Os Fidalgos da Casa Mourisca/XX

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XX


A violencia das impressões que deixára em Thomé da Povoa a entrevista com o fidalgo da Casa Mourisca não era para se desvanecer com o inquieto somno de uma só noite.

No dia seguinte, pela manhã, o fazendeiro acordou ainda indignado e firme na resolução que abraçára, de se vingar a seu modo. Nem o animo impaciente lhe soffria grande demora na execução.

Logo de madrugada principiou a dispôr as coisas para n'aquelle mesmo dia inaugurar a empreza. Deu contra-ordens a criados que tinham serviço talhado de vespera, foi mais expedito na visita quotidiana ás diversas repartições do casal, afagou mais distrahido a egoa fiel, que lhe cheirava os bolsos, habituaes portadores de uma lambarice matutina, deu um beijo nas crianças, sem se demorar a fazêl-as saltar nos joelhos, mandou que lhe fizessem o almoço mais cedo, depois de almoçar calado, contra o seu costume, ergueu-se da mesa, ordenou que tres criados se preparassem para sahir com elle, levando alguns instrumentos de lavoura, e a final acabou por pedir á mulher as chaves da Casa Mourisca.

Luiza, a boa, a prudente Luiza, que desde a vespera observava, sem reflexões, os signaes de desassocego de espirito que manifestava o marido, não pôde, ao ouvir a ultima ordem, reprimir um movimento de estranheza, e violentando um pouco o seu respeito conjugal, disse, olhando fixamente Thomé:

— As chaves da Casa Mourisca?! Para que queres tu as chaves da Casa Mourisca?

— Provavelmente para abrir as portas.

— E tu vaes lá?

— Vou, e olha que já ha mais tempo lá me queria.

— E que vaes tu fazer á Casa Mourisca, Thomé?

— O que vou fazer? Vou trabalhar.

— Trabalhar?! Pois tu tomaste-a de renda?!

— Tomal-a de renda? Para quê? Então o fidalgo não me deu as chaves? Então não embirrou em que eu havia de ficar com ellas? Pois para espantalho não me servem cá em casa. As chaves são para abrir as portas, e quem as tem entra quando quer.

— Sim, mas que tens lá que fazer?

— Oh! não me falta tarefa. Aquillo não viu enxada ha bom tempo. Os canos estão entupidos, as minas por limpar, os tanques rôtos, as ruas cobertas de herva, os muros no chão, e tudo o mais por este gosto.

— E então tu é que vaes pôr isso tudo em ordem?

— Vou, sim senhora. É assim que hei de ensinar aquelle soberbo, que se julga deshonrado, só por que eu lhe fiz um serviço insignificante. Pois agora veremos como roe estes que lhe vou fazer. Olha, mulher, vês aquelle casarão negro, coroado de dentes, muitos dos quaes já lhe cahiram de velhos? Pois se eu não lhe puzer dentadura nova e lhe lavar aquelle cara, de maneira que pareça que está a rir e perca o ar carrancudo com que d'alli nos olha, não seja eu quem sou.

— Tu não estás em ti, Thomé. Vê lá no que te vaes metter. São despezas grandes, e nem tu tens direito para similhante coisa.

— Não sei de historias. O homem não quer tomar conta da casa emquanto não pagar as suas dividas; pôz-m'a ao meu cuidado e eu do que está ao meu cuidado cuido assim.

— Ih! Jesus, que homem este! Não faças as coisas no ar, Thomé.

— Qual no ar; prometti que hei de trabalhar para pôr aquella casa em cima, só para fazer uma pirraça ao fidalgo; e ainda que tenha de hypothecar todos os meus bens e de arriscar o futuro dos meus filhos, hei de fazêl-o.

— Mas, já fallaste com o snr. Jorge a esse respeito?

— Não, nem preciso.

— Pois devias fallar. É um rapaz ajuizado e que põe as coisas no seu logar.

— O que elle me vinha dizer sei eu, e por isso é que não desejo fallar-lhe, porque não quero que me tire isto da cabeça, nem quero brigar com elle. Mas os rapazes já estão á minha espera. Vamos lá. Dá cá as chaves, ouviste?

— Thomé, Thomé! Olha lá o que fazes! Eu não sei...

— Pois por isso; se não sabes, deixa-me cá. Basta-me a chave grande. Eu hoje não passo da quinta.

E pegando na chave que a mulher lhe deu a medo, o lavrador sahiu á frente dos tres criados, em direcção da Casa Mourisca.

Luiza, a cujo bom senso não agradava a resolução do marido, veio desabafar com a filha.

O que sobre tudo levava a mal a bondosa Luiza era o não haver o marido consultado Jorge. Para Luiza Jorge era um conselheiro infallivel. A sympathia que sempre lhe inspirára aquella criança, «que se não mettia com ninguem» como a boa mulher tantas vezes dizia, crescêra e misturára-se á admiração, ao respeito e á absoluta confiança, assim que o viu, adolescente, tomar aos hombros o pesado encargo da direcção e reforma da sua casa, e que ouviu os louvores em que o enthusiasmo de Thomé se desafogava, fallando d'elle. Luiza afez-se a suppôl-o um ente privilegiado, incapaz de errar, com faculdades creadas para levar ao fim qualquer empreza e realisar todas as suas tenções, por menos exequiveis que parecessem.

