Os Fidalgos da Casa Mourisca/XVII
Ficaram apenas na sala Jorge, Mauricio e a baroneza.
A indignação de D. Luiz parecia haver desvanecido a energia de Jorge; a consciencia do pobre rapaz, como que vacillando ao embate das violentas paixões paternas, quasi lhe censurára a precipitação do passo que déra.
Igualmente abatido, Mauricio sentia remorsos ainda mais vivos. Não podendo já duvidar da innocencia do irmão; como perdoaria a si proprio as suspeitas e insultos com que o ferira?
Do vão da janella a baroneza observava-os immovel e silenciosa.
Mauricio ergueu emfim a cabeça, e tendo nos olhos ainda vestigios de lagrimas; hesitou alguns instantes; depois, por um d'esses movimentos promptos e irresistiveis, a que a violencia dos affectos o provocava, caminhou agitado para Jorge.
— Jorge — disse elle, intima e sinceramente commovido — se ainda se não esgotou a generosidade da tua nobre alma, não me retires a affeição, que por tanto tempo te mereci.
Jorge apertou-lhe a mão com affecto.
— Nunca t'a retirei, Mauricio. Podes crêl-o. Affligem-me alguns dos teus desvarios, principalmente porque sei que elles estão em contradicção com os nobres sentimentos da tua alma. Mas para te perder a affeição não é isso motivo. Para mim és n'esses momentos, como uma criança que se vê a dormir á beira de um precipicio. Inspiras-me, como ella, apenas sustos, e não cólera nem aversão.
E os dois rapazes abraçaram-se com effusão.
— Vamos — disse a baroneza, intervindo — a situação precisa de que se pense n'ella seriamente. As pazes estão feitas, em boa hora; pensemos agora como gente de juizo.
— Antes de mais nada, Jorge, o que ha de verdade em tudo isto?
— O que eu disse.
— Vê bem; falla-me com franqueza. Eu não acreditei no que de ti se espalhou. Concederia que Jorge podésse praticar uma loucura, mas uma acção indigna, um abuso de confiança, sabia que não. Porém não ha em toda esta historia alguma coisa que não disseste ainda? Bertha é para ti completamente indifferente? Esta é que é a questão.
Só a muito custo Jorge pôde disfarçar a turbação em que a pergunta de Gabriella o lançou, mas respondeu com apparente serenidade:
— Bertha é uma rapariga, que por todos os motivos respeito.
E com mais custo ainda, acrescentou:
— E nada mais.
— E para Mauricio o que é Bertha? — continuou a baroneza, sorrindo ao voltar-se para o primo mais novo.
Não obteve logo resposta.
— Bem vêem — insistiu ella — que ha uma coisa que eu não posso ainda explicar. Assisti á vossa reconciliação, signal de que tinha havido uma desintelligencia. Qual foi pois o motivo d'ella?
— Uma das minhas loucuras — respondeu Mauricio a final — cedi a um movimento de paixão, encontrando-me com Jorge hontem, quando elle sahia da casa de Thomé da Povoa, e soltei expressões, que parece que ainda me estão queimando os labios.
— Então, visto isso, achavas-te com direito de sentir ciumes. Segue-se que amas Bertha. E é devéras esse amor?
A fronte de Jorge contrahiu-se levemente ao ouvir a pergunta, e emquanto aguardava a resposta do irmão.
— Se responder pelo que penso d'elle — disse Mauricio — juro que é.
D'esta vez um ligeiro sorriso deslizou nos labios de Jorge.
— Isso quer dizer — tornou a baroneza — que respondendo pelo que pensas de ti, receias muito que não. Pois, meu caro priminho, a occasião exige que se ponham de lado caprichos e brinquedos de criança, e que se siga com sisudeza e tenacidade de homem um caminho qualquer. Não estámos em tempo de brincar. Dá-se uma grave crise, em que todos os bons planos de Jorge podem ser destruidos de encontro á resistencia do tio Luiz. Eu nem posso calcular o que resultará de tudo isto. E portanto....
