Os Dois Amores/XXXVI
Rodrigues estava no seu posto, no alpendre.
Achava-se sentado e meditando em um canto dele.
A sua mão esquerda via-se meio cerrada a porta de seu quarto.
De repente entrou no alpendre, apressado e arquejando de fadiga, um homem que trazia as vestes em desordem, e pintada no semblante a mais viva agitação.
O velho Rodrigues ergueu-se surpreendido, e dando dois passos para o recém-chegado, exclamou:
— João!
A personagem que acabava de entrar atirou o chapéu a um canto, e sentou-se na cadeira, da qual se tinha levantado Rodrigues.
Esses dois homens eram os mesmos que em certa noite Jacó vira sentados e conversando à portaria do convento da Ajuda.
Vistos agora à luz do dia e ao pé um do outro, admiraria a semelhança de seus semblantes. A única diferença que se podia notar, era ser João muito mais sangüíneo.
João e Rodrigues eram irmãos gêmeos.
— João! exclamou de novo o velho guarda-portão; que é isso?... o que tens?...
— O que tenho?... respondeu o antigo agente da casa de Salustiano; tu me perguntas o que tenho? é a raiva dentro do coração; é a vingança inspirando projetos infernais.
— Mas como?... fala!...
— Disse tudo.
— Porém vingança contra quem?
— Contra o falsário... o ladrão! murmurou surdamente João.
— Oh!...
— Sim... contra ele.
— É filho dele! disse com voz repreendedora Rodrigues.
— E também filho dela!... acrescentou lugubremente João.
— Embora! tornou o primeiro: juramos protegê-lo, lembra-te.
— Sim... sim... disse o outro com terrível acento: protegê-lo... amá-lo... ainda que ele te pise com suas botas, e te cuspa no rosto! não?!
— Como é isso?
— É assim mesmo.
— Pois ele ousou...
— Tudo, respondeu João com voz surda.
— E tu?
— Tenho sessenta anos... já não sou o mesmo; antigamente atacava cara a cara, e vencedor ou vencido, tudo estava acabado, acabada a luta. Hoje não: estou velho... minhas juntas se acham enferrujadas... lutei com um mancebo, e ele ganhou a partida; mas agora também o caso é outro... não esqueço como dantes. O forte pode bater-se braço a braço; o fraco espera atrás de uma esquina!
— João!
O irmão de Rodrigues soltou uma gargalhada nervosa e horrível; uma dessas gargalhadas filhas do furor e do desespero.
— João! queres ser um vil assassino no fim de teus dias?
— Não! bradou o outro, não!... pois é só atrás das esquinas e com a faca, com a arma da traição que se vingam os fracos?... outra vez não! eu quero estar livre... quero passear à minha vontade pelas ruas!... oh! quem sabe se eu não terei de cumprimentar um galé? ...
— João!...
— Sim; já o disse: vê-lo-ei com prazer arrastando as cadeias dos criminosos públicos!... não pertence ele de direito ao seu número?... sim; pertence... cometeu um crime vergonhoso.
— Graças a Deus, João, o fogo consumiu as provas dessa loucura.
— Graças a Deus, Rodrigues, as provas existem ainda, e eu hei de apoderar-me delas.
— Que estás dizendo?... é verdade o que acabas de dizer?.
— Sem dúvida.
— Como chegaste a saber disso?... como hás de conseguir.
— É o segredo da minha vingança.
— Nada de vingança, irmão.
— Fui ofendido demais.
— Conta-me o que houve, eu te escuto.
— Para quê?...
— Quero aconselhar-te, João.
— Eu não vim pedir-te conselhos.
O velho Rodrigues deixou cair a cabeça tristemente, refletiu alguns instantes, e depois perguntou:
— Com que fim pois vieste ver-me?
— Tenho que dizer-te.
— Fala.
— Meu irmão, até hoje de manhã um só pensamento nos ocupava. Doravante nossos desígnios são distintos. Até hoje pensávamos somente em fazer bem. Tu continuas sempre com a mesma idéia, eu porém estou determinado agora a fazer mal.
— Adiante, disse Rodrigues.
— Vim pois dizer-te o que descobri, o que sei, o que pretendi, e não pude fazer, para que tu fiques trabalhando para completar a obra que começamos juntos, e que pela minha parte não posso levar ao cabo.
— Então o que há?
— Salustiano está com efeito de posse da décima segunda carta.
— Decerto?
— Eu a vi.
— Tu?...
— Eu a li... tive-a em minhas mãos!
— Oh!...