O dogma da infallibilidade de Jorge fôra por ella definido.

Transpirára além d'isso cá fóra o grande successo do dia do jantar na Casa Mourisca, e por ventura a versão versão mais seguida sahira colorida por aquellas tintas maravilhosas, com que o povo illumina as suas narrativas. O que é certo é que este facto acabou de divinisar Jorge no conceito de Luiza, e agora menos do que nunca ella estava disposta a perdoar ao marido o haver prescindido dos conselhos de um rapaz tão brioso e prudente.

Bertha escutou o arrazoado materno com ar pensativo e triste. Ouviu, sem a interromper, a longa exposição das excellentes qualidades do filho mais velho do fidalgo e os artigos de benevola accusação, acremente formulados contra Thomé por quem aliás menos do que ninguem estava disposta a condemnal-o.

De quando em quando a vista de Bertha erguia-se para o vulto escuro da Casa Mourisca, e parecia que o aspecto d'ella lhe augmentava a melancolia.

Luiza sahiu emfim da sala, chamada por as exigencias do serviço domestico.

Bertha ficou só. Reclinando a cabeça á mão e apoiada no peitoril da janella, conservou por muito tempo a immobilidade e a fixidez do olhar, que denunciava uma grande abstracção.

Em que pensaria Bertha?

Que nuvem cruzaria o seu firmamento, para assim lhe projectar sobre a fronte aquellas sombras de tristeza?

Operava-se uma revolução moral n'aquelle espirito. Bertha sahira criança da aldeia, levando entre as mais agradaveis memorias da infancia, a dos momentos passados na Casa Mourisca e a das pessoas a quem alli déra então os seus primeiros affectos.

Crescêra, e essas imagens modificaram-se pela influencia do amor na phantasia, pela influencia de solidão e dos devaneios de juventude; a de Beatriz, como que sanctificada pela morte, cercára-se de um resplendor angelico, claro e suave como os raios do luar em luminosas noites de estio; a de Jorge apparecia-lhe como a de um amigo leal e seguro, a quem se não confiam puerilidades do coração, mas de que se póde esperar auxilio e conselho nas provações da vida; a de Mauricio, porém, fôra a que a imaginação que despertava, colorira de mais seductores reflexos. O seu campeão da infancia assumira as fórmas nobres e prestigiosas dos heroes de todos os poemas de amor. Belleza propria de uma juventude varonil, coragem, generosidade, tudo quanto exalta e ennobrece a alma, a phantasia d'aquella rapariga, entregue a si, elaborando a sós sobre as memorias do passado, associára ao nome de Mauricio. Fôra isto que Bertha trouxera no coração para a sua aldeia. Era o seu romance. Tinha ella a razão bastante clara para não o tomar por outra coisa mais real do que um verdadeiro romance, e bastante poder de reflexão para não se deixar dominar por elle.

Percebendo que em Mauricio não estavam ainda extinctas tambem as memorias do passado, e que ainda os seus sentimentos presentes recebiam d'elle luz e calor, Bertha assustou-se, desconfiou de si, e mais do que nunca procurou precaver-se, fugindo á influencia de que se temia, mas cedendo a ella sem querer.

Seguiram-se porém as scenas que sabemos; e o iris que rodeava Mauricio aos olhos de Bertha, dissipou-se como um verdadeiro iris em tardes humidas de inverno.

O ideal de Bertha não era sómente bello, era generoso e impeccavel, e Mauricio não attingia tão alto. O instincto do coração denunciou a Bertha o segredo do caracter de Mauricio; não havia depravação n'elle, sómente leviandade e insconstancia; mas já era bastante para o desprestigiar. Nem leviano, nem inconstante era o Mauricio que sonhára. Pelo contrario, de dia para dia lhe apparecia mais na sua verdadeira luz o caracter de Jorge, d'esse rapaz honesto, generoso, grave, respeitado por todos. As suas qualidades moraes attrahiram emfim a attenção de Bertha, e muita vez, emquanto conversava com Thomé, absorvido em uns vastos e generosos projectos, ou quando seguia pensativo pelos irregulares caminhos dos campos, era elle, sem o suspeitar, o objecto da contemplação de Bertha, em quem só então parecia terem feito impressão a nobreza e intelligencia, que nos gestos, na physionomia e nas palavras d'aquelle adolescente se revelavam.

A scena do jantar na Casa Mourisca augmentou a intensidade d'estas nascentes impressões. Nem podia deixar de ser assim.

É natural suppôr que a imagem de Jorge, d'esse rapaz corajoso e leal, que perante uma desdenhosa companhia do fidalgo, se erguêra a reivindicar a boa fama da familia plebeia, perfidamente calumniada por um d'elles, occupasse o pensamento da que mais soffrêra da calumnia, e offuscasse a do outro, leviano e estouvado, que concorrêra para levantar o aleive.

Poderia deixar de insinuar-se em um coração aberto a sentimentos generosos, como era o de Bertha, esse rapaz de vinte annos, diante de quem os velhos se descobriam, cheios de respeito pelas suas nobres qualidades de alma e pela superioridade da sua intelligencia?

