Os Fidalgos da Casa Mourisca/XXI
Jorge apenas a Gabriella deu parte do seu projecto de jornada.
No dia seguinte partiu effectivamente para o Porto na companhia de Thomé da Povoa.
D. Luiz, ainda firme no proposito de não querer vêr o filho, nem ouvir fallar d'elle, nada soube d'esta excursão.
Mauricio estranhou a ausencia do irmão; mas, desde que a baroneza lh'a explicou, dizendo-lhe a verdade, não pensou mais em tal.
O padre, quando soube que Jorge tinha ido ao Porto, cidade que, no conceito do egresso, era um fóco de corrupção, e onde mais risco havia para a juventude de infeccionar-se com a peste da maçonaria e outros males correlativos, abanou tres vezes a cabeça, em signal de mau prognostico; mas não ousou fallar das suas apprehensões ao fidalgo, porque andava desconfiado, havia algum tempo, com os humores em que o via.
De facto D. Luiz, depois de algumas das sevéras palavras que ouvira a Thomé da Povoa, não podia vencer um tal ou qual resentimento contra o padre, cuja imprevidente gerencia tinha talvez concorrido para o estado precario da sua casa e as humilhações que soffria.
Apenas attenuava este resentimento a ideia fatalista de que a decadencia das casas nobres era inevitavel, e que baldado era tentar reagir.
Para elle o padre não podia ser mais que o instrumento cego da sua desgraça irrevogavelmente decretada.
Toda a energia moral de D. Luiz exercia-se pois em encarar com rosto firme a adversidade, e cahir sem perder na quéda a fidalga compostura do porte.
D'estas successivas impressões que recebêra nos ultimos tempos resultava para o animo, já de indole irritavel de D. Luiz, uma impaciencia, uma quasi permanente exaltação nervosa, que augmentava á medida que se lhe depauperavam as forças e o vigor corporeo. Quem melhor sabia agora lidar com elle era a baroneza. O instincto feminino é o mais proprio para descobrir o lado accessivel d'estes caracteres azedados e para movêl-os sem os magoar.
Frei Januario, que percebia isto, afastava-se cada vez mais do quarto do fidalgo e cada vez mais se aproximava da dispensa e da cozinha.
Em casa de Thomé proseguiam os trabalhos agricolas sob a activa vigilancia de Luiza, que, na ausencia do marido, tomava a seu cargo aquella provincia do governo domestico.
Bertha olhava então pelos irmãos e pelo arranjo da casa.
Havia porém alguns dias que uma ideia fixa não deixava tranquillo o espirito de Bertha.
Quando, ao cahir da tarde, os ultimos raios do sol parecia encandecerem as vidraças da Casa Mourisca, e á sua luz se tingiam de um leve doirado as frondes dos carvalhos seculares da quinta, ainda não despidos pelo outomno, apoderava-se de Bertha uma saudade intima, profunda, que lhe desafiava as lagrimas. Toda a infancia era evocada então. Resurgiam-lhe as recordações dos jogos, dos risos, das alegrias que havia gozado n'aquelles sitios onde os olhares se lhe fixavam com insistencia, e a pouco e pouco cresceu n'ella um natural e vehemente desejo de visital-os, de tornar a vêr de perto aquellas arvores, fontes e salas, cada uma das quaes lhe guardava uma memoria do passado.
As chaves d'esse como relicario das suas mais gratas recordações, tinha-as ao alcance da mão; a distancia não era grande, as tardes corriam amenas e no campo ninguem estranharia a uma rapariga um passeio d'aquelles.
A ideia ganhou vulto e Bertha resolveu realisal-a.
Tomou a chave que abria uma das pequenas portas da quinta, e uma tarde sahiu e dirigiu-se lentamente à Casa Mourisca. Em pouco tempo chegou á ponte que reunia as duas margens do ribeiro do valle. Ao transpol-a, porém, reteve-a um vago rumor que soava nos ares. Eram as surdas detonações de uma trovoada longinqua.
Bertha olhou em roda um tanto inquieta.
O colorido do céo e o dos campos era bello, mas pouco tranquillisador.
O firmamento estava esplendidamente pintado, não com o azul uniforme dos dias serenos, mas com as variadas tintas que recebia da influencia electrica de uma tempestade imminente. Grandes nuvens isoladas illuminavam-se, ao sol poente, de reflexos doirados. O campo, em que ellas se desenhavam, ostentava todas as gradações do azul, desde o anil carregado até um quasi verde esvaecido que interrompiam leves e longos stractus tingidos de roixo e violeta. Ao nascente, no seio de um denso cumulo de vapores amarellados, desenhava-se vagamente o magestoso iris. O verde das arvores e dos prados recebia d'esta luz uma cambiante mais viva. Principiava a soprar a viração quente e rasteira, que levantava em redemoinhos as folhas cahidas no chão.
