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Os Dois Amores/XXV

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A súbita e imprevista retirada de Cândido naquela fatal noite de anos, tinha sido um novo golpe para o coração do velho pai de Mariana.

Anacleto vira sair da sala sua filha pelo braço do mancebo, apanhara um raio de cólera dardejado contra ambos pelos olhos de Salustiano, e combinando estas observações com o desaparecimento de Cândido, parecia-lhe que sua filha, cedendo à inexplicável influência daquele, tinha uma parte qualquer no triste acontecimento.

Muito ocupado com os desgostos e temores que lhe causava Mariana, deixou passar a noite e os dois dias que lhe seguiram, sem desafiar explicação alguma.

Depois do primeiro serão, que teve lugar, passada a noite de anos, um novo pensamento encheu a alma daquele bom pai, que não teve mais tempo de lembrar-se de Cândido.

Henrique viera pedir-lhe formalmente a mão de Mariana. O casamento ficara ajustado, e com geral assentimento determinou-se que se efetuaria antes de um mês.

Na noite do seguinte serão, Anacleto apresentou os noivos a seus amigos; e então lembrou-se outra vez que faltava na sala alguém a quem votava estima leal e bem merecida.

No outro dia chamou Mariana a seu quarto, e interrogou-a seriamente sobre a ausência de Cândido.

A viúva contava que mais cedo ou mais tarde se trataria disso no "Céu cor-de-rosa", e tinha-se preparado para não atraiçoar-se deixando entrever a verdade.

Respondeu a seu pai com segurança e calma. Ela não sabia nada que pudesse ter relação com esse fato; sentia mesmo muito que um moço tão recomendável assim se tivesse reti­rado do "Céu cor-de-rosa".

O olhar penetrante e desconfiado do velho esteve, durante toda a conferência, constantemente fito no rosto de Mariana, e não pôde apanhar o mais leve indício de fingimento. A verdade estava fechada no coração da viúva com uma porta de ferro.

— Estou determinado a ir ao "Purgatório-trigueiro", disse Anacleto olhando sempre fixamente para sua filha.

— Creio que é o melhor passo a dar, respondeu ela sem hesitar.

— Devo pedir uma explicação a esse moço.

— Sem dúvida, tornou a viúva; ninguém melhor do que ele pode esclarecer este mistério.

— Supões que me cumpre esperar ainda alguns dias?... perguntou o velho observando.

— Ao contrário, disse Mariana, penso que meu pai deve ir falar-lhe hoje mesmo.

— Bem... irei esta noite.

A filha de Anacleto apreciava com justeza o caráter de Cândido para temer que ele declarasse o que havia ocorrido; e sobretudo jogava ainda com a probabilidade do silêncio do mancebo, porque, mesmo quando falasse, ela contava com o extremoso amor de seu pai para ser perdoada.

Ao começar da noite Anacleto dirigiu-se ao "Purgatório-trigueiro".

Começou conversando com a velha Irias, a quem pediu explicações a respeito da ausência de seu filho adotivo.

A resposta da velha Irias foi uma e única:

— Ele está lá em cima, e melhor do que eu poderá dizer se teve razões para retirar-se.

Anacleto fez-se anunciar a Cândido.

Quando o moço vinha descendo a escada, Anacleto começou a subi-la dizendo:

— Sou sem-cerimônia, meu caro, e quero antes ir conversar lá em cima.

O velho e o mancebo acharam-se a sós defronte um do outro.

— Adivinha certamente o motivo que me traz aqui?... perguntou Anacleto.

Cândido não sabia fingir, e respondeu:

— Talvez.

— Pois então... ia dizendo o velho.

— Mas, é melhor que o exponha o senhor, interrompeu o mancebo; é possível também que eu esteja enganado, e que nossos pensamentos, que supomos reunidos em uma só idéia, se achem pelo contrário bem afastados um do outro.

— Não; não estão.

— Enfim, sou eu quem deverá ouvir as causas de uma visita que, em todo o caso, muito me lisonjeia.

— Meu caro, disse Anacleto, eu ponho as formalidades e as etiquetas para o lado, quando converso com aqueles de quem sou amigo; e nós o somos.

Cândido abaixou a cabeça em sinal de agradecimento.

— Ou pelo menos, tornou o velho, eu o sou seu.

O moço tornou a repetir com a cabeça o mesmo sinal de há pouco.

— Deixemo-nos pois de longos rodeios, e vamos já ferir de face a questão. O senhor retirou-se de minha casa de um modo singular: de duas uma, ou alguém lá o ofendeu, ou o senhor nos ofende; e em todo caso uma explicação se faz necessária.

Cândido empalideceu a próprio pesar, e ficou pensando.

— Estuda para responder? perguntou o velho.

Com um sorriso fraco e triste respondeu o mancebo.

— Agradeço-lhe, senhor, a delicadeza com que me trata, e o interesse que eu não mereço; mas que, apesar disso, mostra por mim.