Uma outra causa influira porém, além d'estas, no espirito de Bertha e no mesmo sentido que ellas; ainda que á primeira vista se podésse julgar que diversa deveria ter sido a sua acção.

Esta causa fôra a frieza, a quasi hostilidade delicada com que Jorge a tractava. Bertha não se illudia. Via bem claro que Jorge lhe fallava sempre constrangido, e como se tivesse pressa de interromper um dialogo, que o impacientava. Ás vezes havia nas palavras que d'elle obtinha, um leve tom de ironia, que ella não sabia a que attribuisse. Este proceder de Jorge deu que pensar a Bertha. Formando um conceito elevado do são juizo e da seriedade do joven amigo de seu pae, convencia-se de que aquellas maneiras frias com que era tractada por elle, não podiam deixar de ter um fundamento. E este fundamento occulto procurava-o Bertha com ancia em si mesma, estudava profundamente o seu proprio caracter, na esperança de descobrir a solução d'este enigma que a affligia; e ao mesmo tempo estudava em Jorge o effeito dos esforços com que fazia por vencer aquella prevenção, qualquer que fosse.

Succedeu o que era natural que succedesse. Não é sem perigo que a imaginação de uma rapariga como Bertha se entrega ao estudo de um caracter de rapaz, como o de Jorge, que lucra sempre em ser estudado e conhecido. Á medida que caracteres como este melhor se observam, mais virtudes se lhes descobrem, ao inverso de outros, cujos vicios latentes vão a pouco e pouco transparecendo no decurso de uma attenta observação, e destruindo a impressão favoravel que ao principio produziram.

Bertha reconheceu um dia que não obrigára impunemente o espirito a pensar a todo o instante em Jorge.

Assustou-a a descoberta, mas o effeito já não podia evital-o. Inquieta com os novos sentimentos que lhe invadiam o coração e a levavam a estas vagas apprehensões, áquellas tristezas que tão frequentes lhe estavam sendo, não era outro o motivo da distracção com que escutára a mãe e da melancolia em que se deixou ficar á janella, depois que ella sahiu.

De repente estremeceu.

Jorge, que já não procurava occultar-se nas visitas que fazia a Thomé, e dava aos seus actos uma publicidade mais conforme com o seu caracter, acabára de entrar no pateo da Herdade, e desmontando-se, prendia o cavallo, em que viera, ao esteio da ramada.

Alguns criados que andavam por alli, occupados em diversos serviços de lavoura, descobriram-se ao vêl-o entrar. Jorge cortejou-os com affabilidade e passou a interrogal-os sobre promenores de trabalho em que elles se entretinham. Os homens davam-lhe as informações pedidas com os maiores signaes de deferencia.

Depois Jorge subiu lentamente as escadas que conduziam á sala onde estava Bertha. Ao vêl-o subir o primeiro degrau, ella tentou retirar-se; mas susteve-a uma inexplicavel hesitação, e quando Jorge abriu a porta, ainda a encontrou na sala.

O olhar de Jorge desviou-se de Bertha, como se contrariado com a sua presença.

— Vim talvez importunal-a? Perdoe. Ignorava que a acharia aqui — disse Jorge com apparente placidez.

Bertha não estava menos constrangida, ao responder-lhe:

— Importunar-me? De maneira alguma.... Eu é que sinto que meu pae não esteja em casa, que é de certo quem o snr. Jorge procurava.

— Ah! seu pae não está em casa?

— Não; sahiu agora mesmo.

Bertha não ousou dizer para onde.

O nome da Casa Mourisca recordaria a scena do jantar, e Bertha tremia de recordal-a diante de Jorge.

Este caminhou para a janella, distrahidamente. E passeiando a vista por os campos, perguntou, sem ainda olhar para Bertha:

— Não sabe se o pae tardará muito?

— Eu... julgo que sim... Mas talvez minha mãe o possa informar melhor.

A proposito chegava Luiza para dar as informações precisas e para fazer cessar o constrangimento d'aquelle dialogo, cuja prolongação seria um martyrio para ambos.

— Ah! snr. Jorge, snr. Jorge — exclamou Luiza logo que o viu — ainda bem que veio, e pena é que não viesse meia hora mais cedo.

— Então era cá tão necessaria a minha presença?

— Ora se era! Eu ponho as mãos n'umas horas se estando cá o snr. Jorge, se mettia aquella scisma na cabeça do meu Thomé.

— Que scisma é essa de que falla?

— Pois então não sabe para o que havia de dar áquelle homem de Christo?

— Não sei, não.

— Ó Bertha, então tu não disseste ao snr. Jorge para onde teu pae foi?

— Eu... eu ignorava...

— Ora adeus! Se eu não tenho fallado de outra coisa, desde que elle sahiu! Ignorava! Vocês sempre teem coisas! Pois o meu Thomé está a estas horas na Casa Mourisca.

— A fazer o quê?

