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Os Dois Amores/XXXVII

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Pouco mais ou menos à mesma hora em que o velho Rodrigues se dirigia à casa de Salustiano, uma escrava desceu do segundo andar do "Céu cor-de-rosa", e entrando na sala do primeiro, onde se achava Celina, disse-lhe que sua tia pedia-lhe se podia subir ao seu quarto para dar-lhe umas palavras.

— Diga-lhe que já vou, respondeu a "Bela Órfã".

E, pouco depois, subiu a escada vagarosamente, e pensando no que poderia ter dado motivo para tal conferência.

Celina não podia aborrecer a ninguém; mas, desde que soubera da cena, que no jardim tivera lugar entre Mariana e Cândido, começara também a desconfiar muito de sua tia.

Mariana estava em seu quarto, pálida, abatida e pensava, sentada em uma cadeira de braços. O franzimento de sua fronte, seus olhares às vezes amortecidos, às vezes pasmos, e sempre cravados no chão, e finalmente um não sei quê descuido em seu penteado e em seus vestidos pareciam revelar que uma dor profunda e transidora a atormentava.

Também as ricas e grandes senhoras padecem no fundo da alma! por detrás desses brilhantes adereços e custosas jóias, que lhes ornam e cobrem o colo, está às vezes aberta uma ferida que lhes vai até o âmago do coração; e esses lábios que sorriem tão graciosos, estão mil vezes a ponto de ser desmentidos pelo pranto dos olhos; e essas palavras de prazer e felicidade, que se dizem nas assembléias, fazem às pobres míseras que as pronunciam uma acerba e terrível ironia! elas rindo-se tanto e tão à força, e sendo tão desgraçadas na alma! Dourado vaso, que encheram de fel, cofre aprimorado, que esconde perigoso arcano... aí tendes a imagem de todas essas que são como Mariana.

Escravas sempre da vaidade, as mulheres acham sempre na vaidade os seus tormentos e o seu castigo. Lutam anos inteiros umas com as outras, e têm por armas os vestidos e as jóias, os sorrisos e os olhos. E uma se dói, recebe um golpe cruel somente porque o vestido da outra é mais belo; e não dorme uma noite inteira porque apareceram uns olhos pretos que valem o dobro dos seus!... mas isto é nada; o que é tudo é a vaidade dos sentimentos, que obriga a rir com o céu nos lábios tendo o inferno dentro do coração; que obriga a fingir-se venturosa quando se é desgraçada!... Estar em torturas, e dizer — sou feliz! — enganar o mundo por causa do mundo, e para ser invejada e não parecer vencida, nem mesmo nos mimos da fortuna!... tanta riqueza vestindo tão grande miséria!...

Deve ser bem amargosa vida!...

Porém Mariana sentiu que subiam a escada e conheceu as pisadas de sua sobrinha. Imediatamente uma revolução completa se operou nela; sua fronte desenrugou-se, seus olhos ergueram-se e brilharam. Em um momento, e com toda essa habilidade que caracteriza as senhoras, fez desaparecer todos os descuidos de seu toilette, e enfeitou os lábios com um sorriso angélico. Era, embora sua sobrinha, uma moça bela, e portanto uma rival que chegava. A mulher infeliz e abatida cedeu o lugar à senhora das festas e dos prazeres; a verdade foi abafada; a mentira ergueu-se.

Celina entrou, Mariana mostrou-lhe com o dedo, e com graça indizível, uma cadeira defronte dela; e, vendo-a assentada, esteve por alguns momentos contemplando-a com expressão de enlevamento e prazer, até que a "Bela Órfã", como para escapar àquele olhar, perguntou:

— Por que me está olhando assim, minha tia?...

— Oh! porque tu és a minha vaidade, Celina! Olha, quando te contemplo... lembro-me do que fui... parece-me que ainda estou nos dezesseis anos defronte do meu toucador, rindo-me vaidosa e louquinha, contente de mim mesma mãe e namorada de meus próprios encantos.

— Senhora...

— Não é verdade que dizem por aí que eu fui bem for­mosa?

— Dizem que minha tia ainda o é.

— Lisonjeira!... oh! mas enfim, eu conheço que não devo assustar a ninguém.

— Então...

— Todavia os dezesseis anos! os dezesseis anos! nesse tempo se está na flor da vida e no viço das graças! ninguém é feio aos dezesseis anos!

Depois de alguns instantes de silêncio a viúva prosseguiu dizendo:

— Para mim a vida de prazer e de encantos está em vésperas de acabar; para ti é agora que começa. A primavera da idade com esse rosto tão belo, com esse olhar tão puro, Celina, faz sempre as delícias da mulher. Ainda não sentiste que para ti são guardadas todas as atenções?... ainda não notaste como te olham ardentes, como te falam tremendo, como te escutam em êxtase? Celina, aí está a prova solene de tua formosura. A moça bela é o delírio do mundo. Ah! que se aos dezesseis anos tivesse a mulher a experiência dos trinta, então com a beleza conseguiria tudo... honra... fortuna... posição... tudo!...

— Ainda bem, minha tia, que as moças não são ambiciosas.

— Não, não o são. O amor as ocupa demais para que elas o fossem. Embriagadas com os deleitosos perfumes que vêm arder a seus pés; cheios os ouvidos de verdades e de lisonjas; a cada passo que dão ouvindo uma exclamação de agradável surpresa; no teatro sentindo cem óculos lançados sobre seus rostos; em toda parte vendo adoradores escravos; e em breve tendo mesmo já no coração uma simpatia que vai crescendo e acaba por amor; elas não têm, elas não podem ter outra idéia que não seja a de ser belas, outro desejo que não seja o de ser amadas, e outro futuro que não seja tudo esperado de um amor com que elas sonham de dia e de noite, e que, desgraçadamente, não se realiza nunca.