Interrompeu-a n'este ponto a entrada de um criado, pedindo-lhe para chegar ao quarto de D. Luiz, que desejava fallar-lhe.
— N'este caso esperemos o resultado d'esta entrevista para adoptar um partido — dizia ella, apressando-se em satisfazer os desejos do tio.
Em caminho para o quarto de D. Luiz, a baroneza notou nos corredores e nas salas intermedias um movimento extraordinario, que não sabia a que attribuir.
Os criados iam e vinham apressurados, communicavam ordens uns aos outros, abriam e fechavam portas, desciam a duas e duas as escadas, e transportavam differentes objectos, como se se tractasse dos preparativos de uma jornada.
Nos aposentos de D. Luiz achou Gabriella o fidalgo em pé no meio da sala, emquanto frei Januario, de joelhos junto de uma arca, introduzia n'ella algumas peças de roupa, que aquelle lhe ia indicando.
— Eu não sei o que v. exc.ª vae fazer, snr. D. Luiz — murmurava no entretanto o egresso, que parecia cumprir a tarefa de má vontade, suando em bagas — isto não tem pés nem cabeça. Olhem agora, sem commodos nenhuns... assim de um momento para outro....
D. Luiz, sem responder ás reflexões do procurador, continuava a indicar-lhe os objectos que devia arrecadar.
Gabriella dirigiu-se a elle:
— Mandou chamar-me, meu tio?
— Ah! mandei, sim, Gabriella. Desculpe importunal-a. Mas tenho que lhe pedir um favor — respondeu D. Luiz com forçada placidez.
— Mil que sejam.
— Depois do que se passou, não quero demorar-me n'esta casa uma só noite. Peco-lhe por isso hospitalidade na sua. Se me não engano, tencionava partir ámanhã para lá. Não é verdade? Pois bem, faça o sacrifício de partir hoje e permitta-me que a acompanhe. Um quarto e uma enxerga bastam-me. Preciso de me ir costumando a tudo.
A baroneza ficou por alguns momentos muda de surpreza.
— Mas... Por quem é, meu tio... Grande prazer me dará a sua visita... porém em outras circumstancias e por outros motivos. Não tome resolução alguma emquanto assim está dominado pela paixão. Veja o que vae fazer! O que se dirá? O que se fallará por toda a parte!
— Já de sobra teem em que fallar. A vergonha não é maior — tornou o velho mais agitado.
— Pois sim — acudiu o padre — mas reunir a vergonha ao incommodo... a fallar a verdade... é... é...
— A vergonha... a vergonha... Mas tem a certeza, tio, de que julga bem e despreoccupado de paixões, os actos de seu filho? Quem lhe diz que outros não chamarão virtude áquillo a que chama baixeza?
A cólera relampagueou de novo nos olhos do velho:
— Gabriella, por quem é, desista de contrariar-me. Asseguro-lhe que me não demove da resolução em que estou e que sómente me afflige. Se não quer conceder-me o abrigo dos seus tectos, irei bater a outra porta.
Gabriella não insistiu.
— A minha casa é sua sempre, meu querido tio. Vou dar as ordens para partirmos.
— Não esperem por mim — recommendou ainda o fidalgo — eu irei com frei Januario mais tarde, porque tenho tenho que fazer antes. Sinto o incommodo que isto lhe vae causar, Gabriella. Mas os criados ficarão na estalagem da Encruzilhada.
— Todos cabem; visto que tambem os quer levar, escusam de ficar a meio caminho. Então fecha-se a Casa Mourisca, ao que estou vendo? Muito bem. A casa de meu pae é bastante espaçosa, e com os arranjos que eu mandei fazer-lhe ultimamente, deve bem servir para nós todos. Agora um pedido.
— Qual é?
— Jorge está consternado, pelas suas asperas palavras ao jantar. Não ha de reconciliar-se com elle?