— Não se trata de agradecimentos, nem de delicadezas e nem de interesses: o caso é simples, meu caro; alguém o ofendeu em minha casa?...

— Ninguém, disse o mancebo, rindo-se amargamente como há pouco.

— Então como devo eu explicar o que ocorreu. e está ainda ocorrendo?...

— Explique como quiser, senhor; explique pela minha má cabeça.

— Como é isso?...

Cândido pensou alguns instantes e começou depois a falar.

— Eu errei em não ter agradecido, em não haver fugido de aceitar o oferecimento que V. Sa. me fez da sua casa...

— Quê?...

— Ah! senhor! eu direi tudo. Invejar a ventura dos outros é um crime; mas forçar um infeliz a ter diante dos olhos e constantemente o quadro da felicidade alheia, é quase rir de seus tormentos!

— Então...

— Sua casa é um céu de prazeres e... de virtudes; estar porém ali um desgraçado que não pode fruir esses prazeres, e, que, se acaso tem uma ou outra virtude, não a pode mostrar para ser por ela estimado, é o martírio de Tântalo... a causa creio que foi essa; eu me retirei por isso.

— Sr. Cândido, há nas suas palavras alguma coisa que se parece com a ironia, e há no seu coração algum sentimento que quer sair e não pode, porque o senhor impede.

— Não... não... tudo se diz em uma palavra; eu sou infeliz, e tenho consciência de o ser. Além da realidade de meu infortúnio, senhor, a natureza deu-me ambições, deu-me desejos que não posso realizar, e que por conseqüência me atormentam.

— Devo falar-lhe com franqueza, sr. Cândido: entendo que a sua posição na sociedade não é a melhor possível; que seus merecimentos lhe marcavam um lugar mais alto nela. Compreendo mesmo que um moço pobre, que vê o mundo cheio de gozos e delicias que não lhe é dado gozar, tem até certo ponto razão para entristecer-se durante algumas horas; olhe porém à roda de si, sr. Cândido; que número imenso de homens não está aí diante de seus olhos com mil vezes mais razão para lastimar-se?... quantos tiveram como o senhor a felicidade de receber uma educação proveitosa e acurada?... já não é alguma coisa a superioridade da luz do seu espírito?

O moço sacudiu a cabeça, e disse:

— Já confessei que sou ambicioso; e demais, a educação agiganta as privações. O mendigo contenta-se com um pedaço de pão velho para comer, e com um capote feito em pedaços, e com a porta de uma igreja para dormir; mas o mendigo não sonha com a felicidade como sonha o moço que estudou, e que tem imaginação e ardor. Não é ouro o que eu desejo, senhor... a riqueza que eu peço a Deus não é de metal, nem de bilhetes do banco; a minha riqueza é a do coração. Se muitas vezes falo com amargor do poder do dinheiro, é porque me revolto quando vejo acima do talento, da honra e do mérito, o ouro! mas não é o ouro que eu ambiciono.

— Não o compreendo, disse Anacleto.

— O que me acanha, o que me obumbra, o que me faz nascer desejos de fugir para essas florestas virgens de minha pátria, é a pobreza de afeições em que vivo. Ah! Sr. Anacleto!... eu sou o último, o mais miserável mendigo dos melhores amores!.

— Que quer dizer?

— Pois então? como é que um homem como eu não há de sentir apertar-se-lhe terrivelmente o coração, quando, comparando-se com os outros homens, se acha o somenos de todos eles?... pois não há de doer-me o aspecto da felicidade de uma família, comparado com o meu isolamento?... Em sua casa, em toda a parte onde há homens e mulheres, eu vejo um moço brilhante de mocidade, de talento, de ardor e de ventura; pensa que é isso o que eu invejo?... não; também sou moço, tenho também alguma inteligência, e também fogo no coração; o que eu invejo é o olhar de gênio benfeitor, é o olhar de bênção, senhor, com que um velho pai se revive naquele moço; é o carinho, a doçura angélica com que uma terna mãe o festeja; é a doce amizade com que uma boa irmã o abraça; e então, senhor, quando eu penso que nunca cheguei a gozar, nem gozarei um olhar assim de um bom pai, nem um carinho de mãe, nem uma meiguice de irmã, não é verdade que tenho bastante razão para con­siderar-me desgraçado?... não é verdade o que eu digo? não sou eu o último, o mais miserável mendigo dos melhores amores?...

— E o remédio agora, meu pobre Cândido?! disse Anacleto meio comovido.

— Remédio para curar radicalmente a minha dor não há nenhum; para minorá-la é a solidão, é o retiro. Aqui, senhor, no fundo deste quarto eu não vejo essas cenas de felicidade doméstica, não tenho ao vivo diante dos olhos o quadro daquilo que em vão desejo. Ficarei pois aqui, senhor, enquanto esta boa velha carecer de meu braço; desde o momento porém em que ela fechar os olhos, o meu destino é outro.

