Os Fidalgos da Casa Mourisca/XVIII
O antigo solar da familia da baroneza, chamado a Casa dos Bacellos, como que ao despertar de um somno de muitos annos, abrira á luz do dia as suas amplas janellas, reacendêra o fogo nos lares apagados, e restaurára o movimento e a vida nos aposentos vazios.
Era a primeira vez, depois do seu casamento, que a baroneza voltava aos sitios onde lhe corrêra a infancia, cujas suaves memorias ainda os povoavam. Ao vêr de novo aquellas velhas paredes e aquellas arvores frondosas, ao seguir pelos extensos corredores, ao penetrar nas espaçosas salas e nos mais retirados gabinetes da casa, Gabriella, ainda que pouco propensa a melancolias, não pôde subtrahir o espirito a uma impressão de saudade.
Vestigios mal apagados d'aquelle tempo longinquo a cada passo lh'o relembravam; alli fôra o theatro dos seus brinquedos e jogos, além estava um objecto ao qual se prendia a reminiscencia de uma provação infantil, aquelle era o logar favorito de seu pae, acolá desenhava-lhe vagamente a sua recordação a imagem da mãe, que perdêra em criança, e dominada por esta influencia, Gabriella suspirava e conhecia que ainda não morrêra de todo em si o coração provinciano.
Mas uma tal disposição de espirito não podia durar muito. A baroneza era uma mulher de acção, e não se esquecia de que tinha muito em que pensar e que fazer em virtude dos acontecimentos ultimos da Casa Mourisca.
Não eram sómente as canceiras de dona de casa, que deseja accommodar convenientemente os seus hospedes, que a preoccupavam, mas tambem, e mais ainda, o desejo de restituir áquella familia a harmonia tão inesperadamente interrompida e de reconciliar o irritado fidalgo com o filho, que pelo seu nobre proceder incorrêra no desagrado do velho. Gabriella tomava devéras a peito esta pacificadora empreza; mas para isso era ainda cêdo. A paixão ensurdecia ainda muito D. Luiz, para que lhe fosse possivel escutar conselhos.
Na manhã immediata á noite da installação solemne da familia de D. Luiz na casa dos Bacellos, Gabriella foi procurar Jorge ao pavilhão no fundo da quinta, onde elle desde a vespera se alojára, longe dos olhares paternos.
A baroneza tinha sabido de frei Januario tudo o que se passára entre D. Luiz e Bertha á porta da quinta de Thomé, e desejava fallar n'isto ao primo.
Jorge recebeu-a com umas apparencias de serenidade, que não eram de todo sinceras.
— E meu pae? — foi a primeira pergunta de Jorge, depois das palavras de comprimento.
— Um pouco menos affrontado, depois que realisou uma ideia cavalheirosa e vindicou, como entendeu, a sua dignidade aristocratica.
— Pois que fez elle?
— Foi entregar pessoalmente as chaves da Casa Mourisca nas mãos do Thomé da Povoa. O frei Januario contou-me tudo. A aristocracia é assim em toda a parte. Tem a cabeça cheia de tradições da idade media e por ellas se regula. Procura sempre dar ás suas acções uma feição dramatica, e sempre que o consegue, sahe desopprimida de qualquer situação apertada.
— E Thomé aceitou-as?
— O Thomé não estava em casa. A entrevista teve logar á porta da Herdade entre o tio Luiz e Bertha, a heroina de toda esta historia, e a proposito....
— Perdão, mas... o que se passou n'essa entrevista?
— Pelo que me disse o padre, correu muito sentimental ao principio. A vista de Bertha recordou ao tio a imagem de Beatriz e commoveu-o a ponto de chorar. A rapariga parece que lhe disse algumas coisas ternas, que acabaram de o sensibilisar; abençoou-a, beijou-a e quasi se ia esquecendo do que o levára alli, mas de repente recordou-se e fez a entrega das chaves com uma gravidade igual á de Martim de Freitas, cuja vaga recordação foi o que provavelmente lhe suggeriu a ideia da scena. Tu sorris? Olha que é o que te digo. Eu conheço os achaques d'estes nobres. Os mais serios e ajuizados são perdidos por umas coisas assim. Se em uma occasião de crise tiverem um dito sentencioso, uma acção, um gesto dramatico d'estes que se tornam proverbiaes, ficam muito satisfeitos e resignam-se ás consequencias da crise. O certo é que as chaves lá ficaram.
— Thomé por certo lh'as restitue.