— Gabriella, se é amiga de Jorge, não procure trazêl-o á minha presença, e se quer que isto que sinto cá dentro contra meu filho não cresça ou degenere em paixão peior, não pronuncie diante de mim por ora o nome d'elle.
Gabriella tinha certo dom para conhecer quando convinha luctar e quando era preferivel ceder. D'esta vez percebeu que o animo de D. Luiz não estava para acalmar de prompto.
Sahiu sem aventurar mais uma palavra a tal respeito e foi ordenar os preparativos da partida.
Ao passar na sala onde ainda estavam Jorge e Mauricio, apenas lhes disse:
— Tracta-se de partir já.
— Para onde?
— Para a minha casa, nos Bacellos.
— E meu pae?
— Tudo parte. É uma emigração completa.
— E a Casa Mourisca?...
— Fechada, ao que parece, até... acabar o interdicto.
— Mas isso não póde ser!
— Mas é, e eu vou já dar ordens precisas para a mudança.
— E eu vou fallar com meu pae — exclamou Jorge, erguendo-se.
A baroneza reteve-o.
— Não vás. É inutil e perigoso. Deixa que os factos succedam naturalmente. Eu já estou convencida de que esse é o melhor expediente. É preciso que teu pae desafogue a paixão que lá tem dentro. Entende que deve sahir d'aqui, deixemol-o sahir. Estas exterioridades acalmam-n'o. Depois lhe apparecerás.
— Então agora recusa vêr-me?
— Recusa. O que não tira que não possas estar muito á tua vontade na minha casa dos Bacellos. Ha lá um pavilhão na quinta, ao talhar para um refugiado como tu.
Passados poucos minutos os moradores da Casa Mourisca punham-se em movimento para a quinta dos Bacellos.
Os preparativos não occuparam muito tempo, porque o fidalgo mandára apenas levar o que fosse estrictamente necessario.
A baroneza veio despedir-se do tio, que insistiu em querer ser o ultimo a sahir de casa.
Jorge e Mauricio partiram em companhia de Gabriella.
O fidalgo ficou só com frei Januario, que continuava a protestar por todas as fórmas contra a resolução da mudança de quartel a horas improprias.
D. Luiz nem lhe respondia.
Quando o procurador, a fim de suavisar as agruras do desterro, pretendia fazer transportar algum objecto que podia ser de utilidade para melhor accommodação da familia, o fidalgo ordenava-lhe sêcamente que o deixasse ficar, o que cada vez mais exasperava o padre.
Vendo que tudo estava prompto, D. Luiz deixou por alguns instantes o procurador na sala e subiu vagarosamente as escadas que conduziam aos antigos aposentos da filha que perdêra.
Ao penetrar alli, que doloroso estremecer o do coração do velho! Ia desamparar tambem aquelle quarto! Esta ideia só poderia fazer vacillar-lhe a inabalavel coragem! Era um logar de reconhecimento aquelle para o desconfortado ancião. Tudo alli dentro se conservava como no fatal dia em que ella morrêra. Todos os objectos que haviam pertencido á infeliz criança alli se guardavam religiosamente. E ia deixal-os! O leito, o genuflexorio, o toucador, a harpa, parecia possuirem uma voz para fallar-lhe d'ella. E havia de fugir-lhes! A coragem porém não sossobrou na lucta. D. Luiz fechou discretamente a porta para si; depois com fervorosa commoção beijou quasi um por um esses differentes objectos, e ao chegar junto do leito, o mesmo em que a vira adormecer do ultimo somno, ajoelhou soluçando, e cobriu de beijos e de lagrimas as almofadas onde tantas vezes se encostára a pallida cabeça da sua Beatriz.
Mais tranquillo depois d'esta effusão de dôr, ergueu-se, enxugou os olhos e desceu com a mesma lentidão as escadas até o portal, onde o padre o esperava já com impaciencia e inquieto pelo adiantado da hora.
Um criado segurava pela redea os cavallos, que deviam transportal-os.