— Isso só elle sabe e Deus. Mal almoçou foi para lá com tres criados. Diz elle que já que o fidalgo teima em lhe pôr as chaves em casa e que todo se espinhou por elle lhe querer ser prestavel, vae fazer o bem que podér a sua familia, e melhorar a quinta e a Casa Mourisca, e que ainda que tenha de empenhar os seus teres e os dos filhos, se ha de vingar do fidalgo, fazendo-lhe todo o bem que estiver na sua mão. E tirem-lhe lá isso da cabeça!

— É uma alma generosa a de Thomé, mas eu o dissuadirei d'essa vingança, que viria transtornar os meus planos e tirar-me a gloria, a que aspiro, de trabalhar por minhas proprias mãos n'essa obra de restauração.

— Eu não o disse? «Thomé tu não faças nada sem fallares com o snr. Jorge.» Mas qual! Bem lhe importava elle com o que eu prégava! É um bom-serás o meu Thomé. Em vinte annos de casada, nunca me deu um desgosto. Póde haver maridos tão bons como elle, melhores não posso crêr que haja. Devo dizer o que é verdade. Mas, lá de quando em quando, em se lhe mettendo umas scismas na cabeça! adeus, minhas encommendas! já se lhe não dá volta. Só o snr. Jorge. Elle lá ao snr. Jorge ainda cede. E o que elle lhe não fizer escusam ahi de vir os poderes do mundo, que nada fazem. Lá o snr. Jorge! credo! Isso basta ouvil-o fallar em si. Ora, não é agora por estar presente, mas razão tem elle para fazer o que faz.

— Obrigado, snr.ª Luiza.

— Obrigado por quê? Ó filho, não, a minha bôca não é para gabar quem não o merece. Mas, diga-me cá, que rapaz ha ahi que faça o que o menino faz? Que na sua idade, em que emfim todos sabemos que o que se quer é brincar, olha como um homem por a sua casa, como nem muitos velhos sabem. E depois, ó snr. Jorge, sempre lhe digo que ainda ha bem poucos dias estes olhos choraram bastantes lagrimas por sua causa.

— Por minha causa?! Pois eu fil-a chorar, snr.ª Luiza?

— Oh! não foi por mal que me fizesse, foi porque emfim ... ha certas acções, que bolem cá dentro com uma pessoa e... quando me contaram o que se passou em sua casa, com aquelles vadios de seus primos, e em que o menino...

— Oh! não fallemos n'isso, snr.ª Luiza, que não vale a pena.

— Se não vale!... Olhe que não fui eu só que chorei. E Bertha?

— Ah! sinto devéras ter sido motivo de um desgosto para Bertha — disse Jorge no tom de que habitualmente usava fallando d'ella.


Bertha não pôde responder.

— Desgosto? — acudiu Luiza — Ora essa! Antes ella deve agradecer-lhe; e querem vêr que ainda o não fizeste, Bertha?

A confusão de Bertha augmentou com esta arguição da mãe.

Jorge atalhou:

— Eu é que me esqueci de pedir a Bertha perdão por haver dado ensejo, com os meus actos, a que o seu nome andasse por bôcas de pessoas a todos os respeitos indignas de pronuncial-o. Coisas minhas; ando tão alheio ao tracto do mundo, que a cada passo caio n'estas imprudencias, e sacrifico os outros, sem o querer. Bertha tem razão para estranhar este caracter bravio; mas espero que me perdoará.

Bertha ia a responder, mas era tal a sua commoção, augmentada pelo modo por que Jorge dissera estas palavras, que sentiu não lhe ser possivel formular uma resposta; os olhos inundaram-se-lhe de lagrimas e o rosto trahiu-a.

Levantando-se agitada, sahiu da sala em silencio, como se precisasse de estar só para desafogar em lagrimas a oppressão que a angustiava.

Luiza viu-a sahir e ficou admirada. Olhou para Jorge com estranheza, olhou para a porta, como se não soubesse explicar a scena a que assistira.

— Estas raparigas teem uns modos! Já viram uma coisa assim?! — murmurou ella, passada a primeira surpreza. — Queira perdoar, snr. Jorge.

Igualmente enleiado, Jorge procurou mudar o sentido da conversa, fallando outra vez de Thomé, em procura do qual sahiu poucos minutos depois.

Assim que o viu deixar a sala, Luiza ficou pensativa por algum tempo e no fim disse em voz alta, como era costume seu:

— Deixal-os. Se assim fosse, tanto melhor. Coisas mais incríveis se teem visto. Seja o que Deus quizer!

Ao passar no patamar das escadas que davam para o quinteiro, Jorge encontrou alli Bertha, que parecia esperal-o. Cortejando-a, procurou nos olhos d'ella o vestigio de lagrimas.

— Snr. Jorge — disse-lhe Bertha, com voz triste e levemente tremula — perdoe-me a minha perturbação de ha pouco. Fui obrigada a sahir da sala sem lhe dizer nem uma simples palavra de agradecimento por o muito que lhe devia; mas creia que não é porque o desconheça.

— O que me deve! Então quer que lhe repita o que já lá dentro lhe disse? Eu sou que tenho a pedir perdão.


— Basta, snr. Jorge — atalhou Bertha, tentando sorrir, mas raiando-lhe o sorriso por entre mal contidas lagrimas, como o sol no meio da chuva do inverno. — Hoje não... mas... em outro dia... ha de dizer-me por que não é meu amigo.