— Póde ser, mas é peior. Teu pae socegará, sabendo que as chaves estão nas mãos de Thomé. Então que queres? É uma puerilidade que se deve respeitar. O acto em si, olhado á luz da actualidade, não tem o minimo valor. Bem sabemos. Mas visto como o tio Luiz o vê, illuminado pelo crepusculo dos bons tempos passados, é um desforço e uma acção fidalga, capaz de o desaffrontar perante os seculos passados e futuros. Mas vamos ao que importa. Em toda esta historia figura o nome de uma mulher. Ora é sabido que nos attribuem sempre as primeiras honras no travar e complicar da acção dos differentes dramas e comedias da vida; por isso, com quanto o papel de Bertha se nos tenha apresentado até aqui como secundario, ninguem me tira da ideia de que ella é a figura principal da historia. Que te parece, Jorge?
Jorge, evidentemente enleiado pela reflexão da baroneza, respondeu:
— Bem vê que não é. A prima está já ao corrente de tudo, póde portanto julgar da parte da acção que cabe a essa rapariga.
— Estou ao corrente de tudo? Isso é que eu não sei. Mauricio tem por ella uma grande paixão, ao que parece.
— Não creio — acudiu Jorge vivamente.
— Como se explica então que, sendo elle tão teu amigo, se irritasse por uma errada interpretação dos teus actos, a ponto de estar imminente uma acção tragica, de que nem quero lembrar-me?
— Ora essa! Então não conhece o genio de Mauricio? — tornou Jorge quasi impaciente — Os primeiros movimentos são n'elle sempre impetuosos. Aquelle rapaz não se conhece. A cada instante se engana comsigo proprio. Anda persuadido ha certo tempo de que ama Bertha, e essa persuasão é tal que dá logar a scenas como essa que sabe.
— E porque dizes que não a ama?
— Porque o conheço e porque o tenho visto amar assim muitas mulheres.
— Uma serie de amores verdadeiros, é o que se conclue d'ahi; verdadeiros, mas curtos.
Jorge sorriu.
— Parece-me que não acreditas que sejam verdadeiros os que são curtos? Tu amarias sempre, se amasses?
— Creio que sim. Ou pelo menos, quando visse acabar um amor, dizia commigo: enganei-me, não era amor ainda.
— Sympathica theoria, mas não sei se muito aceitavel. Porém quem te diz que Mauricio não se fixaria d'esta vez? E olha que não seria uma má resolução da vossa crise. O Thomé julgo que está em condições de ser um sogro salvador, assim não houvesse a prevenção do tio Luiz.
— D'essa maneira não quereria eu nunca regenerar a nossa casa — replicou Jorge gravemente.
— Ah! tambem tens d'esses escrupulos? Pois olha, filho, é o processo hoje mais seguido.
— Bem sei, mas em um homem acho-o ignobil.
— Não havendo amor, concordo; mas quando o amor absolve a alma...
— Mais honra haveria em vencêl-o.
— Esta provincia é um terreno onde as velhas plantas duram eternamente. Não ha vento revolucionario, nem corrente de ideias novas que as derrubem.
— Mas deve confessar que são bellas e boas arvores essas!
— Algumas; outras são inuteis e damninhas, e fariam muito bem se cedessem o logar a melhor e mais productiva cultura. Agora outra pergunta: e Bertha ama a Mauricio?
Jorge córou a esta pergunta e evidentemente contrariado respondeu apenas:
— Talvez.
A baroneza ia a insistir, quando o colloquio foi interrompido pela voz do padre procurador pedindo licença para entrar.
Frei Januario entrou tossindo e assuando-se de uma maneira particular, que para quem o conhecesse era indicio claro de uma grave preoccupação de espirito.
— Então, snr. frei Januario, como se tem dado n'estas ruinas? — perguntou-lhe a baroneza com a amabilidade de dona de casa.
— Excellentemente, minha senhora. Então até direi a v. exc.ª que ha muito tempo não dei com um cozinheiro que melhor atinasse com o meu paladar.
— Sim? O Gavião merece-lhe esse conceito? Se o rapaz o sabe! É capaz de se me estragar de vaidade. Não o gabe na presença. Recommendo-lhe toda a discrição, snr. frei Januario. Olhe lá.
— Mas é que é verdade o que eu digo. Que lhe pareceu a v. exc.ª aquelles bifes hoje ao almoço? Olhe que aquelles bifes!... Não lhe digo nada! O rapaz é geitoso. Mas deixemos isso. Tracta-se de uma coisa que me dá cuidado.
— Então que é? — perguntou a baroneza, recostando-se — Não quer sentar-se, snr. frei Januario?
O padre puxou uma cadeira, sentou-se e tornou a tossir e a assuar-se.
— O snr. D. Luiz — disse elle, interrompendo-se a cada momento — emfim... eu ha tempos a esta parte ando assim a modo de doido....
— Vamos, snr. frei Januario, solte a grande novidade que nos traz debaixo do capote. Depois fará os commentarios, que entenderemos e apreciaremos melhor.