Tudo annunciava uma tempestade proxima.
Bertha não ousou ir mais adiante.
A visinhança da noite e da tempestade obrigou-a a retroceder.
N'este momento porém entrava na ponte um cavalleiro, que assim que avistou a filha do Thomé, desmontou com ligeireza e dirigiu-se para ella a pé.
Era Mauricio.
Bem desejaria Bertha evital-o, mas já não o podia fazer sem uma affectação mais indiscreta do que a propria entrevista.
Em poucos momentos Mauricio estava a seu lado.
— Até que finalmente a encontro, Bertha. Quasi me tinha chegado a convencer de que uma fatalidade ou um proposito nos separava. Ha tanto tempo que não conseguia vêl-a!
— E procurava-me, snr. Maurício?
— Todos os dias o tenho feito.
— O mais natural era procurar-me em casa; ahi é que passo a maior parte do meu tempo, auxiliando minha mãe, que bem precisa de quem a ajude.
— Em casa? E seria eu bem recebido lá?
— Já alguma vez meu pae deixaria de receber, como merecem ser recebidos, os filhos do snr. D. Luiz?
— Como merecem — ahi é que está a dificuldade. E se a consciencia me dissesse que eu não merecia esse bom acolhimento?
— Muito grandes deviam ser as suas culpas, para que meu pae se esquecesse da amizade que lhes deve, a si e aos seus, snr. Mauricio. Creio bem que a consciencia não lhe diz isso.
— Não, Bertha. Eu julgo-me com imparcialidade. Sei o que ha de reprehensivel no meu proceder inconsiderado; ainda que nada me peza na consciencia, emquanto ás minhas intenções.
— É o essencial.
— Não é para os outros. Por os actos me julgam e esses ás vezes condemnam-me.
— Nem todos os seus actos hão de ser maus. Os bons desfarão os effeitos dos outros — tornou-lhe Bertha, sorrindo.
— Succederá isso comsigo, Bertha? Não estarei ainda condemnado no seu conceito?
— Se principio por ignorar as culpas de que é accusado!
Maurício calou-se por algum tempo, como concentrando alentos para mais difficil resolução, e rompeu depois com maior vivacidade:
— Pois bem; escute-me e julgue depois; condemne ou absolva, conforme a consciencia lh'o dictar. Não lhe vou fazer uma geral confissão da minha vida, apenas dos ultimos tempos d'ella. As acções boas ou más, os actos irreflectidos, a que me impelle este temperamento estranho com que nasci, tenho-os ultimamente executado sob o influxo de uma paixão forte, irresistivel, que nasceu e assoberbou rapidamente todo o meu coração, Bertha, desde que a vi, quando voltou de Lisboa. Com a franqueza propria do meu caracter, com a lealdade que lhe devo, Bertha, confesso-lhe que a amo. Deve têl-o percebido. Eu não sei dissimular. É este amor que me perturba, que me faz ser injusto, desconfiado, louco, que me arrasta a extremos, d'onde não volto sem remorsos.
— Devia pois fazer por destruil-o, vendo a maligna natureza que tem — respondeu Bertha, sorrindo.
— Não zombe, Bertha.
— Não zombo, pois não diz que o arrasta a acções que lhe causam remorsos?
— Mas é por esta incerteza em que estou. Assegure-me porém, Bertha, de que o seu coração é ainda o que em outro tempo conheci...
— Snr. Maurício — tornou-lhe Bertha, d'esta vez sem a menor inflexão de gracejo — seria faltar á amizade que lhe devo, se o deixasse continuar. Quero suppôr que não zomba de mim ao fallar-me d'essa maneira; quero convencer-me de que é sincero, ou de que julga sêl-o, pelo menos, n'essa declaração que me faz, e vou responder-lhe como se assim fosse. Peco-lhe que faça por esquecer isso que diz sentir por mim e que não póde ter futuro.
— Para me dar esse conselho, para ter direito de dar-m'o, é necessario que me faça uma confissão, é necessario que me diga: Eu não posso amal-o.
— Direi: Eu não posso amal-o, snr. Mauricio.
— E será sincera no que diz? Veja bem. Interrogue sómente o coração. Não a amedrontem as difficuldades e as resistencias que possam offerecer-nos. Eu as vencerei, arrostarei eu só com todas.
— Eu disse: eu não posso amal-o, e não: eu não devo amal-o, como n'esse caso diria.
— E porque não póde? Que ha na sua alma contra mim, Bertha, que nem as recordações da infancia me valem? E comtudo eu tinha n'esse tempo adquirido direitos á sua affeição.