Jorge estremeceu, e olhando para ella repetiu:

— Por que não sou seu amigo?! Que quer dizer, Bertha?

— Oh! creia que ha signaes, que não enganam. Seja o que fôr, mas no seu pensamento ha alguma coisa contra mim, snr. Jorge. É pouco dissimulado, bem vê, não o póde disfarçar.

— Bertha! mas que criancice! Pois que ha de haver contra si no meu pensamento?

— Não sei. Um dia m'o dirá; não é verdade? É muito leal e muito generoso para não m'o dizer. Bem vê que preciso sabêl-o para me emendar; porque... eu desejava que fosse meu amigo, snr. Jorge. Todos o respeitam, todos fallam na sua generosidade; espero que não a desmentirá commigo.

— Porém... — ia Jorge a objectar, quando Bertha o interrompeu, dizendo:

— Agora não, agora não. Lembre-se só de que eu fico acreditando que será sincero commigo, no dia em que eu o interrogar, e que de certo não se recusará então a fallar-me com franqueza. Adeus, snr. Jorge. Creia que desejava devéras que fosse tão meu amigo, como é de meu pae.

E retirou-se depois de pronunciar estas palavras.

Jorge desceu vagarosamente as escadas, montou distrahido o cavallo que o aguardava no quinteiro e deixou-lhe a redea livre, de maneira que o animal seguiu a passo o caminho da casa, que por tanto tempo lhe déra abrigo, o caminho da Casa Mourisca.

Desapercebidamente ia passando Jorge por todos os logares intermedios. As palavras de Bertha, animadas por aquella sentida commoção, que a dominava ao fallar-lhe, estavam-lhe ainda nos ouvidos, e nos olhos a imagem da gentil rapariga, em quem uma grave expressão de dôr mais realçava a belleza.

— E se voltar a interrogar-me — pensava Jorge — que posso eu dizer-lhe? que devo confessar-lhe? Nada. Pois que tenho eu contra ella? Pobre rapariga! Mas é certo que me parece que tenho sido um tanto rude, um tanto desabrido... E porquê?

Jorge parecia n'este momento estar sondando o fundo do seu proprio coração, para investigar a verdade. De repente fez um movimento com a cabeça, como tentando regeitar uma ideia pertinaz.

— Mas isto não póde ser, Senhor. Isto é uma loucura que não tem razão de existir. Pois não hei de ter força de a abafar á nascença? Acaso o sangue de minha idade tambem me ha de fazer doidejar como aos outros? Eu felizmente não possuo o temperamento de Mauricio e hei de vencer na lucta, hei de. Mas em todo o caso é uma puerilidade a maneira por que estou procedendo com Bertha. Porque é certo que o modo por que a tracto não é natural. É medo de me trahir? Mais me traio ainda por esta fórma. É despeito por as attenções que a vejo dar a outro?... a meu irmão?! Mas é uma vileza da minha parte... A meu irmão!... É verdade que se elle a amasse devéras... mas eu que o conheço... É uma loucura a final, é o que é. E fiem-se no juizo de um rapaz de vinte annos?! Ahi estou eu tão doido como qualquer d'esses estouvados. E o mais é que a mim é que se não perdoaria a loucura. A loucura em um rapaz de juizo é um delicto imperdoavel. Se soubessem por ahi... se descobrissem... «E quem havia de dizer! Ora vejam, um rapaz que parecia tão ajuizado!» É como elles principiam logo. Ai, tem pesadas responsabilidades o que na minha idade mereceu que lhe chamassem «um rapaz de juizo.» É preciso a cada momento suffocar a revolta do temperamento e da idade, luctar incessantemente com a imaginação... E hei de luctar! É forçoso que não deixe sahir cá de dentro os meus desvarios de rapaz. Doideje o coração á sua vontade, comtanto que só eu o saiba... Mas a meta é commigo e não com ella... Bertha tem razão em perguntar-me o motivo da minha hostilidade. A minha hostilidade! Ah que se ella tivesse um olhar mais penetrante... D'isso é que me receio... Não ha que vêr, hei de preoccupar tanto, tanto, tanto a minha cabeça com algarismos e negocios, que hei de por força perder a consciencia dos affectos, e é assim que hei de matal-os.

N'este momento vencia Jorge o declive que levava á porta principal da Casa Mourisca. O caminho desaffrontado n'aquella altura de arvores e de sebes altas subia á vista do casal de Thomé e permittia descobrir na encosta fronteira as veredas que para lá conduziam.

Jorge desviou naturalmente a vista para aquelle sitio.

Na varanda de entrada divisava-se ainda o vulto de Bertha, na mesma posição em que a deixára.

Alvoroçou-se o coração do rapaz com isso; ao mesmo tempo porém ia subindo na direcção da Herdade, um cavalleiro que elle reconheceu ser Mauricio.

Esta nova descoberta desagradou-lhe manifestamente. Purpurearam-se-lhe as faces por momentos, e a fronte contrahiu-se-lhe com uma expressão de desgosto. Pela primeira vez fustigou o cavallo, que até alli deixára entregue ao capricho.

