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Os Filhos do Padre Anselmo/XIX

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Julio de Montarroyo, logo que o brazileiro lhe deu por desoccupada a casa que pertencera a Norberto de Noronha, tomou posse da sua nova propriedade e installou-se n'ella immediatamente, sem mesmo esperar que se fizessem os convenientes e indispensaveis reparos.

Este acontecimento foi celebrado pelos convivas e amigos de Gustavo de Magalhães com um jantar lauto, em que houve discursos, brindes e poesias, como estava combinado muito tempo antes.

O amigo de Gustavo, que tinha adquirido fóros de excentrico, supportou como pôde toda a ruidosa alegria d'aquelles amigos e passada a glorificação, como elles lhe chamavam, encerrou-se na sua habitual tristeza, sem comtudo se mostrar intratavel e esquivo a convivencias affectuosas.

No emtanto, furtou-se obstinadamente a toda e qualquer recepção festiva em sua casa, dando como desculpa a falta de pessoal habilitado para bem servir n'um banquete de cerimonia.

O caso, porém, não era esse.

Julio de Montarroyo considerava um sacrilegio infame fazer resoar os risos da alegria n'aquellas salas onde morreram abafados os gemidos de tamanha desgraça, de tão profunda e inconfortavel dôr.

Elle adquirira aquella casa para recolher n'ella a sua grande tristeza, o lucto eterno do seu coração.

Não podia por isso, ainda que o desejasse, converter aquelle tumulo, em que queria encerrar-se vivo com as suas recordações e os seus desalentos, n'um logar de festivas alegrias, de expansivos affectos.

Os amigos de Gustavo, que o eram tambem seus, comprehenderam-n'o e não se offenderam.

— É um excentrico — dizia o juiz — Não ha que vêr, é um excentrico...

— É um paranoico com a tendencia romantica! — affirmava o medico. — Aquillo desanda n'um volume de lyricas mais hoje, mais amanhã. E talvez esteja ahi a sua salvação.

— Não é nada d'isso, meus amigos — contrariava Gustavo — Este homem é um de tantos incomprehendidos que teem atravessado a vida como o viageiro atravéssa os areaes do deserto, sem jámais encontrar o appetecido oasis. O maior beneficio que lhe podemos fazer é deixal-o entregue á sua grande tristeza, á sua enorme e insanavel dôr.

Julio de Montarroyo começou, pois, a ser uma figura estranha ás alegrias ruidosas d'aquella vida campesina, passada em convivencia intima de amigos.

Os dias do melancholico amante de Helena de Noronha decorriam-lhe n'uma taciturnidade de espirito aterradora.

Encerrava-se horas e horas na sala onde pela primeira e ultima vez fallára a Norberto de Noronha e parecia experimentar um cruel prazer em recordar, em todas as suas tristes minudencias, essa estranha e dolorosa entrevista.

Mandára collocar todos os moveis que serviram a Norberto na sua disposição primitiva. Lá estava a cadeira de rodas, onde o desgraçado agonisou por tanto tempo. E em frente d'ella, passava horas esquecidas a monologar as suas recordações e os seus desgostos.

Um dia, viera ao jardim e sentára-se no caramanchão que olhava sobre a estrada.

Devia ser alli, suppozera elle e confirmara-lh'o depois a irmã de Gustavo, que Helena de Noronha vinha sentar-se muitas vezes, nos tempos felizes da sua infancia, e era por isso mesmo o logar por elle preferido para as suas meditações ao ar livre.

De repente ao portão chegou alguem que fez vibrar a sineta. Julio de Montarroyo debruçou-se na grade do caramanchão e olhou.

Viu um pobre mendigo, um ermitão, de longas barbas brancas, vestindo um garnacho remendado e encostando-se a um bordão. Trazia ao peito, pendente de uma correia, um nicho de folha de Flandres, em que se via a imagem de um Santo Antonio, cercada de flôres artificiaes.

— O que deseja? — interrogou Julio.

— Esmola para Santo Antonio, meu rico senhor! — supplicou de baixo o pobre, tirando o chapéo e indicando o santo.

