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Os Dois Amores/XXVI

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Era na tarde de domingo.

Anacleto e Mariana, obrigados a ir fazer uma visita de etiqueta, tinham acabado de sair para voltar antes de duas horas.

Celina e Mariquinhas subiram ao segundo andar e entraram no quarto da primeira.

Sentaram-se defronte uma da outra, junto da pequena mesa sobre a qual escrevera a "Bela Órfã" no dia antecedente.

Estavam ambas as moças vestidas de branco, e eram ambas muito bonitas. Celina, porém, mostrava-se meio perturbada e confusa; apoiou o cotovelo na mesa, descansou o rosto na face palmar da mão, e fechou um pouco os olhos como se quisesse dormir.

Era Mariquinhas três anos mais velha que a "Bela Órfã", tinha dezenove anos; mas dera-lhe a natureza, com um gênio alegre e brincador, com uma tendência para faceirice e ambição de agradar, tanto talento, tanta viveza e tão fino instinto para viver no mundo e conhecê-lo, que pouco mais de quatro anos de vida de assembléias, de teatros e de reuniões tinham sido de sobra para ela dissecar a sociedade e suficientemente apreciá-la no que na sociedade há de relativo a uma moça bonita e solteira.

Mariquinhas tinha mesmo orgulho do que ela chamava — sua experiência. Discernia com suma habilidade a simples delicadeza do galanteio, o galanteio da paixão que se improvisa, e a paixão que se improvisa do verdadeiro amor.

Com sua experiência, pois, ela adivinhara que Celina estava já pagando o seu tributo de coração; e vindo nesta tarde ouvi-la confidencialmente, não quis esperar que sua amiga começasse a falar.

Conheceu que a "Bela Órfã" se achava perturbada e vergonhosa; e, querendo antes levá-la sem sentir ao principal objeto que as reunia do que começar logo a tratar dele, dirigiu-lhe a palavra em primeiro lugar:

— Estamos aqui mais à vontade, d. Celina; creio que ninguém nos virá perturbar...

— Ninguém...

— É que as moças têm mais necessidade de conversar em segredo do que os homens; creio mesmo que de cada vez que uma moça solteira fala à vista de muita gente não deixa decorrer seu perigo.

— Mas por quê?...

— Ora... porque vivemos em um mundo notável, principalmente por suas contradições a respeito de nós outras. Dizem que somos fracas e frágeis; por conseqüência não é verdade que deveria haver muita desculpa para nossos erros?...

— Sim.

— Pois a nós é que se não perdoam tênues faltas; uma leviandade é quase um crime. E às vezes uma simples palavra dita com a maior inocência deste mundo desafia escarcéus tais, que é melhor não falar, d. Celina.

— Oh! parece que é assim.

— Ah! os homens e as mulheres!... olha; as aparências são em verdade todas em nosso favor. Somos flores que se cultivam, belas estátuas que se admiram, lindas santinhas que se adoram... nas aparências, d. Celina.

— E a realidade?

— Oh!... isso é outra coisa. Os homens entenderam lá a seu modo a teoria das compensações; bem vês que nos não podiam dar tudo... guardaram o bom para si. Ninguém os chamará tolos por isso.

— E nós somos então...

— Ora... nós?... nós somos o que eles querem que nós sejamos; também!... olha, d. Celina, durmo todas as noites com um sossego que não há igual.

— E todavia ninguém dirá que isso se passa assim.

— Em parte nós temos a culpa.

— Como?

— Com sistema, com arte, mesmo com esta nossa fraqueza, nós poderíamos, apesar de tudo, valer muito, e conservar um poder que fazemos por abandonar. Eu sou moça, mas observo; às vezes quando me rio, estou pensando bem seriamente.

— E o que observas?... no que pensas?...

— Observo o sistema de vida que seguem minhas camaradas logo que se casam, e penso que eu havia, que eu hei de seguir um outro bem diverso.

— É um segredo que guardas para ti só?...

— Não, eu o quisera dizer a todas as do meu sexo; ou me engano muito, ou faríamos uma revolução; d. Celina, eu sou reformista... quero a reforma do sistema doméstico.