Mauricio, que tambem da outra margem avistára o irmão, fez-lhe um acêno com a mão, ao qual Jorge respondeu apontando-lhe para a Casa Mourisca, como a designar-lhe o destino do seu passeio. Mauricio replicou-lhe com um movimento de braço, exprimindo que o seu giro era mais extenso e para o outro lado. E na direcção que seguia era inevitavel a passagem por casa de Thomé da Povoa.

— Por isso ella se demorou na varanda — murmurou Jorge com amargura — e proseguiu olhando para Mauricio:

— Aquelle póde ser louco á sua vontade; ninguem lh'o estranhará, ninguém lhe fará d'isso um crime. E a final talvez que de nós dois não seja elle o mais louco. A loucura é inseparavel do homem; umas vezes toma-lhe a cabeça e deixa-lhe em paz o coração, que nunca se empenha nos desvarios a que ella é arrastada; é o caso de Mauricio; outras vezes ha na cabeça a frieza da razão e ao coração desce a loucura para o perturbar com affectos; quer-me parecer que é o que succede commigo.

O cavallo parou espontaneamente á porta da Casa Mourisca e arrancou Jorge á corrente de vagas cogitações em que lhe fluctuava o espirito.


— Vamos, Jorge — dizia elle a si mesmo, ao desmontar — já agora é necessario ser rapaz de juizo até ao fim. Tu não tens direito de condescender com a tua mocidade, homem. Ninguém te relevaria os ardores da juventude, porque todos te suppõem o sangue de gêlo.

E serenando outra vez a physionomia, até alli um pouco alterada sob a influencia de encontrados pensamentos, entrou para a quinta em procura de Thomé, que o precedêra ahi. Quando, depois de algumas pesquizas, Jorge, guiado por o som de vozes e por um ruido de sachos e de enxadas, conseguiu avistar o fazendeiro, não pôde reter um sorriso de estranheza e de sympathia, que o espectaculo que via lhe provocava.

E tão grato effeito parecia produzir-lhe esse espectaculo, que, sem ter querido interrompêl-o com a sua presença, continuou por algum tempo, observando-o.

Effectivamente para quem soubesse a verdadeira significação dos actos em que Thomé estava empenhado n'aquelle momento, não seria para estranhar o sorriso de Jorge, nem a sua expressão duplice de sympathia e de espanto.

Thomé não havia meditado no plano para a vingança que jurára contra o fidalgo. Anciava por principiar a pôl-a em pratica, e encetou-a sem methodo nem systema. Intimou os criados para que o acompanhassem, sem que tivesse ainda pensado no que lhes mandaria fazer.

Chegados que foram á quinta, fixou-se na primeira avenida á entrada e ahi principiou a azafama, arrancando as hervas inuteis, decepando os ramos mortos, varrendo as folhas cahidas, amparando os arbustos derrubados sobre o caminho, desassombrando as plantas affrontadas e á mingua de sol, enxugando e nivellando os passeios alagados, e desobstruindo os encanamentos de rega. A rua ficou que era um primor.

No momento em que Jorge o avistou, limpavam os criados o limo depositado em um tanque, emquanto Thomé, suando, tentava erguer sobre o pedestal a estatua de pedra de não sei que divindade pagã, que havia muitos annos repoisava em leito de malvas e ortigas, coberta de lichens esverdeados.

— É dia de festa por cá, á balburdia que estou vendo! — disse Jorge, adiantando-se emfim, e apparecendo aos olhos do fazendeiro, que se voltou precipitado ao ouvir-lhe a voz. — Quem visse dizia que passa por aqui procissão, em que nós somos mordomos.

Thomé, readquirindo a sua presença de espirito, respondeu:

— Procissão não digo, mas festa em que eu sou mordomo, ha de haver aqui, se Deus me der saude.

— Bem, visto que o Thomé é o juiz da festa, póde dispôr do seu tempo sem pedir licença a ninguem. Por isso ha de conceder-me um momento de conversa.

— Não, não, snr. Jorge, tenha paciencia; mas eu tenho grande empenho em dar andamento a isto.

— E eu absoluta necessidade de fallar-lhe.

— Ora valha-me Deus! E eu então que estou quasi a adivinhar o que me vae dizer!

— Talvez que não.

— O que lhe affirmo é que se me quer tirar da cabeça isto que se me metteu cá dentro, é tempo perdido.

— Não faça conjecturas anticipadas, Thomé. E sente-se primeiro.

— Pois vá lá. Vocês sigam por ahi adiante — disse o lavrador, voltando-se para os criados — e além n'aquella nora....

— Póde mandal-os embora, Thomé — atalhou Jorge.

— Embora? Adeus! É o que eu digo! Olhe que se é com o fim de me dissuadir que...

— Mande-os embora, que está a cahir meio-dia e pouco serviço podem fazer até lá. De tarde ou ámanhã continuarão, se o Thomé achar conveniente.

— Não, não, hei de achar. Emfim vão lá á sua vida, mas em sendo duas horas...

— Ora adeus; deixe as ordens para lh'as dar em casa, que tem tempo — atalhou pela segunda vez Jorge.

— Pois tenho, tenho, mas emfim... Ide lá com Deus.