— Vamos, vamos, snr. D. Luiz, olhe que nos apanha a noite na estrada e os caminhos não são lá essas coisas — exclamou o padre afflicto.
D. Luiz, em vez de responder-lhe, disse para o criado que segurava os cavallos:
— Vae esperar-nos na baixa do Paul. Nós já lá vamos ter.
— Então v. exc.ª quer ir a pé até á baixa do Paul?! — perguntou o padre assustado.
— Vou?
— Mas... é um estirão e....
— Então que fazes? Parte — disse D. Luiz com impaciencia para o criado, e este obedeceu-lhe promptamente.
O padre ficou a resmonear:
— Eu cada vez ando mais ás aranhas com a gente d'esta casa. Sempre tenho visto e ouvido coisas ha tempos a esta parte! Olhem que preparos estes! Havemos de ceiar a boas horas, não tem duvida nenhuma!
— Agora feche a porta, frei Januario — ordenou D. Luiz.
O padre tomou com ambas as mãos a enorme chave do portão, e fêl-a girar na fechadura.
Este movimento produziu um som agudo, similhante ao gemido de uma ave, o qual resoou tristemente pelo interior d'aquella casa deserta.
O padre tirou a chave, que juntou ao mólho que trazia, deu um encontrão á porta, para verificar se ella estaria bem fechada, e depois olhou para D. Luiz.
— Vamos — disse este.
O padre ia pôr-se a caminho, mas parou vendo o fidalgo seguir a direcção opposta á da quinta dos Bacellos.
— V. exc.ª por onde vae?
— Por aqui — respondeu sêcamente o fidalgo, continuando a andar.
— Mas... v. exc.ª está enganado. Esse não é o caminho.
— Bem sei.
O padre seguiu-o, murmurando contra as venêtas do fidalgo:
— Esta cabeça já não regula direita. Onde diabo quer ir este homem?
O caminho que D. Luiz continuava a seguir, ia tão divergente do que o padre esperava, que outra vez o interpellou:
— Mas v. exc.ª onde quer ir?
— A casa do Thomé da Povoa — respondeu D. Luiz e acrescentou: — E advirto-lhe, frei Januario, que não me sinto com disposições para conversar.
O padre sabia que sempre que D. Luiz fazia certas observações em certo tom e com certa inflexão de voz, era inutil e imprudente contrarial-o. Por isso calou-se, o que augmentou o mau humor que já trazia accumulado.
— A casa do Thomé da Povoa! — resmungava elle — O homem está doido! Ora isto! E eu a atural-o! O que me estava reservado!
A intenção com que o fidalgo demandava a casa do fazendeiro era um mysterio indecifravel para o espirito do procurador.
Tinham descido a encosta, a meio da qual se erguia a Casa Mourisca. Aproximavam-se da ponte que atravessava o valle. A tarde ia no fim. Era já a claridade do crepusculo que illuminava a paisagem. A azafama do trabalho acalmára. Nos marcos dos campos, á soleira das portas e nos parapeitos das pontes repoisavam finalmente os lavradores das fadigas do dia. O gado caminhava para as prêsas, conduzido por crianças de seis e sete annos. Nos arvoredos ouvia-se um cantar de aves, timido como elle é, ao aproximar do outomno e ao aproximar da noite. Era tal a serenidade da tarde, que se percebia o sino de uma freguezia distante, dobrando a finados.
A suave melancolia d'aquella hora influiu no animo de D. Luiz. Que densidade de tristeza a que poisou n'aquelle coração! Saudades, mas saudades escuras de velhice, saudades de quem não tem futuro, era o que havia n'aquella alma. Com o passado lhe tinham ido todos os objectos das suas crenças, do seu amor, das suas affeições. Já não era capaz de enthusiasmo, e os olhos em que o enthusiasmo não influe, vêem tristemente coloridas todas as scenas da vida. Ao desencantamento do presente juntavam-se as apprehensões pelo futuro a entenebrecer-lhe o espirito. Era devéras infeliz aquelle velho!
