Os Dois Amores/XXXVIII

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No mesmo gabinete em que, poucas horas antes, escreviam João e Salustiano, foi que Rodrigues achou este último ainda agitado pela cena que tivera lugar.

O velho entrou com ar solene e grave, e cumprimentou o mancebo com um simples movimento de cabeça.

— Pode sentar-se, disse secamente Salustiano.

— Obrigado, disse Rodrigues, estou bem de pé.

— Como lhe parecer. Dirá então o motivo que me deu a honra de sua visita?

— A visita de um pobre velho não honra... incomoda.

— Deixemo-nos disso, disse o moço, tenho que fazer; diga o que quer.

O velho guarda-portão sorriu amargamente daquele modo incrível, e daquele árduo desprezo com que era tratado por Salustiano.

— Então?! tornou este.

— Venho contar-te uma história, mancebo.

— Crê o senhor que tenho tempo de sobra para gastar ouvindo suas histórias?...

— Oh! que sim! rico senhor! baixando à sepultura, teu pai te repetiu com voz já sumida as mesmas palavras, que mil vezes te havia dito nos tempos da vida: — ouve, meu filho, ouve e obedece a João e a Rodrigues, como se fosse a mim que obedecesses.

— E a que vem isso?

— É preciso portanto que ouças a história desses dois velhos, e a de teu pai também; porque enfim... o moço vai de novo indo no mau caminho!

— Senhor!

— Mancebo! escuta: não é por mim, é por ti que eu aqui venho. O raio está levantado sobre tua cabeça e prestes a desfechar-se... eu quero mostrar-te o meio de vencer a tem­pestade: escuta.

A voz do velho tinha um não sei quê de lúgubre e terrível, que causou impressão profunda em Salustiano, o qual, como para esconder a comoção que ela acabava de produzir em seu ânimo, sorriu à força, e disse:

— Portanto, escutemos o profeta.

Rodrigues fingiu não ter ouvido a zombaria do moço, e, cruzando os braços sobre o peito, em pé, defronte de Salustiano, começou a história assim:

— Noutro tempo, mancebo (bastantes anos já são passados), haviam nesta mesma província do Rio de Janeiro, e em um dos seus municípios de serra acima, dois jovens belos, ardentes, e generosos. Tinham ambos a mesma idade, vinte e cinco anos; seus pais haviam morrido e lhes deixado ricas heranças. Pedro e Paulo se chamavam eles. Não eram parentes; achavam-se no mundo sós e com um destino em tudo semelhante. Paulo tinha apenas um tio que dele não gostava; Pedro não conhecia parente algum. Esses dois moços encontraram-se pois no mundo tão iguais, tão semelhantes, que se abraçaram um com o outro, juraram amizade eterna, amaram-se como irmãos gêmeos, misturaram seus prazeres e seus pesares; de modo que aquele que ofendesse Paulo teria ofendido Pedro, e o que fosse amigo deste seria por força também amigo daquele.

— Até aí nada de novo, meu caro, disse Salustiano, e, para poupar-lhe palavras, declaro que já sei que esse Paulo era meu bisavô, e esse Pedro o respeitável avô do sr. Rodrigues.

Sem dar atenção ao que acabava de dizer Salustiano, o velho continuou:

— Esses dois amigos amaram ao mesmo tempo duas interessantes jovens; casaram-se no mesmo dia, e cedendo ao ardor da idade, e às instigações de falsos amigos, votaram-se ambos a uma vida de prazeres e de loucuras, que eles não pensavam de acabar um dia. Os banquetes eram sucedidos por outros banquetes, e somente interrompidos pelas caçadas, pelas pescarias, e por mil outros prazeres. Levaram muito tempo assim, até que chegou um dia em que Pedro foi ter com o seu amigo, e disse-lhe:

"— Paulo, temos andado mal; os meus bens chegam apenas para os meus credores."

"— Pedro, disse o outro, acordamos tarde; eu devo também tudo quanto possuo."

"— Que faremos agora?"