E ficando só com o joven fidalgo, Thomé da Povoa cruzou os braços, e interrogou em tom de amigavel enfado:

— Aqui me tem. Então o que é que me quer?

Jorge enfiou o braço no d'elle e encaminhando-o para o tanque de pedra, limpo e esfregado de pouco pelos criados da Herdade, disse-lhe:

— Vamos sentar-nos alli, que o que eu tenho a dizer-lhe é serio e precisa de ser tractado com socego e descanço.

E sentando-se ambos na borda do tanque, voltados na direcção da Casa Mourisca, cuja fachada se descobria por entre uma das arvores, Jorge proseguiu:

— Agora que estamos sós, Thomé, vae dizer-me o que significa toda esta brincadeira.

Á palavra «brincadeira», o fazendeiro deu um salto.

— Eu não o disse?! Elle ahi vem com as suas reflexões! Por essa esperava eu. Mas não tem duvida, eu estou prompto para explicar-lhe a brincadeira. Se o snr. Jorge visse, como eu vi, olharem as minhas acções como insultos, não serviços, que bem sei que não os fiz, mas pelo menos bons desejos, como são os que tenho de lhe ser util e aos seus, tambem não havia de soffrer com tanta paciencia a injustiça, que não procurasse tirar desforra.

E Thomé, levantando-se, pôz-se a passeiar agitado.

— Mas venha cá, Thomé, quem lhe diz que não tem razão em se offender e até em se vingar nobremente, como emprehendeu fazêl-o?

— Sim, mas então não chame brincadeira ao que faço — tornou o fazendeiro amuado.

— Chamo, por vêr que não realisa a sua vingança por essa fórma. O Thomé, se pensar a sangue frio, ha de ser o primeiro a concordar commigo. Ora diga, pois acha que a obra mais difficil de levar a effeito em nossa casa é a limpeza d'estas ruas e d'estes tanques? Acha que vale a pena principiar por aqui a exercer a sua actividade? Se um dia entrando em bom caminho a administração dos nossos bens, nos restituir, como espero, o pleno gozo d'elles, livre das demandas, dos onus e da usura que os definham, não lhe parece que os nossos criados farão em dois ou tres dias obra correspondente ao valor da sua vingança?

— Lá iremos. Da quinta subirei os degraus e entrarei em casa, que remoçarei do portal até aos telhados.

— E que é tudo isso para o muito que ainda haveria por fazer, e onde os seus auxilios poderiam ser-nos mais vantajosos? Não vale muito mais tudo o que já tem feito? O Thomé bem sabe que o nosso grande mal não está n'aquellas pedras cahidas, isso é apenas o symptoma da doença, que é preciso combater primeiro.

— Pois sim, mas... — titubeou o lavrador já abalado.

— Sabe o que consegue com isso, Thomé? consegue uma vingança apparente, que falla mais aos olhos, isso é verdade; mas não a vingança real, generosa e nobre, representada pelo seu empenho em auxiliar-me devéras na obra que emprehendi. Consegue contrastar as minhas ambições; sou eu quem mais soffro da sua vingança. Esta casa, como sabe, é apenas uma pequena parte da nossa propriedade, mas é a que, por assim dizer, a representa. O povo, emquanto não vir renovar aquellas ameias cahidas, aclarar aquellas paredes negras, restaurar aquella capella abandonada, nunca se persuadirá de que a nossa casa conseguiu escapar do naufragio em que esteve para perder-se. Quando eu tivesse assentado em bases solidas esta propriedade que encontrei vacillante, quando podésse desafogadamente chamar meu ao mesmo que meus avós chamaram d'elles, havia então de renovar esta velha habitação, que só então teria o direito de sorrir defronte da sua Herdade, Thomé, e d'essas alegres casas que ahi se estendem por a collina abaixo. N'esse dia ficaria o povo sabendo que eu tinha cumprido um dever e havia de respeitar-me por força. Mas o Thomé quer privar-me d'essa gloria. Vae fazer sorrir esse fiel confidente dos nossos infortunios, quando ainda o sorriso é uma mentira e uma ironia aos seus proprietarios. Depois, embora eu lucte e obre prodigios, e consiga vencer, o povo dirá: Os fidalgos da Casa Mourisca estão hoje melhor do que já estiveram. Houve um homem, o dono do casal alli defronte, que teve compaixão d'elles e lhes restaurou por esmola a casa que cahia em ruinas. Não fallarão nos seus outros valiosos serviços, que não os conhecem, nem apreciam; não fallarão d'aquelles de que me não envergonho, antes me orgulho de confessar. Fallarão apenas do unico que me humilha, do unico que tem effectivamente um caracter de esmola, do menos importante de todos, do que se realisaria com o rendimento da nossa menor tapada, depois de remidos. Agora veja lá, Thomé; se o seu intento é realmente o de humilhar-me, prosiga na sua obra, que eu prometto não a embaraçar com os meios legaes que não desconhece; mas se a sua vingança é, como supponho, mais nobre, rnais digna de si, se ousa a fazer-nos bem, apesar do orgulho que lh'o rejeita, sem se lhe importar que um bem seja apparente para que os outros nos vejam humilhados, então deixo ao seu juizo resolver se este é o melhor caminho que tem a seguir.