— O snr. D. Luiz chamou-me ha poucos momentos ao seu quarto para me dizer... para me ordenar....
— O quê?
— Para me confiar de novo a procuração que me retirára, e ordenar-me que participasse isto mesmo ao snr. Jorge para seu governo. Emfim....
— Cumpra-se a vontade de meu pae — disse Jorge — e Deus permitia que elle tenha motivos para se applaudir por ella.
— Eu fazia melhor conceito do bom senso do tio Luiz — observou francamente a baroneza — confesso que fazia. E o snr. frei Januario acha-se com forças de desenredar esta meiada, embaraçada como está?
— Pois ahi é que bate o ponto — acudiu o egresso. — Eu... é verdade que por mais de vinte annos dirigi estas coisas e, se mais não fiz, foi porque os tempos eram o que nós todos sabemos. Mas, depois que o snr. Jorge tomou conta disto, perdi o fio da meiada, entende v. exc.ª? Eu tinha cá o meu systema e por elle me guiava. Agora porém venho encontrar as coisas todas mudadas e... emfim, póde ser que estejam muito bem, não digo menos d'isso, mas eu é que não as entendo. Para pôr tudo outra vez no pé de d'antes, isso leva um tempo dos meus peccados; para continuar no caminho em que isto vae, era preciso ter muito trabalho e a fallar a verdade, já não estou na idade d'isso.
— E então que tenciona fazer?
— Eu sei? O fidalgo não ha quem o convença. Credo! Vão lá hoje contrarial-o na mais pequena coisa! Vae tudo pelos ares! Por isso, a mim lembrava-me....
— O que lhe lembra, snr. frei Januário? — perguntou Gabriella, fitando-o com olhar penetrante.
— Lembrava-me dizer ao fidalgo que sim senhor, que tudo se havia de fazer como elle mandava, que eu me encarregaria da direcção da casa, mas, por baixo de mão, continuar o snr. Jorge a levar as coisas lá pelo seu systema.
— E quer tomar sobre si a responsabilidade dos meus actos, snr. frei Januario? Repare bem. Já sabe a que portas costumo ir bater, quando preciso de capital, e quaes os meios que adopto. As suas crenças e opiniões devem soffrer com isso.
— E a mim que me importa? — tornou o padre impaciente — A final de contas, a casa é sua e não minha. O mal que fizer mais o ha de sentir do que eu.
— Não depõe muito a favor da sinceridade do seu affecto á minha família esse dizer. Eu queria antes vêl-o oppondo-se energicamente á administração viciosa que principiei.
O padre não tinha coragem para tomar conta da gerencia da casa sob a inspecção de Jorge, a quem tomára um mêdo excessivo; tentava porém colorir airosamente a proposta que alli viera fazer.
A baroneza interpellou-o muito terminantemente.
— A sua posição n'esta casa, snr. frei Januario, e as exigencias moraes do seu caracter e da sua missão traçam-lhe distinctamente o caminho que deve seguir. Ou entende na sua consciencia que póde fazer mais e melhor do que Jorge, e n'esse caso deve obedecer ao tio Luiz, ou tem a convicção contraria e só então é admissivel a sua proposta, mas depois de confessar com franqueza e lealdade o motivo d'ella.
O padre torceu-se, balbuciando:
— Eu não digo... isto é... quero dizer... no estado em que as coisas estão... no pé em que as puzeram.... Sim... cada qual tem lá o seu systema... e eu... sim, v. exc.ª bem sabe....
— Deixemo-nos d'isso. Claro, claro. Notou alguns defeitos na administração do primo?
— Defeitos... defeitos... não digo defeitos....
— Mereceu-lhe alguns reparos? Seja franco. Não se admittem palavras ambiguas.
— Não, minha senhora, eu não tenho reparos a fazer... quero dizer....
— Achou-a boa?
— Sim... achei... isto é....
— Parece-lhe que não é capaz de fazer melhor?
— Não tenho vaidades....
— Tem medo de estragar o bem que está feito?
— Todos podem errar... emfim....
— Temos entendido. Parece-me que Jorge, em vista d'isso, não discordará do seu parecer. Não é verdade, Jorge?
— Custa-me continuar a trabalhar clandestinamente; mas não me eximo a esforço algum para salvar a minha casa.
— Muito bem; agora o snr. frei Januario póde dizer ao tio Luiz que se cumprirão as suas ordens, e o mais que terá a fazer é assignar, sem lêr, alguns papeis que por ventura sejam necessarios, isto nos primeiros dias, porque eu confio ainda na boa razão do tio. E agora côma, beba e durma, e deixe correr o mundo, que ha de correr para bom lado.
O padre retirou-se mais desafogado, mas pouco satisfeito com os modos da baroneza, que o obrigaram a despir-se de toda a diplomacia e a confessar a sua inaptidão administrativa.