— Trabalhávamos eu e ele em seu gabinete particular. Anunciou-se um homem que tu conheces bem, e ele quis ficar a sós com esse homem. Desci. Meia hora depois os dois desceram por sua vez, e eu subi de novo... a porta do quarto de Salustiano estava aberta, entrei... a carteira velha tinha a chave na fechadura, abri-a... toquei no segredo da primeira gaveta do lado esquerdo, e a décima segunda estava lá!...
— Bravo! bravo!... exclamou o velho Rodrigues, sem lembrar-se do que antecedentemente lhe dissera seu irmão.
— Enfim!... exclamei eu, continuava João; e abrindo essa carta fatal, li-a de novo; mas quando já guardava-a no bolso... uma voz terrível soou a meus ouvidos, e um braço forte veio deter meus passos.
— Ah!...
— Era ele, Rodrigues; e durante algum tempo lutamos ambos desabridamente... enfim a mocidade venceu...
— A carta?
— Ficou outra vez em suas mãos!
— Oh!...
— Os pés do mancebo pisaram o rosto do velho!...
— E a carta?... a carta?... exclamou Rodrigues.
— Está lá.
— Insolente moço!... e ele não tremeu?
— Tem ouro.
— Oh! desgraçado!...
— Sim... desgraçado... imprudente!... ele há de tremer, porque eu me hei de vingar.
O velho Rodrigues deixou cair de novo a cabeça, e pareceu abismado em profundas reflexões.
João ficou olhando para ele e refletindo também.
Ambos aqueles velhos meditavam; o primeiro pensava nos meios de chegar a uma completa harmonia; o segundo sonhava com a vingança.
Levantaram a cabeça ao mesmo tempo. Rodrigues exalando um longo suspiro. João desprendendo um surdo gemido.
Era o acordar da paz e da guerra.
— João, disse Rodrigues, sabes de quem me estava lembrando?
— Não; de quem?
— Dele.
— Do insolente?
— De seu pai, João.
— E eu de sua mãe, Rodrigues.
— João, perdoemos aqueles que estão na eternidade.
— Sim, mas castiguemos os maus que pesam neste mundo.
O velho Rodrigues sacudiu a cabeça, suspirou de novo, e depois cruzando as mãos sobre o peito, disse com voz terna e comovida:
— João, pela memória do nosso bom amigo perdoa a injúria que recebeste de seu filho.
João conservou-se muito tempo em silêncio olhando para seu irmão, que, melancólico e piedoso, tinha ainda as mãos cruzadas sobre o peito, como se estivesse orando.
— Rodrigues, murmurou enfim o velho, esse atrevido mancebo calcou o pé sobre o meu ventre!
Por única resposta duas grossas lágrimas correram pelas faces enrugadas do velho guarda-portão.
— Que é isso, homem?... perguntou João.
— Não é nada, respondeu Rodrigues; isto não é nada... choro... há bem tempo que não o faço.
E depois balbuciou dolorosamente:
— Pobre amigo!... está morto!... não pode valer a seu filho...
E as lágrimas começaram a cair-lhe de quatro em quatro.
Alguns momentos depois os dois velhos choravam juntos e abraçados um com o outro.
— Perdoas-lhe, João? perguntou finalmente Rodrigues.
— E esse pobre Cândido, irmão?!
— Devemos fazê-lo feliz, é verdade.
— Mas aquela carta...
— Podíamos prescindir dela; porém nesse caso teríamos uma mulher desgraçada... e criminosa.
— Que nos importa... é um castigo.
— Não, de modo nenhum, João; eu espero ainda tudo da Providência.
— Bem, crês então que devemos cruzar os braços?
— Também não; escuta: eu vou falar a esse presumido moço que te insultou.
— E para que fim?... que lhe irás dizer?
— Contar-lhe-ei ainda uma vez a nossa história.
— Rir-se-á dela.
— Lembrar-lhe-ei o crime que cometeu...
— Zombará de ti, Rodrigues.
— Hei de assustá-lo com teus projetos de vingança.
— Rir-se-á de novo.
— Exigirei por preço de nosso silêncio e como condição para vencer o teu ressentimento, a entrega da carta fatal.
— Mandar-te-á lançar na rua pelos seus escravos.
— Não, João; ele há de entregar-me a carta.
— Nada conseguirás.
— Nesse caso justiça será feita.
— Bem.
— Adeus, João; dentro de duas horas estarei de volta.
— Eu te espero, respondeu João.
O velho Rodrigues tomou o chapéu e dirigiu-se à casa de Salustiano.