Depois da ponte seguia-se a collina, onde prosperava a Herdade de Thomé.
D. Luiz reuniu alento para subil-a.
O padre aventurou outra observação:
— Snr. D. Luiz, eu não atino com as razões que trazem v. exc.ª aqui, mas não vejo que possa resultar bem algum de similhante visita. Veja o que faz! A prudencia...
— Socegue, frei Januario — atalhou D. Luiz com um sorriso amargo. — Não imagine que venho praticar alguma violencia. Já lá vae o tempo em que nós resolvíamos á força de braço os nossos pleitos. A nossa vez passou, bem vê.
O padre conheceu pelo tom da resposta que o fidalgo estava já mais quebrado, mas ainda pouco disposto para explicar-se.
Para se chegar á casa de Thomé da Povoa por o lado por onde D. Luiz seguia, tinha-se de tomar por uma avenida de olmeiros, orlada por sebes naturaes formadas de madresilvas e de rozeiras. No fim d'esta avenida ficava uma das entradas da quinta do fazendeiro, era a parte que elle cedêra ás predilecções da filha e da mulher, e onde as balsaminas, os limonetes e hortensias cresciam vigorosas, e a relva rescendia com as violetas e malvas que a entremeiavam.
D. Luiz desceu lentamente a avenida, com os olhos fitos no portão da quinta.
— É aquella uma das entradas da propriedade, não é? — perguntou elle ao padre.
— É, sim, senhor. Repare v. exc.ª que é um portão de quinta nobre. Falta-lhe o brazão.
O fidalgo calou-se e não tirou os olhos do portão da quinta, da qual se ia avisinhando. Passados alguns instantes respondeu á observação do procurador, dizendo:
— Dentro de alguns annos mais póde comprar barato o da Casa Mourisca. Os meus filhos não serão exigentes no preço.
O padre não soube bem o que devia dizer n'este caso. Limitou-se por isso a expellir um simples «Oh!» sem entonação que o definisse.
Chegaram emfim ao portão. D. Luiz ordenou ao padre que tocasse a sineta.
Este ia a fazêl-o, quando se voltou dizendo:
— Anda gente cá dentro.
D. Luiz não foi superior a certo sobresalto ao ouvir a noticia; vencendo-se, porém, caminhou resoluto e com a fronte contrahida para diante. De repente estremeceu, parou, e comprimindo o peito como se fora ferido alli, murmurou:
— Ó Sancto Deus!
— Que tem v. exc.ª? — interrogou inquieto o padre, que reparára no gesto de D. Luiz — Foi pontada?! Estes passeios violentos e fóra d'horas...
O fidalgo não respondeu e continuou com os olhos fitos em não sei que ponto do interior da quinta.
Frei Januario desviou para alli a vista, a fim de elucidar-se na explicação do mysterio.
Chegava n'este momento ao portão uma rapariga, singelamente vestida de branco, que correu ao encontro d'elles.
Era Bertha.
— O meu padrinho! — exclamava ella dirigindo-se ao fidalgo — O snr. D. Luiz! Até que emfim o vejo! Julguei que não chegava este dia!
E pegando-lhe na mão, beijou-a com respeito e affecto.
E D. Luiz não lh'a retirou, nem teve uma palavra que lhe dissesse. Continuava a olhal-a, como esquecido de tudo e profundamente perturbado.
O padre observava a scena boquiaberto.
— Ha que tempos o não via! — proseguiu Bertha com uma carinhosa volubilidade de criança — Pois tinha bem saudades! Quantas vezes olhava para aquellas janellas, a vêr se por acaso o descobria em alguma? Mas nunca, nunca! Que vontade que tinha de lá ir, mas... Disseram-nae que o padrinho nunca sahia, e que vivia quasi sempre só no seu quarto. Para que é que vive assim? Isso faz-lhe mal. Mas... que tem, snr. D. Luiz? Meu Deus... está a chorar!
O padre deu um passo á frente, como duvidando do que ouvira.