"— Primeiro que tudo pagar a quem devemos."

— Os dois amigos chamaram os seus credores, satisfizeram suas obrigações como homens honrados que eram, e acharam-se com uma simples e pobre casinha para ambos, com uma mulher e um filho cada um deles, com duas espingardas, dois cães de caça, uma canoa, uma rede e mais nada.

Sorriram ambos, olhando um para o outro, quando inventariaram os restos de sua antiga riqueza.

Os antigos companheiros de festas e de seus prazeres desprezaram os dois amigos; eles riam-se ainda.

Eram dois homens de grande coração, de muito orgulho, e de imenso valor.

Pedro nada tinha que esperar; Paulo nunca se lembrou que lhe restava um tio.

Unidos sempre, esses homens embarcavam-se na leve canoa, e os férteis rios do Brasil lhes davam peixe para suas mulheres e seus filhos.

Outras vezes, seguidos dos dois únicos amigos que tinham ficado sempre fiéis, de seus dois cães, Pedro e Paulo embrenhavam-se nessas matas verde-negras, que cobrem numerosas lagoas sem interrupção; aí, ao lado um do outro, com seus cães ao pé e suas espingardas no ombro, impávidos e frios, eles esperavam a hora em que começariam a combater com o tigre e o javali.

Cem vezes Pedro salvou a vida de Paulo; cem vezes Paulo livrou da morte a Pedro; e depois, rotos, feridos, cobertos de manchas de sangue, eles voltavam à sua pobre casinha curvados sob o peso das vítimas de seu valor e de sua destreza.

Mas um dia, no meio dessa vida de trabalhos e de perigos, chega a notícia da morte do tio de Paulo, e outra vez a riqueza para este.

Paulo era o herdeiro de seu tio.

"— Somos ricos outra vez, disse este ao seu amigo; vamos para nossa casa. E agora saberemos ajuntar para nossos filhos."

"— Vamos, respondeu Pedro sem vexame."

Começaram de novo os dois amigos a gozar vida de abundância e de sossego; porém nada mais de banquetes, nem de festas.

E quando eles morreram deixaram seus dois filhos unidos como se fossem dois irmãos gêmeos.

O filho de Paulo tinha ficado rico, e o seu amigo era apenas senhor de medíocres teres; mas essa diferença da fortuna não mudou nada a amizade que os ligava.

Amaram-se constantemente como seus pais; como seus pais casaram-se no mesmo dia. Um deles teve um fruto de seu himeneu; foi um belo menino que se chamou Leandro! foi o filho do rico.

— Meu pai, murmurou Salustiano.

— O outro teve dois filhos gêmeos e uma filha, que se chamavam João, Rodrigues e Emília. Fomos nós, sr. Sa­lustiano.

— Eu o sei.

— Quando nossos pais morreram, bem cedo!... ficamos no mundo, herdeiros dessa amizade pura e sagrada, que era a honra de nossas famílias e que fazia admiração das outras.

Salustiano não disse nada.

— Com orgulho, com a consciência cheia de prazer, de verdade, e de sossego, nós dizíamos: — seremos como nossos pais! — oh! não desmentimos nunca!... fomos os derradeiros, é certo... porque minha irmã morreu e meu irmão e eu não temos filhos; e porque o sr. Leandro teve um filho que se não parece com seus antepassados.

— Senhor!

— Silêncio, mancebo!... eu tenho o direito de te repreender! fui o irmão da alma de teu pai... sou um dos últimos herdeiros da amizade de cem anos!... Abaixa os olhos diante de mim, porque tu não serás nunca como foram os teus e os meus, e como somos ainda, meu irmão e eu. Silêncio, mancebo; quem fala aqui não é o pobre velho Rodrigues, é a voz da amizade de cem anos.

O moço, a pesar seu, abaixou a cabeça.