Thomé da Povoa ouviu tudo isto com os olhos no chão, apertando o labio inferior entre o polex e o index e balanceando lentamente com o corpo.

Depois que Jorge acabou de fallar, permaneceu assim ainda por algum tempo, e acabou por dizer:

— Bem; visto isso desisto. Engulirei os meus protestos, conforme podér. Não digo que não tem razão, acho até que a tem. Quando me resolvi a isto, pensava só no fidalgo, não pensava no snr. Jorge... Agora vejo que fui muito apressado. Muito bem, farei por me resignar. Lá me custa, mas...

— Não lhe peço que desista da sua vingança. Quero tambem que um dia a verdade obrigue meu pae a reconhecer que a nobreza não está só nos pergaminhos e que a alliança com um homem honrado honra sempre quem a contrahe.

Thomé já tinha lagrimas nos olhos, ao apertar a mão a Jorge.

— Peco-lhe até que continue o seu auxilio, sem o qual eu nada faria, e até vou indicar-lhe um genero de serviços, que espero dever-lhe.

— Falle, falle, snr. Jorge, o que o senhor de mim não conseguir, ninguem consegue.

— Ha muito que eu desejo ir ao Porto. A especie de exilio, a que meu pae me condemnou, facilita-me agora essa empreza. Queria conversar directamente com os nossos advogados na demanda do Casal do Reguengo. Parece-me que ha circumstancias de valor que no processo não se tem feito sentir devidamente. Depois aquelle documento que lhe mostrei não me sahe da ideia. Emfim, póde ser uma illusão minha, mas tenho com tanto afinco estudado a questão, que me parece que vejo claro n'ella. E como sabe, Thomé, se ella se nos resolvesse favoravelmente era meia victoria ganha.

— Isso era.

— Portanto quando o Thomé podér dispôr de si, desejava que me acompanhasse á cidade, para me apresentar aos juizes e letrados, que conhece. Depois, tenho ainda outro fim em vista; desenredadas estas teias que me embaraçam, preciso de um grande capital para encorporar á terra, para tirar d'ella os recursos, que d'outra maneira não póde dar. A sua generosidade e os seus sacrificios não podem ir tão longe; graças a elles, já a usura me deixa respirar mais livremente; e já a equidade substituiu o dolo de muitos dos contractos de nossa casa. Mais tarde a escala do emprestimo tem de subir forçosamente para realisar em grande os aperfeiçoamentos agricolas que em pequeno vou ensaiando. O capital particular não me bastará para esse intento. Lembrei-me da nova companhia de Credito Predial, que se installou agora no paiz. Preciso pois informar-me dos negocios attinentes a estas operações e da regularidade de alguns titulos que possuimos. Póde auxiliar-me no que lhe peço?

— Amanhã partiremos, se quizer.

— Pois seja amanhã. E não acha que encaminho melhor a sua vingança por este lado, Thomé?

— Acho que quem tem o juizo do snr. Jorge póde muito bem passar sem o auxilio de pessoa alguma. Mas emfim cá estou ás ordens.

Passada meia hora, entrou Thomé em casa e participou á mulher que ia no dia seguinte ao Porto, na companhia de Jorge, e que talvez ahi se demorassem alguns dias.

Luiza ficou comprehendendo que os projectos de restauração da Casa Mourisca haviam sido pelo menos adiados, e com isto cresceu n'ella a admiração pelo caracter de Jorge.

Mas Luiza tinha durante aquella manhã recebido impressões, que não se atrevia a revelar totalmente ao marido, mas que a não deixavam estar socegada, emquanto não transpirassem em vagas insinuações.

Estavam á janella os dois esposos, conversando placidamente de Jorge e de D. Luiz, e da proxima jornada á cidade, quando Luiza, depois de uma pausa na conversa, disse ex-abrupto para o marido:

— Ó Thomé, e que dirias tu, se um dia a tua filha morasse n'aquella casa?

E, ao dizer isto, designava com a cabeça a Casa Mourisca.

Thomé olhou para a mulher, como se aquellas palavras lhe fizessem duvidar da firmeza do juizo d'ella.

— Que queres tu dizer com isso?

— Ora! isto de rapazes e raparigas... quando se vêem a miudo...

Thomé córou, exclamando com mau modo:

— Tu estás doida, Luiza?

— Ora adeus! Quem sabe lá?

— Ó mulher, não queiras que eu perca a confiança que sempre tive no teu bom juizo.

— Eu não digo... mas emfim...

— Ora adeus, adeus! — atalhou Thomé, quasi agastado — ha certas coisas que nem a brincar se dizem.

— Pois que mal havia?...

— Mau! Ó Luiza, peço-te por favor que te não ponhas com essas graças. Ora para o que te havia de dar!

— Então, porquê?...

— Ora, porque não. Ha certas lembranças que até me envergonho de pensar n'ellas.

Luiza, em vista da repugnancia do marido, não ousou insistir. Mas a pobre mulher, com as ambições de mãe, já não podia deixar de olhar a Casa Mourisca e imaginar o effeito que produziria a sua Bertha em uma das balaustradas ou das ogivas d'aquelle antigo edificio.