— Como é isso?...

— Eu te vou dizer.

— Espera... disse a "Bela Órfã" erguendo-se; não sentiste chegar alguém à porta do quarto?...

— Não... mas vai ver sempre.

Celina chegou à porta, olhou para um e outro lado, não viu ninguém.

— Enganei-me, disse ela sentando-se de novo; fala agora, eu te escuto.

Mariquinhas começou a discorrer:

— D. Celina, eu não quero falar de uma moça que vive pobremente em solteira, e vai pobremente viver depois de casada cercada de privações e de filhos. Para essa, a misericórdia de Deus e a virtude, e gratidão de seu marido. Essa, coitadinha, já está por si mesma na posição em que mais se sofre física e moralmente, por si e por seus filhos. Eu quero somente falar naquelas que, podendo conservar-se de cima, no seio da felicidade, lançam-se por terra aos pés do infortúnio.

— Pois bem, disse Celina.

— Uma jovem senhora, bonita, moça como tu, ou como eu, que não é rica, mas que também não é pobre, que teve educação, que se estima, que é delicada, e que deseja fazer-se amar: o que faz ela?...

— O que faz ela?... perguntou Celina repetindo a frase de Mariquinhas.

— Encontrou um mancebo ardente, extremoso e belo; simpatizam ambos; falemos agora a verdade, d. Celina, como procede a moça? defronte de seu toucador empenha todos os esforços para se tornar mais bela, seus cabelos estão sempre atados primorosamente... há perfumes nos seus vestidos, fogo em seus olhos, graça em seus sorrisos, espírito em suas palavras, amor em toda ela, diante dele canta apaixonadamente; para agradar-lhe estuda com fervor a música, o desenho, a literatura, a dança, tudo; consegue o belo triunfo, faz de um namorado um escravo; seus pais aplaudem a escolha de seu coração... esse homem é enfim seu marido.

— E depois?...

— Depois?... essa moça não se lembra mais que a paixão esfria... oh! é incrível!... ela mesma trabalha involuntariamente por esfriá-la. De manhã seu marido a vê com os cabelos desgrenhados diante dele, erguendo-se do leito com os pés nus... o piano passa fechado meses inteiros... o canto lhe desagrada... o desenho a aborrece, ela não lê mais, não sorri, nem olha, nem fala, como sorria, olhava e falava dantes. E, se alguém lhe lança em rosto essa metamorfose, ela responde: "Consegui o que queria, o pássaro já está preso". E a louca não pensa que o pássaro que pretendeu foi o amor desse homem, pássaro que vai fugir bem depressa.

— É assim, disse a "Bela Órfã".

— Entretanto, continuou Mariquinhas, acontece o que devia acontecer: o coração do marido espanta-se daquela repentina mudança; procura ver de novo a bela moça de lindos cabelos, de escolhidas vestes, de olhar de fogo, de espirituosas palavras, de gracioso sorriso; e achando pelo contrário uma menina descabelada, sem graça, sem espírito, sem arte mesmo, recua... esfria, e às vezes desanima; e então grita a mulher contra a inconstância do homem. Falemos outra vez a verdade, D. Celina, o homem não tem culpa... a mulher que ele amava não é certamente essa, que então assim se lhe mostra.

— Oh! tens razão; é assim mesmo, exclamou Celina.

— E depois, qual é a vida que vive daí por diante a esposa?... uma vida de mentiras e de fingimento nas assembléias, e de frieza ou de indiferença em casa. Em casa toma a posição de criada grave de seu marido; por suas mãos a toma. Tem por prazer a costura, e por ofício determinar o almoço, o jantar e a ceia. Quando o marido chega da rua ralha com ele... quando o marido sai ralha com os escravos; donde lhe veio esse mau humor?... do ciúme!... acredita que já não é amada!... quem teve culpa disso?... ela mesma, que se fez outra.

— Continua, d. Mariquinhas.

— Ora agora, prosseguiu a moça, eu acho tão fácil, tão belo, tão nobre seguir-se uma vida absolutamente oposta a essa!... uma vida que faria ao mesmo tempo o encanto do marido e a felicidade da mulher.