O velho prosseguiu:

— Sim... honra a nós; nós fomos como os nossos: Leandro, João e Rodrigues eram um só homem, e Emília, dez anos mais moça do que nós e seis do que Leandro, era a menina dos olhos de todos três, era o brilhante que se prepa­rava para a coroa de alguém que fosse digno de ajuntar-se conosco. Emília era bela, pura, ingênua como um anjo, com seus olhos pretos, suas faces pálidas, e seu corpinho débil... pobre Emília!...

O velho enxugou com a face dorsal da mão direita duas grossas lágrimas que estavam pendendo de suas pálpebras. Depois continuou:

— Leandro apaixonou-se de uma jovem senhora, tão linda como vaidosa, tão rica como pouco nobre. Tarde conhecemos esses defeitos; aliás, o nosso amigo não teria sido esposo de Matilde.

— Fala de minha mãe, senhor? disse Salustiano erguendo a cabeça.

— Bem o sei, tornou o velho prosseguindo. Depois de casar-se, Leandro pediu-nos que consentíssemos que Emília fosse morar com sua mulher; nossa irmã tinha então dezesseis anos. Consentimos. Passaram os primeiros meses sem que suspeitássemos, sem que coisa alguma pudéssemos recear. Cedo, porém, começou Leandro a experimentar os excessos e efeitos de vaidade de sua mulher. Sua casa se tornou em um inferno; sua vida foi um martírio constante. O único lenitivo que achava para minorar seus sofrimentos o nosso pobre amigo, era vir depositar suas mágoas em nossos corações, e ir chorá-las ao pé de minha irmã.

O velho respirou, e depois disse ainda:

— Tua mãe, mancebo, aborreceu os amigos de teu pai: ciumenta e louca, viu uma rival em minha irmã, e inspirada pelo demônio, esquecida de tudo quanto é nobre e generoso, concebeu um pensamento infame!...

— Senhor!

— Na manhã de um domingo, depois do sacrifício da missa, que se celebrava na capela da fazenda de Leandro, estando a casa cheia, diante de meu irmão e de mim, mesmo à vista de seu marido, ela enxotou de sua casa a minha irmã, cobrindo-a de impropérios e de maldições, dizendo contra ela calúnias que a nodoavam! Oh! sim, mancebo, a língua de tua mãe desonrou a minha irmã! Disse que uma virgem era uma mulher impura!... Disse que seu marido a desprezava por minha irmã... Disse tudo... tudo... disse tanto, que Emília caiu desmaiada nos meus braços.

Salustiano não pronunciou uma só palavra em defesa de sua mãe. O velho continuou:

— Levamos a pobre moça desmaiada como estava para nossa casa. Mancebo, quando minha irmã tornou a si, estava doida! Infeliz! Vagava horas inteiras e sem cessar, in­terrompendo-se apenas para levantar a voz bradando — é falso!... — e vagava de novo, corria ajoelhando-se, erguia as mãos ao céu, e bradava — é falso! — lançava-se em nossos braços, chorava, soluçava, e por entre seus soluços deixava escapar o seu grito de inocência — é falso. — Ah! mancebo! mancebo!... um mês inteiro se passou desse modo, e no fim desse mês ela expirou em nossos braços murmurando ainda a triste frase — é falso! — Mancebo! mancebo! quem fez enlouquecer, quem fez morrer nossa irmã?...

Salustiano não respondeu nada.

— Foi tua mãe. Pois bem: a Providência tomou o cuidado de vingar-nos; Matilde não gozou o doce prazer de beijar seu filho. Mancebo, tu custaste a vida de tua mãe; ela morreu alguns momentos depois de te haver dado à luz.

— Infeliz! balbuciou Salustiano.

— E em nossos corações, prosseguiu o velho, a santa e imaculada amizade de cem anos teve força bastante para fazer com que João e Rodrigues carregassem ao colo o filho da assassina de Emília. Sim! porque o filho de Matilde era também de Leandro. Mas o nosso amigo tinha recebido terríveis golpes; a lembrança de Emília o atormentava; a morte de sua mulher, que apesar de tudo ele amara extremosamente, veio aumentar seus pesares; lembrou-se da corte, sempre cheia de ruído, de festas e de prazeres, e enfim, resolveu-se a deixar a vida do campo. Vendemos quanto possuíamos, e viemos estabelecer-nos aqui. Mancebo, o resto de nossa vida tu sabes... é uma história de vinte e cinco anos de cuidados gastos contigo, pois que tinhas apenas um ano quando deixaste os campos onde nasceste. Dize pois, não te lembras nunca do amor com que te tratavam os dois amigos de teu pai?...