Julio de Montarroyo não reconheceu aquella figura, mas ficou estranhamente impressionado com o metal de voz do pedinte.

Parecia-lhe que já a tinha ouvido em qualquer parte, e como toda a sua vida, n'aquelle ermo, se compunha de recordações, aventurou uma pergunta.

— Você é d'estes sitios?

— Não, meu senhor... Eu sou de Braga.

— De Braga?!

— Sim, meu senhor, mas já lá não vou ha muitos annos...

— Vem então de muito longe?

— Venho, meu senhor!

— Espere ahi.

Julio desceu ao portão e franqueou a entrada ao pedinte.

— Entre! — disse elle.

O pobre entrou.

— Você é de Braga? — tornou a perguntar Julio.

— Nascido e baptisado, meu senhor! — confirmou o pobre.

— Ha que tempo sahiu da sua terra?

— Ha muitos annos, meu senhor...

— Olhe lá; você conheceu lá um sapateiro chamado Tomba?

— Conheci, meu senhor, conheci! Era um bom home, amigo do seu amigo... E eu támem era muito amigo d'elle!

— Ah! você então era amigo do Tomba?

— Oh, senhor! pois se nós eramos da mesma creação... Eu e mais elle eramos como a unha e a carne...

— E o que foi feito d'elle? Não sabe?

— Se não morreu... ha-de estar vivo por força, meu senhor...

Julio reconheceu n'esta resposta o espirito velhaco do antigo sapateiro.

— Diga-me: o que é feito de D. Carlota e do padre Anselmo? — interrogou Julio a meia voz.

O pedinte, surprehendido, encarou o seu interlocutor e de repente, como se a memoria se lhe tivesse avivado, exclamou:

— Ora espera! Vossa incellencia é o sr. Julinho de Montarroyo, pois não é?

— Sou.

— Cá me queria a mim parecer!

E batendo na testa desesperado:

— Ah! grande cabeça de burro, que nem já conheces quem te deu tanto pão a comer!... Ah, sr. Julinho, vossa incellencia perdoará, mas eu estava agora bem longe de o topar aqui! Antão cumpassou? — perguntou o Tomba, lisonjeiro e carinhoso. — Vossa incellencia está féro! Está que é uma bisarria!

— Estou velho, amigo Tomba, estou velho!

— Qual velho! Velhos são os farrapos! Mais velho estou eu e olhe que, graças a Deus e a Santo Antonio, que está aqui e que bem me ouve, ainda as pernas me levam p'r'a onde eu quero.

Julio de Montarroyo, alegre por ter encontrado este homem, que podia talvez elucidal-o ácerca de factos que elle tinha interesse em conhecer minuciosamente, conduziu o Tomba através do jardim, até ao interior da habitação.

— Venha cá, Tomba, venha cá, homem, que temos que fallar...

— Ora o sr. Julinho! Como eu havia de vir aqui topal-o! Isto foi milagre de Santo Antonio, que eu trago aqui comigo... Foi elle que me trouve inté aqui, por sua infinita mesericordia!

Chegados ao gabinete de Julio, este voltou-se para o sapateiro e disse-lhe:

— Arrume o santo, mestre Tomba, e diga-me se tem vontade de comer...

— Oh, meu senhor! Vontadinha, graças a Deus, ha sempre...

— Bom! Vou mandar que lhe dêem alguma coisa.

Julio ordenou que dessem de almoçar ao Tomba que, fiel ao seu costume, honrou a cosinha do seu generoso amphytrião.

Depois, mais animado, e dando parabens á sua fortuna por ter encontrado aquelle grande e rico amigo, passou á sala onde o aguardava o dono da casa.

— Já matei quem me matava! — disse elle satisfeito. — Ora agora aqui tem vossa incellencia um home p'ra tudo que fôr preciso!

— Conte-me cá, mestre Tomba, o que é feito de você? O que foi feito de D. Carlota, do padre Anselmo e d'aquelle doidivanas do Alvaro de Noronha?

— Pois vossa incellencia não sabe? — disse o sapateiro admirado.

— Nada! Não sei nada.

— Pois já tudo isso lá vae!

— Tudo?