D. Luiz afastou-o com a mão.
— É verdade — disse elle a final, profundamente commovido. — É singular isto em mim! Mas que quer, Bertha? Quando aqui cheguei e a vi...
— Não me tracta já por tu? — interrompeu-o Bertha, sorrindo tristemente.
O fidalgo, depois de uma curta hesitação, repetiu:
— Quando aqui cheguei e te vi, lembrei-me da minha pobre Beatriz. Parecias-me ella. Ella era mais moça quando morreu, mas ultimamente tinha deitado corpo e... depois trazia ás vezes um vestido d'essa côr, e emfim... ha tanto tempo que não via uma rapariga que se lhe assimilhasse... Sim, porque ha muitas por ahi, mas nenhuma ainda m'a recordou como tu. É notável! a mesma côr de cabello, a mesma estatura, certas maneiras e até o metal de voz... Não é verdade, frei Januario? É notavel! A minha pobre filha! Como tu m'a recordas, Bertha, ai, como tu m'a recordas!
— Não se afflija.
— «Não se afflija» era mesmo assim que ella me dizia; não que era mesmo assim. Pois não era, frei Januario? «Não se afflija.» Se tu soubesses o que eu estou sentindo, Bertha? se tu soubesses o que vão de saudades aqui dentro?
— Então não sei? Não era eu amiga de Beatriz tambem? O tempo mais feliz da minha vida não foi aquelle em que a conheci? Inda hontem chorei ao reler as cartas que ella me escrevia.
— E ella escrevia-te?
— A ultima que tenho d'ella é datada de oito dias antes da sua morte.
— Pobre criança! E... e dizia-te que sabia o estado em que estava?
— Dizia; mas que fingia illudir-se para não affligir os seus.
— E era assim, era. Nunca se ouviu uma queixa d'aquella bôca. Morreu a sorrir o pobre anjo.
E o saudoso pae quasi soluçava ao avivar aquella permanente chaga do seu coração.
— Snr. D. Luiz — acudiu frei Januario — olhe que lhe faz mal estar a recordar essas coisas. O passado, passado. A noite está comnosco e...
— É verdade! — atalhou Bertha — e eu a demoral-o aqui! Faça favor de entrar, meu padrinho, a mãe anda lá para a quinta. Meu pae está para a cidade e julgo que só ámanhã virá, mas....
Estas palavras recordaram a D. Luiz o motivo que o trouxera alli. Chamaram-n'o á realidade de sua presente situação, afugentando as memorias do passado, melancolicas, mas suaves para o seu espirito.
Mudou immediatamente de expressão, as lagrimas como que se lhe secaram aos estos da paixão que crescia n'elle. Ergueu a cabeça que a tristeza curvára. Assumiu aquella apparencia magestosa que costumava apresentar aos olhos dos estranhos, e em tom não rispido, porém menos cordial do que até alli, disse para Bertha, que era agora para elle a filha de Thomé da Povoa e já não a companheira de Beatriz:
— Bertha, ia-me esquecendo o que me trouxe aqui. O coração domina-me ainda ás vezes. Mas a crise passou. Vinha procurar teu pae. Visto que não o encontro, peço-te que lhe transmitias o meu recado. Soube hoje que um de meus filhos havia recebido d'elle adiantamentos de dinheiro a titulo de emprestimo para melhorar a nossa propriedade, e isto sem garantia alguma. Não sei a quanto monta a somma recebida, mas em todo o caso não posso aceitar o emprestimo... ou a esmola. A divida ha de ser paga em breve tempo; mas, emquanto não o fôr, deixo em penhor de minha palavra aquella casa, que hoje mesmo abandono, e tudo que n'ella se contém. As chaves aqui ficam. Virei a seu tempo buscal-as.
E, fazendo signal ao procurador, tomou as chaves das mãos d'este, que continuava a estar abysmado, e entregou-as a Bertha.
A estupefacção da rapariga era tal, que machinalmente as recebeu, sem bem saber o que fazia.