— Senhor...

— Eras um menino indócil... passaste a ser um moço extravagante e altivo. Dize pois, mancebo, já te esqueceste de que uma nódoa... a desonra te ia manchar, e de que fomos nós os que te arrancamos, te salvamos da infâmia?

— Basta! exclamou Salustiano corando.

— Ninguém nos ouve aqui, tornou o velho; podemos falar sem receio. Para alimentar teus vícios ousaste furtar uma firma... teu nome foi escrito no rol dos criminosos... e quem te valeu então?... quem comprou um escrivão sem honra, que se prestou a queimar o processo?... quem pagou ao homem cuja firma tinhas imitado?... lembra-te, mancebo, que fomos nós, João e Rodrigues; porque teu pai queria que o filho indigno sofresse a pena merecida... lembra-te que fomos nós que suspendemos a maldição que dos lábios de um pai austero ia cair sobre o filho pervertido.

— Senhor! senhor!...

— Sim... conseguimos o teu perdão; e quando a morte veio arrebatar-nos o nosso amigo, as últimas palavras que te dirigiu, foram essas, que já mas ouviste hoje: "ouve, meu filho, ouve e obedece a João e Rodrigues, como se fosse a mim que obedecesses".

— É preciso concluir, senhor!

— Morto teu pai, uma nobre missão chamou-me longe desta casa. Meu irmão porém ficou velando por ti. Mancebo, como pagaste ao amigo de teu pai os extremos que gastou contigo?...

— Respeitei-o, disse Salustiano, respeitei-o até ontem.

— E hoje?

— Hoje o ofendido fui eu.

— E qual a ofensa?... pretender meu irmão arrancar de teu poder um papel que te não pertence?... que direito tens sobre aquela carta?... que uso queres fazer dela?... ah! mancebo, o amigo de teu pai vem dizer-te que isso que tens no pensamento, e que cuidas realizar, mercê dessa carta, é uma infâmia.

— Senhor!

— Mas ainda é tempo de voltar atrás; os olhos da amizade dos cem anos ainda te olham com piedade. Em nome de teu pai João te perdoa; em nome de teu pai eu te venho chamar para o caminho da honra. Mancebo, dá-me a carta da filha de Anacleto.

— Oh!... eu tinha adivinhado o motivo da sua visita, sr. Rodrigues.

— E então?

— É impossível conseguir de mim o que pretende. Reconheço os serviços que lhe devo, respeito os velhos amigos de meu pai, mas não posso abandonar assim a única esperança...

— A esperança de quê?

— De alcançar a posse da mulher que adoro.

— Não a alcançarás nunca.

— E essa carta, senhor?!

— Essa carta fará a desgraça de uma mulher, e mais nada.

— Mas essa mulher terá meios de fazer-me esposo de Celina.

— Não, não; porque haverá quem se levante entre a virgem pura e nobre, e o mancebo pervertido...

— E quem ousará?...

— Eu.

— Bem, sr. Rodrigues, veremos.

— E a carta, infeliz moço?...

— Nunca!

— Mas quando a vingança do ofendido vier cair sobre tua cabeça?...

— Nada receio.

— Pensa bem, mancebo: daqui a uma hora nada poderá salvar-te... pensa...

— Estou decidido, senhor.

— Então toda a esperança de conciliação está perdida?

— Toda.

— E as conseqüências?...

— Embora.

— Fiz quanto pude, disse o velho com voz lúgubre; agora nada mais há que esperar.

Salustiano sorriu.

Rodrigues ergueu o braço direito como apontando para o céu, e saiu dizendo:

— Justiça será feita.