— Que valor que dá aos brinquedos da infancia!
— É porque em mim a juventude do coração principiou cêdo. Eu já então sabia amar.
— Mau é que não ache differenca entre o amor de que é capaz agora e o de então; é pois claro que ama como uma criança.
— Com a ingenuidade d'ellas.
— E com a inconstancia tambem.
— Bertha, não me falle assim. Nas suas palavras sinto um tom de duvida que me afflige. Responda-me: porque é que não póde amar-me? Ha já no seu coração outro amor?
Bertha córou e não foi superior a certa confusão, que se esforçou por vencer, dizendo:
— Ainda que não haja, não é isso motivo para o abrir ao primeiro que appareça. Com toda a sinceridade da minha alma lhe fallo, snr. Mauricio. Creia que para todas as pessoas que teem o nome da sua familia ha no meu coração muito respeito, muita estima e muita gratidão. De todos estes sentimentos se póde dar razão. Mas o amor não é assim. Ninguem sabe porque ama ou porque não póde amar. Julgo eu. É uma coisa que se sente, mas que se não explica. Pois não concorda? E agora peço-lhe que me não acompanhe mais longe. Repare que a tempestade está para breve. Espero, snr. Mauricio, que será sempre nosso amigo.
E dizendo isto, estendia-lhe a mão, que Mauricio apertou silenciosamente.
E separaram-se, seguindo direcções oppostas.
Mauricio murmurava:
— E comtudo creio que me amas. Não é essa frieza que me ha de illudir.
Pela sua parte, pensava Bertha:
— D'aqui não vem perigo para o meu coração. Acabei de convencer-me agora. Basta vêr a tranquillidade que sinto. Assim podésse dizer o mesmo do outro.
Mas a Casa Mourisca continuava a attrahil-a. De noite á claridade vaga do luar, ás tardes quando os ultimos e desmaiados raios do sol lhe tremiam na fachada ennegrecida, de madrugada, no meio das neblinas do rio, que phantasticamente o envolviam, a todo o momento emfim, as encantadas memorias da infancia de Bertha adejavam sobre o deserto solar, e as saudades, evocadas por ella, como que se lhe levantavam do coração a encontral-as.
Ás mesmas horas da tarde, repetiu Bertha no dia seguinte ao do seu encontro com Mauricio, a tentativa para visitar o solitario palacio. D'esta vez passou além da ponte, subiu a ladeira da collina opposta, e chegou a tocar com a mão na porta da quinta. Faltou-lhe porém ainda a resolução para a abrir e entrar. Apoderou-se d'ella uma especie de pavor sagrado no momento de penetrar alli. Parecia imporem-lhe respeito aquellas arvores seculares, aquellas heras vigorosas que forravam os muros da quinta e o silencio que pairava n'aquella habitação abandonada. As sombras melancolicas da tarde cresciam, e Bertha retirou-se no fim de alguns momentos, quasi tomada de entranhado terror.
No dia seguinte voltou ainda á Casa Mourisca. Armára-se, ao partir, de maior resolução. Promettêra a si propria não hesitar um só momento ao abrir a porta, para não dar tempo a possuir-se da mesma fraqueza.
Assim fez; ao chegar á porta pequena da quinta, introduziu resolutamente a chave e abriu-a. Estava emfim dentro dos muros da Casa Mourisca. Cobria-a o denso tolde de ramos entrelaçados dos carvalhos, dos freixos e dos cedros, estalavam-lhe sob os pés as folhas crestadas, de que os ventos do outomno haviam alastrado o chão; prendiam-se-lhe aos vestidos as silvas espinhosas, que cresciam á vontade de mistura com os fetos e as ortigas; á sua chegada houve um subito rumor de aves esvoaçando surprendidas, e de reptís escondendo-se por entre a folhagem sêca do chão. O bosque tinha um aspecto de braveza selvagem, adquirida durante longos annos de independencia de cultura. Era esplendida a anarchia d'aquella vegetação.
Bertha parou affectada de inexplicavel susto.
Tudo recahiu em silencio; apenas se ouvia um leve ramalhar das arvores, denunciando a passagem d'uma briza ligeira, a quéda de algum ramo sêco desprendendo-se da arvore, o pio timido de algum passaro escondido, e, um pouco mais distante, o rumor monotono e confuso das fontes e cascatas.
Dissipadas as primeiras impressões, o sagrado terror que infunde no espirito o aspecto de um bosque secular áquella adiantada hora da tarde, Bertha aventurou alguns passos e pôde percorrer os sitios da quinta que lhe eram mais conhecidos.
Quem póde referir as saudades que lhe pullulavam do coração, ao voltar, depois de tantos annos decorridos, áquelles logares saudosos?