— Nunca?...

— Nunca, Celina.

A "Bela Órfã", suspirou involuntariamente.

— Já suspiras, Celina?... quem sabe se eu não estive fazendo o teu retrato?... pois bem; sou tua tia... quase tua tutora, e portanto devo aconselhar-te; mas para bem fazê-lo preciso é antes ganhar uma confiança de que ainda não me julgaste merecedora, entrar no teu coração, ver o que nele se passa, para depois dizer o que convém.

Mariana, fingindo ignorar o segredo de amor de sua sobrinha, queria levá-la pouco a pouco a um fim que tinha no pensamento, e pelo qual promovera aquela conferência.

Porém Celina desconfiava de sua tia; guardou mais que nunca o seu segredo, e nada respondeu.

— Então ficas muda?... perguntou a viúva. Será possível que penses em fazer-me crer que ainda não sonhas belos sonhos de amor, tendo já dezesseis anos de idade?...

— Muito moça ainda, não é assim?

— Por certo que não és nenhuma velha; e contudo estás em idade de casar.

— Tão cedo?...

— Não no nosso país, Celina, onde tudo é rápido e precoce. Enfim, eu sou tua tia, meu pai é teu tutor, e por dever santo e respeitável devo procurar para ti um estado... uma posição.

— Obrigada, minha tia.

— Temos entendido que é tempo de te casar, não só para fazer a tua ventura, como para completar a nossa missão e conseguir o nosso sossego.

— Para o vosso sossego... eu creio, mas para minha ven­tura!...

— Para tua ventura também, sim; e graças a Deus, meu pai e eu não somos duas crianças como tu és, Celina.

— Por que, minha tia?

— Porque, na questão da escolha de um marido, tu cortarias todas as dificuldades com o coração, e nós decidiremos tudo com o juízo.

— Ah! sim!...

— Um marido é o homem que deve acompanhar-nos toda a vida...

— Provavelmente, minha tia.

— O homem de quem tomamos o nome, a posição e as amizades.

— Eu o pensava já.

— E portanto, quando se trata de uma escolha dessa natureza, toda a prudência se faz necessária.

— Sem dúvida.

— Nós queríamos para teu marido um moço bonito, de boas qualidades, de bom nome e de boa fortuna.

— Às vezes é difícil achar-se tanta coisa junta.

— Tivemos a felicidade de encontrar um que preenche nossos desejos...

— Ah! então já, minha tia?... sem que eu ao menos o suspeitasse?

— É verdade; um interessante mancebo veio pedir-nos a tua mão.

— Realmente foi um pouco apressado... nem ao menos procurou conhecer a minha opinião.

— Já sabes quem é?...

— Não, senhora.

— Vê se adivinhas.

— Não pretendo incomodar-me com isso.

— Por quê?... perguntou Mariana, que se ia impacienetando um pouco.

— Por nada, minha tia, respondeu secamente a "Bela Órfã".

— Estás zombando comigo, Celina?...

— Não, minha tia.

— Queres que te diga o nome desse moço?...

— Se lhe parecer conveniente.

— É o sr. Salustiano.

— Ah!

— Tens que dizer alguma coisa?

— Nada... eu, nada. Minha tia é que um dia me disse que aborrecia o sr. Salustiano como se aborrece um malvado.

Escapou aos olhos de Celina um movimento rápido de Mariana.

— Eu estava em erro, disse esta sem hesitar.

— Apesar disso, minha tia, e apesar de todas as grandes e nobres qualidades que ornam esse mancebo, sou obrigada a declarar, desde já, que não serei sua mulher

— Por quê?... perguntou a viúva.

— Porque amo a outro, respondeu sem hesitação nem temor a "Bela Órfã".

Mariana ficou por alguns momentos olhando para aquela fraca e modesta menina, que pela primeira vez a surpreendia com um sinal de caráter decidido e forte.

— Amas, já?... perguntou enfim a viúva.

— Já o declarei, senhora.

— E a quem amas, minha pobre Celina?

— Ao sr. Cândido.

— E ele?...

— Ama-me também.

— Infeliz!... tu foste enganada!...

Celina não demonstrou nem surpresa, nem receio, nem desgosto. Desconfiava de tudo quanto lhe dizia Mariana; deixou-se ficar em silêncio, olhando e sorrindo para sua tia.

— Duvidas do que eu digo?...

— Muito, senhora.

— E se eu te der uma prova?...

Celina continuou a sorrir meigamente. Mariana lançou a mão ao bolso de seu vestido, tirou dele uma pequena carta, e entregou-a à "Bela Órfã".

Celina abriu a carta e leu-a. Seu rosto cobriu-se de mortal palidez. Era a carta que a mulher de mantilha havia conse­guido de Cândido.

— E agora?... perguntou cruelmente Mariana.

— Agora?... não sei... duvido ainda, respondeu a custo, e erguendo-se a "Bela Órfã".

— Onde vai, Celina?

— Preciso recolher-me e ficar só, senhora.

Celina já estava na porta.

— E o sr. Salustiano?

A moça voltou-se e respondeu quase com altivez:

— Ainda quando isto não seja efeito de uma nova calúnia, senhora, eu nunca serei esposa desse homem por quem se mostra interessada.

— E saiu.

Por sua vez Mariana empalideceu e ficou de novo muda, pensativa e abatida.