— Tudo ou acaijo tudo... Inté é de inorar o sr. Julinho não saber as desgracias todas que se déram logo assim que o sr. Julinho arretirou p'ra Braga.

— Não! Eu fui obrigado a partir para Paris pouco depois de sahir do Porto e por lá andei muitos annos sem ter mais noticias de Portugal.

— Pois é! O sr. Julinho é que fez bem... Foi-se inté Paris de França e não deu mais cavaco ás tropas... Pois a sr.ª D. Carlota, coitada! lá deu ao penagal em Lisboa... O padre Inxelmorais o parta! — lá teceu taes indrominas com o Custoido a dezer-lhe que ella que lhe tinha sido falsa com o sr. Julinho...

— Comigo! — exclamou Julio admirado.

— Pois antão não sabia?

— Eu não sabia de nada...

— Bem digo eu! Antão já vejo que não sabe nem da missa a metade!... Pois o maroto do padre Inxelmo, emquanto nós estavamos no Porto a ver se lhe deitavamos a luva, vêo a Braga dizer ó Custoido que a sr.ª D. Carlota andava lá pelo Porto mettida c'o sr. Julinho de Montarroyo... E vai elle, o malandro, que nunca se importou emquanto ella lhe desfeiteou as barbas c'o padre, começou a dar por paus e por pedras, assubiu-lhe a honra á cabeça, e quando ella vinha p'ra tornar p'ra casa, pôl-a fóra e pouco faltou p'ra lhe bater...

— Isso é extraordinario! — disse Julio.

— E lá em Braga toda a gente se acuarditou, porque demais a mais, como o sr. Julinho se prantou na planta-giria, todos dixeram que foi verdade, porque quem se cia alhos come...

— Mestre Tomba, é impossivel que você não esteja doido! Isso que você está a dizer é tudo quanto ha de mais absurdo!

— Valha-me Deus, sr. Julinho! Eu o que digo é o que por lá se constou n'aquelle tempo...

— E você não podia desmentir esses boatos, não podia desmascarar os calumniadores?

— Eu a esse tempo, estava, mas era engaiolado no Sardão, mais morto que vivo, estrelicadinho com fome, porque aquellas carochas de seiscentos diabos tinham-me a jejum de pão e auga, que eu cuidei que não tornava mais a ver sol nem lua, e que, a respeito de petiscos, não se fariam mais para os queixos do Tomba!

E contou a maneira ardilosa como o padre Anselmo o encerrara no convento do Sardão e aquella outra mais ardilosa ainda como elle conseguira escapar-se da prisão, depois de ter pregado uma sova mestra na freira que o guardava quasi á vista.

— Eu só queria que vossa incellencia visse, sr. Julinho... Aquillo foi uma trépa co'as correias, que inté o sengue lhe esguichou pelo sitio da tripeça, salvo seja! Depois puz-me a andar e marchei p'ra Braga a saber novidades... A sr.ª D. Carlota tinha morrido em Lisboa, o sr. Alvarinho — Deus lhe perdôe! — lá tinha o Perneta dado cabo d'elle... Raios o parta! Se quer ó menos, inda fui testemunha escontra elle, que o enterrei!

— Ah! você foi testemunha no processo contra o Perneta, mestre?

— Pois atão não havia de ser? Eu tinha a veridica certeza de que o sr. Alvaro tinha ido p'ra casa do Perneta, porque arrecebeu uma carta da sr.ª D. Carlota — Deus a chame lá p'ra bem, que eu não a chamo cá p'ra nada! — a dezer-lhe que a prima d'elle, a sr.ª D. Helena de Laronha estava lá mettida com vossa incellencia...

— Comigo?! — tornou a exclamar Julio de Montarroyo, de cada vez mais espantado.

— Tal e qual como eu lhe estou a dezer, sr. Julinho! Pode-se acuarditar em mim, porque eu ouvi lêr a carta e escorda-me como se fosse hoje tudo quanto ella dezia...

— E elle acreditou! Pois Alvaro de Noronha, conhecendo-me e tendo convivido comigo por algum tempo, pôde acreditar em semelhante carta, pôde julgar-me capaz de uma semelhante infamia?!