O moço respirou, e prosseguiu:

— Não conheci meus pais; minha mãe é a natureza; pois bem, irei viver onde a natureza é mais bela, irei adorá-la nos seus vivos encantos. Aborreço a sociedade dos homens. O campo... o vale... a montanha... os precipícios... a floresta virgem... o rio caudaloso é um espetáculo bem belo!... ah! sim! o campo... o vale... os precipícios... a floresta virgem... e o rio caudaloso são meus irmãos; têm como eu por mãe somente a natureza.

Cândido tinha-se exaltado tanto, que Anacleto deixou-o sossegar para continuar a conversação que havia encetado.

— Tem ainda muito fogo, sr. Cândido, disse o velho, é muito moço, e sua imaginação avulta os seus pesares. Respeito-os porque são de nobre origem; mas tenho o direito dos anos para dizer-lhe que pecam por excessivos.

— Embora...

— Procurar ser feliz é ao mesmo tempo um dever do ho­mem.

— Quando há esperança.

— E quem não a tem?... quando foi que ela nos abandonou?... eis-me aqui velho e cansado... eis-me aqui à borda do túmulo com os olhos fitos em Deus, e uma esperança no coração.

O mancebo olhou para o velho.

— Sim! não se admire. Uma grande esperança, e depois desta virão ainda outras. Uma grande esperança, a de ver feliz minha filha.

— Sua filha! repetiu Cândido.

— E então não é uma nobre esperança?

— Bem doce!

— E quem lhe diz que não terá ainda uma igual?...

— Eu não; eu hei de completar o meu destino. Fui arrojado do mundo com desprezo... quando abri os olhos, abri-os entre os estranhos... não conheço os meus; eu sou — só; — compreenda bem esta palavra, sr. Anacleto; é uma palavra, um nome de duas letras que revela toda a minha história, o meu passado, o meu presente, e o meu futuro — só! — completarei a minha sina. Farei a viagem do mundo sem um companheiro do meu sangue — só!... sempre só!...

E como se essa palavra tivesse realmente a significação que lhe ele dava, como se ela fosse a sua divisa, Cândido ainda uma vez repetiu com voz sonora e profundamente melancólica:

— Só! — sempre só!

Mostrou-se Anacleto impaciente; e, depois de coçar a cabeça por vezes, tornou:

— Não temos feito nada, meu caro. Vim aqui saber a razão por que deixou de ir à minha casa de um modo tão singular; e já temo bem retirar-me sem levar explicação alguma.

— Porventura não tenho eu dito bastante? esse ato é filho de uma excentricidade minha.

— E no entanto o que pensarão de nós ambos os nossos amigos?...

— Os seus amigos podem pensar o que quiserem a meu respeito: para mim é isso indiferente.

— E para mim?...

— O senhor lhes dirá que eu sou um louco, que me condeno a um inferno que eu mesmo tenho criado para atormentar-me. O senhor lhes dirá se quiser: "Aquele moço tem uma cabeça desarranjada, deixa a nossa sociedade agradável... obsequiadora e feliz, pela solidão e pelo isolamento: ele quer estar só... sempre só".

— E se eu lhe rogasse que de novo freqüentasse a minha casa?... tomasse parte nos nossos prazeres?... fosse de novo um de nossos mais constantes companheiros dos serões?...

— Eu teria o imenso pesar de não poder servi-lo, respondeu com tristeza indizível o moço.

— Paciência, disse Anacleto; resta-me ao menos a convicção de que nunca o ofendi voluntariamente, e que fiz tudo o que estava de minha parte para provar-lhe a estima em que o tenho.

O velho ergueu-se pesaroso e quase ressentido.

Cândido apertou-lhe a mão com ardor, e disse:

— Não me desestime por isto... creia que o que faço, é o que devo fazer; creia que o que eu disse, é o que eu devia somente dizer... e o senhor, que é um dos poucos homens cuja mão me tem sido oferecida com lealdade e franqueza, sinta por mim antes piedade do que ressentimento.

— Serei o mesmo sempre; respondeu o velho dispondo-se para sair.

— Uma palavra ainda.

— O quê?... perguntou Anacleto.

— É um novo obséquio que lhe quero pedir. Provavelmente minha ausência tem admirado também a sua família

— Sem dúvida.

— Eu lhe rogo que em meu nome lhe ofereça minhas desculpas, e em particular à senhora sua filha. Quisera que ela tivesse conhecimento da obsequiosa visita que recebi: do que se passou entre nós, e do que enfim julguei dever responder, explicando o meu procedimento.

O velho olhou para Cândido como desconfiado do motivo desta última recomendação.

— E a ela, e a todos, senhor, que possam mostrar-se curiosos das causas de minha irrevogável resolução, poucas palavras bastam para explicá-la, e para arredar de sua pessoa e de sua família a menor suspeita de uma ofensa ainda involuntária feita a mim, é de sobra dizer: "ele completa a sua sina — só... sempre só —".