Quem não tenha ainda experimentado na vida sensações d'aquellas, nunca chorou as mais sentidas e ao mesmo tempo as mais consoladoras lagrimas que os olhos podem verter.
Voltar com os pensamentos da juventude ou da virilidade, com a experiencia adquirida no tracto do mundo, com a memoria dos dolorosos embates soffridos no meio das luctas da vida, e a impressão das paixões gravada fundo na alma; voltar assim ao logar dos nossos jogos de infancia, dos nossos risos e chóros pueris, uns e outros tão sem razão nem vestigios, olharmo-nos outra vez, depois de longa ausencia, em frente dos objectos que nos assistiram aos brinquedos, e que parece saudarem-nos ainda como se nos vissem crianças, sentirmos em um momento dissipar-se-nos da memoria todos os tempos intermedios e como que resuscitarem as ideias, os gestos, os pensamentos d'aquella época, como se apenas tivessem adormecido para acordarem mais vivos, é uma das mais violentas e ao mesmo tempo mais gratas commocões que póde experimentar uma alma humana; e a que não ceder e se não abrandar sob essa influencia é uma alma perdida para os affectos e para a regeneração.
Poderia a de Bertha estar n'este caso, a d'ella, alma sensivel e amoravel, para a qual o passado era objecto de um fervoroso culto? Poderia olhar sem lagrimas para aquelles logares onde lia como que pagina por pagina a sua vida de então?
Chorou, chorou sentada no banco musgoso, junto de uma fonte, onde ella e Beatriz tantas vezes vinham sentar-se, e onde Jorge e Mauricio corriam a ter com ellas, logo que terminavam as suas horas de estudo.
Era tarde quando voltou a si o pensamento d'aquella digressão pelo passado. Não tinha já tempo d'esta vez de visitar a Casa Mourisca. Procurou de novo a porta da quinta, por onde entrára, e sahiu com saudades d'aquelles logares.
No momento em que Bertha se afastava, dois caçadores, que desciam una pinhal visinho, d'onde se descobria a entrada da Casa Mourisca, viram-n'a e reconheceram-n'a.
— Ó Chico, olha lá, aquella não é a Bertha do Thomé? — disse um d'elles para o outro.
— Nem póde ser outra coisa.
— Só! a estas horas... e próximo da Casa Mourisca! Que quer dizer isto?
— É que vem de lá.
— Mas... a casa não está vazia?
— Tanto melhor. Se lá estivesse o velho, a coisa mudava de figura.
— Mas, falla serio, ó Chico, que conjecturas tu de toda esta historia?
— Que ou o Mauricio ou o Jorge fazem tambem as suas visitas á capoeira.
— O Mauricio foi hoje para a caçada dos Monteiros do Rio-baixo, e o Jorge, segundo ouvi dizer, está no Porto.
— Quod probandum — redarguiu o outro, recorrendo ás suas reminiscencias escolasticas; e, como se receiasse que o companheiro o não comprehendesse, traduziu:
— Isso é o que resta provar.
— Foi o mesmo Mauricio que o disse.
— E tu a dares muita importancia ao que diz o Mauricio! Então não sabes que se o Jorge lhe disser que está Papa, o toleirão é capaz de lhe beijar o pé?
— Mas lá em casa, pelos modos, todos o fazem no Porto.
— Pois ahi é que está a finura. E se elle, pilhando fóra do ninho a rapoza velha, se veio alli estabelecer muito á sua vontade?
— Se eu o acreditasse....
— Que farias?
— Era bem feito dar-lhe uma assaltada.
— Já me lembrou isso, mas é melhor outra coisa. Vigiamos isto a vêr quando a pequena cá volta, temos o Mauricio debaixo de mão e trazemol-o então comnosco. O caso deve ser interessante!
— Apoiado!
— Emquanto a mim, ninguem me tira de que aquelle velhaco do Jorge anda a comer-nos a todos com os seus ares de sancto. Vou ainda jurar que as taes visitas a casa do Thomé levavam agua no bico. Se agora o pilhavamos!
— Era soberbo! Mas o Mauricio anda esquisito comnosco, depois da historia do jantar.
— Deixa que eu o amansarei; era bom que elle estivesse um pouco picado n'esse dia; tudo se arranja, deixa estar.
E os dois caçadores seguiram, combinando e commentando o plano que tinham traçado.
O leitor, que já os conheceu pelos primos do Cruzeiro, fica sabendo que estes esperançosos jovens proseguiam nos seus habitos de vida fidalga, em cata e preparação de escandalos, e cada vez mais implacaveis contra Jorge, cuja desdenhosa frieza para com elles ha muito tempo os irritava, antes mesmo que o acontecimento do dia do jantar viesse augmentar essa irritação.