— Dize... dize.

— Mesmo depois de casada, a moça não se enfeita com esmero para ir a uma assembléia?... quais são os pensamentos que a ocupam quando ela está defronte do toucador?... Dois, principalmente: primeiro, não ser sobrepujada, não parecer menos bela que as outras senhoras; este sentimento nasceu conosco, e nos acompanhará em todas as épocas de nossa vida; o segundo, é o desejo de agradar, por que, sem ofender nem levemente sua pureza de esposa, uma senhora pode querer, e quer agradar. Pois não é, d. Celina, uma contradição indesculpável, um erro que custa a defender, o esmerar-se uma senhora casada em agradar, em parecer bela aos outros, e esquecer-se, e não fazer um só esforço para mostrar-se bonita aos olhos de seu marido?...

— Sem dúvida; sem dúvida.

— A moça que acaba de casar-se, não tem necessidade de mudar muito em suas relações com o homem que recebe por marido. Seu melhor empenho, seu maior triunfo estaria em continuar a ser a namorada de seu esposo. Pode parecer que seja isso muito difícil, mas eu não o creio.

— Então como? fala.

— Por que não há de a moça empenhar para prender seu marido os mesmos meios de que ela se serviu para encadeá-lo quando se amavam solteiros?... quando de manhã aparecer-lhe, apareça-lhe penteada, vestida com simplicidade, mas sem negligência, com seu vestido apertado, fresca, louçã e bela, que, ou eu me engano muito, ou ganhará um abraço de seu esposo; gostava ele de ouvi-la cantar?... pois cante ainda, e cada vez mais aprimore sua voz. Dava-lhe prazer o piano? a harpa?... pois estude novas músicas, e em relação com o gosto do homem que ama; e converse com ele como dantes, meiga e pudibunda, e ao mesmo tempo amorosa; e, finalmente, sem deixar-se cair no ridículo (que seria então muito pior), obrigue a seu marido a ser ainda seu namora­do à força de namorá-lo. Seria isto um impossível?...

— Eu não sei, mas, fala ainda.

— E sobretudo o pudor, d. Celina!... o pudor da senhora casada não deve diferir muito do pudor de uma virgem; de cada vez que uma esposa se veste diante de seu marido, per­de um ano do fogo de amor.

— Oh! deve ser assim!

— O amor vive de mistérios, de imaginação, de segredos, de véus, de dificuldades, de oposição e de fogo; a realidade é fria como o gelo, a realidade o mata; a esposa deve aparecer aos olhos do esposo sempre pudibunda e recatada. Esse pudor, esse recato, esse rosto que cora, é uma espada cujo gume não se dobra nunca; assim ela será sempre bela, sempre nova para seu marido, cuja imaginação lhe dirá que ele não a compreendeu toda ainda, que o seu tesouro de inocência é inesgotável... e o amor não se há de acabar nunca, se na mulher houver sempre esse pudor que arremeda o da virgem, e no esposo houver sempre esse respeito que jamais falta a um homem delicado. O rubor da face de uma moça é tudo; uma senhora que cora ouvindo votos de amor de seu marido, não pode recear nem frieza, nem indiferença.

— Oh! D. Mariquinhas, exclamou Celina muito seriamente, d. Mariquinhas, tu és sábia.

Escutando a ingênua exclamação de Celina, Mariquinhas desatou a rir.

— Então eu te faço rir?...

— Pois então?... não me chamaste sábia?

— Mas é que tu dizes coisas que devem ser bem verda­deiras.

— Estimo que te aproveitem.

— A mim?

— Sim, algum dia poderão aproveitar-te.

A "Bela Órfã" sacudiu tristemente a cabeça e respondeu:

— A mim, não.

— E por quê?...

— Porque eu não me hei de casar.

— Ah! queres ser freira? tens vocação para o claustro?

Celina abaixou a cabeça.

— Dizem os homens que as moças têm duas maneiras muito notáveis de responder afirmativamente; que quando abaixam a cabeça e guardam silêncio, ou quando respondem simplesmente — não sei, — querem dizer que sim; mas eu sou capaz de jurar que desta vez tu, abaixando os olhos, d. Celina, quiseste dizer que — não.

