou não, quero que a "Bela Órfã" seja minha esposa. E sabe quem me há de ajudar nesse empenho?... sabe quem, se preciso for, há de levar a "Bela Órfã" de rastos aos altares, e forçá-la dizer — sim — ao sacerdote?... é a senhora.

— Eu?!

— Sim, porque atualmente eu tenho mais do que o documento de um crime; tenho um sentimento poderoso, por cuja existência e triunfo a senhora há de fazer tudo. Tenho um amor, cujos laços hei de quebrar, se não for ajudado e feliz em minhas pretensões.

— Senhor!...

— Esse amor que não morreu com um viajar de três anos, que resiste ainda, que hoje aparece e se mostra tão belo, tão cheio de esperanças, hei de eu matá-lo, senhora! ...

Mariana não pôde dizer nada.

— Se acaso uma barreira se levantar entre mim e sua sobrinha, eu também saberei levantar uma barreira que separe Mariana de Henrique.

— Senhor!

— Oh! a senhora sabe bem se eu posso, se eu tenho ânimo de o fazer... e eu o farei.

— Sim! sim! eu o sei: o senhor é capaz de tudo.

— E portanto a senhora há de necessariamente coadjuvar-me no meu empenho... por interesse próprio, para que eu não mate o seu amor...

— É muito!

— Para que eu não atire um documento terrível aos olhos do seu amante, aos olhos do público; um documento que a condena como... de que nome quer a senhora que eu me sirva?...

— Senhor!... senhor!...

— Por ora, pois, cumpre-lhe somente despedir desta casa a esse homem que eu detesto. Com razão ou sem ela, ame ele ou não a sua sobrinha, seja ou não amado enfim, eu não peço, eu quero que esse mancebo deixe de vir aos serões do "Céu cor-de-rosa". Senhora, repito a palavra com que co­meçamos a tratar desta questão: — eu o exijo! e pronunciarei depois dessa a palavra que deve terminar todas as nossas discussões doravante: — se não...

— Oh! senhor! retire-se! exclamou Mariana com desesperação; retire-se! deixe-me em paz.

Como dissemos, a porta da sala tinha sido fechada no começo desta conferência.

No momento em que Mariana exclamava — retire-se! — um velho de quimono preto se afastou mansamente detrás da porta, e recolheu-se a um canto do alpendre.

Salustiano, e Mariana despediram-se enfim... como dois sicários que acabavam de tratar de um crime.