— Parece-me que será bastante garantia — acrescentou D. Luiz. — Se eu não sou victima de uma perseguição do céo, espero resgatal-as ainda. Senão... Adeus, Bertha.
— Mas — pôde emfim dizer a filha de Thomé, sahindo da sua abstracção — isto não póde ser! Eu... nem sei o que estou fazendo. Por quem é, padrinho, meu pae não póde querer....
— Não te pertence julgar d'estes negocios, Bertha. Faze o que te digo.
— Deixar a Casa Mourisca! a casa em que tem vivido sempre, onde nasceu e morreu Beatriz! E porque?... Que somos nós para si então, padrinho?
O fidalgo tornou-se de novo sombrio ao responder:
— Bertha, quando a minha consciencia me impõe um acto na vida, é inutil tentar demover-me.
— A consciencia! — repetiu Bertha, timidamente, como exprimindo uma duvida.
— Se queres tambem chamar a isto um preconceito de classe, como já lhe chamou um de meus filhos, chama-lh'o embora. Em todo o caso obedeço-lhe e de obedecer-lhe me orgulho.
E o fidalgo ia para retirar-se, quando Bertha lhe disse, hesitando:
— E não me consente que lhe beije outra vez a mão?
O animo irritado do senhor da Casa Mourisca abrandou outra vez ao som d'aquellas palavras meigas. D. Luiz estendeu a mão a Bertha, que lh'a beijou chorando.
Ao sentir-lhe as lagrimas o fidalgo ergueu-lhe amigavelmente a cabeça, perguntando-lhe:
— Porque choras, Bertha?
— Porque sinto que já não me tem a amizade que d'antes me tinha.
— Criança — disse o fidalgo com uma brandura que havia muito tempo ninguem conhecêra n'elle — que tens tu com as paixões áridas das nossas almas de homens? Os entes como tu e como aquelle que eu perdi, nasceram para as dissipar e não para soffrel-as.
E cedendo á commoção que de novo a dominava, o severo e implacavel D. Luiz, com admiração crescente de frei Januario, apertou a afilhada nos braços e poisou-lhe na fronte um beijo, como os que dava em Beatriz.
E ao separar-se d'aquelle logar ia outra vez com as lagrimas nos olhos.
Ao fim da avenida, d'onde se avistava o portão, voltou-se. Bertha permanecia no mesmo sitio, a seguil-o com a vista.
— Repare, frei Januario, repare; a quem vê d'aqui, a distancia, não parece mesmo a minha Beatriz, quando nos esperava á porta da Casa Mourisca?
— Sim, as raparigas ao longe todas se parecem; mas olhe que é noite fechada, snr. D. Luiz.
— Jesus! e agora a dizer-me adeus! — continuava D. Luiz, dizendo adeus tambem — é mesmo aquelle anjo que eu perdi. Fujamos, fujamos d'estes sitios, que tenho medo de enlouquecer.
— E até porque é noite fechada — acrescentou o padre. — Valha-nos Deus!
Depois de longo tracto de caminho andado em silencio, D. Luiz parou, e levantando os olhos ao céo, exclamou com paixão:
— Que tremendas culpas estou eu expiando, meu Deus! Porque me roubas tudo, para tudo dares áquelle homem?! Até a filha! até a suave consolação d'aquelle amor de filha, que eu perdi, até esse elle possue! Que tremendo castigo, Senhor!
D'ahi até o termo da jornada, na quinta dos Bacellos, não tornou a pronunciar uma só palavra.
Quando lá chegaram ia a noite adiantada; e já havia desassocego pela demora dos dois.
O padre procurador estava furioso. Dizia elle completamente desconcertado:
— Uma estafa assim depois de um jantar lauto! Esta gente não tem consciencia! Deus queira que não me venha por ahi alguma apoplexia! Os filhos são doidos, o pae está pateta, e eu que os ature!
E correu á cozinha a vêr se havia alguma coisa quente que o confortasse.