— Começas a gracejar?

— Não, Deus me livre; a tarde deve acabar como principiou, séria e filosófica. Olha, d. Celina, há pouco me chamaste — sábia; — agora eu digo que somos duas filósofas. Quem nos ouvisse teria de achar-nos bem modestas.

— D. Mariquinhas!

— Vamos ao que importa: eu te fiz uma pergunta, e não quiseste responder-me; hei de arrancar-te a resposta à força. Fizeste há poucos dias dezesseis anos, d. Celina; eu sou mais velha três anos...

De repente começou Mariquinhas a rir-se muito.

— De que te estás rindo assim?

— Ora... de uma coincidência.

— Qual!...

— Tu hás de ser toda tua vida uma pobre inocentinha, e em toda tua vida precisarás de uma mestra bem complacente.

— Começas outra vez?

— Não, é verdade. Lembra-te que na noite em que fizeste treze anos, aqui, neste mesmo quarto, uma boa amiga foi tua mestra, e te explicou com bastante habilidade o que era certo sentimento que ignoravas; o que era amor.

— Oh! que bom tempo! disse Celina suspirando.

— E hoje, neste mesmo quarto, uma outra boa amiga tua te está dando lições de filosofia amorosa.

— Acabaste já?...

— De falar sobre a coincidência, acabei, mas agora vou tratar do que muito nos importa.

— Pois fala; mas não gracejes.

— Tens dezesseis anos, d. Celina, continuou Mariquinhas; és bonita, mesmo bem bonita, deram-te muitas prendas, deves ser sensível, e por conseqüência não te achas com voca­ção para o claustro.

— Por quê?...

— Porque já sabes o que é amar um homem, porque muitos cavalheiros sem dúvida já se prostraram diante de ti, já te juraram um amor imenso... desesperado... eterno... que há de passar além da morte; já te declararam muito positi­vamente que tua indiferença é capaz de matá-los...

— Oh! basta... que quer dizer isso?

— Quero dar-te um conselho de amiga.

— Qual?...

— Que não tenhas medo de que esses senhores se deixem morrer por tua causa.

— Ora, d. Mariquinhas...

— Que não acredites neles...

— Certamente que não.

— Escuta: quando um homem se chegar a ti e começar a fazer o elogio de tua beleza, como se fosse um poeta que recitasse um cântico, e depois a jurar amor, constância, paixão e ardor por toda a eternidade, desconfia dele; os homens que mais falam são os que mais mentem.

— E os que não falam?... perguntou Celina.

— Esses não dizem nada, respondeu Mariquinhas com in­genuidade.

— Ora, tornou a "Bela Órfã" com um movimento de desagrado, disso já eu sabia.

— Então o que é?...

— Dizes que não devemos acreditar naqueles que falam muito e juram sempre; bem. E naqueles que de longe nos olham medrosos... tristes... modestos... mas que nos olham com fogo, e que abaixam a cabeça quando suas vistas se encontram com as nossas?

— Esses, respondeu Mariquinhas, das duas uma, ou amam deveras, e pela primeira vez na vida, ou são piores que todos, são hipócritas.

Fez a "Bela Órfã" um novo movimento de impaciência.

— E como distinguir?... perguntou ela.

— Estudando-os em seu proceder.

Celina calou-se.

— Tu tens uma história para me contar, disse Mariquinhas abraçando-a.

— História?...

— Sim: a história de um moço triste e modesto que te ama, que nunca te falou de amor, mas que te olha com olhos de fogo.

A "Bela Órfã" corou.

— Somos duas amigas... quase da mesma idade; que pejo é esse?

— Eu não sei.

— Fala.

— Não ouviste outra vez rumor à porta?

— Qual! é a tua imaginação.

— Vou ver sempre.

Celina foi de novo à porta do quarto; olhou para um e outro lado, e não viu ninguém.

— Fala agora.

— Ah! D. Mariquinhas! exclamou Celina caindo nos bra­ços da amiga; eu sou bem infeliz!...