— Eu bem lhe dizia que não se fiasse, que aquillo era tramoia que lhe queriam armar... Mas elle, que tinha aquelle genio de espirra-canivetes, começou logo a atirar co'aparelho ao ar, a dezer que ia matar sete e esfolar quatorze e nem á mão direita de Deus Padre fui capaz de ter mão n'elle! Lá foi e se eu bem lh'o disse, melhor lhe aconteceu... Chegou lá e aquelle ladrão do Perneta e mais dois que elle lá arranjou deram-lhe tamanha carga de paulada que o deixaram cadable no meio da estrada! Eu, já se sabe, n'essa maré estava preso no Sardão e nem tal coisa me passava pelo sentido... Mas quando sahi e cheguei a Braga, atão é que eu soube tudo... E disse comigo: «Ai o alma do diabo do Perneta que deu cabo do probe rapaz! Pois deixa que eu te vou fazer a cama!...» Fui-me á Povoa, fallei com o sr. amenistrador, contei-lhe as coisas como foram e como não foram, e o Perneta, que inda estava preso, mas não confessava nada, assim que o acarinharam comigo, não teve mão em si, começou a entoar e dixe tudo! Lá foi por uma barra fóra, que o levou seicentos diabos!

Julio ouvia espantado estas revelações do Tomba.

— Mas como é — disse elle — que D. Carlota pôde escrever uma carta d'essas a Alvaro de Noronha na mesma occasião em que eu recebia uma carta de Helena, dizendo-me que partia para França? Se D. Carlota vivia com o padre Anselmo, como podia ella ignorar que Helena seguia para Paris?

— Vossa incellencia quer que eu lhe diga uma coisa, sr. Julinho?

— Diga lá, mestre.

— A mim ninguem me tira da pinha que a sr.ª D. Carlota não escreveu carta nenhuma... Aquillo foi o maroto do padre Inxelmo que mandou escrever a carta em nome d'ella para arranjar a trempe ó probe rapaz! Vossa incellencia não se escorda do sr. Alvaro dizer muitas vezes que o patife do padre Inxelmo inté uma vez escreveu uma carta muito bem escrevida, co'a letra da sr.ª D. Helena, a dizer ó pae d'ella que estava em Coimbra com um sujeito com quem se queria casar, e no fim de contas vae-se a vêr e estava mas era agachada em casa do Perneta!

Julio de Montarroyo deu um salto na cadeira. Só ao ouvir estas palavras do Tomba é que pensou na possibilidade de ter sido victima de uma infame mystificação.

— Eu tambem recebi uma carta de Helena convidando-me a seguil-a, pois que ia partir para uma casa religiosa de Paris. Seria essa carta escripta por Helena, ou seria ainda uma tôrpe cilada do padre Anselmo?

— Olhe, sr. Julinho; o cesteiro que faz um cesto faz um cento, se tiver verga e tempo... O padre já tinha feito uma e porisso támem era capaz de fazer a outra...

Julio de Montarroyo ficou por algum tempo silencioso e pensativo. Estava recordando o singular e extraordinario mutismo de Helena, a qual tendo-o solicitado a esperar noticias suas em Paris, nunca mais lhe mandára aviso nem recado. Porque não teria D. Carlota revelado ao padre Anselmo o interesse que elle tomava pela libertação da filha de Norberto e suggerido por esta forma ao jesuita a ideia de se livrar dos dois ao mesmo tempo, matando um e expatriando o outro?

Mas, n'esse caso, Helena não teria sahido do paiz, e ao passo que elle a procurava pelo mundo, morria ella ignorada no mesmo convento onde a deixara.

— Mestre Tomba — disse elle — sabe o que foi feito do padre Anselmo? Tornou a ter noticias d'elle?

— O padre Inxelmo, depois que roubou o Custoido nunca mais tornou a pôr os pés em Braga, ó menos que eu o enxergasse... Aquillo sumiu-se como o fumo, que nunca mais vi raça d'elle!

— Diz você que o padre Anselmo roubou o Custodio?

— Pois roubou! O Custoido, p'ra não dar nada á mulher, assignou letras a fingir ao João Ignacio, que era p'ra ella lhe não poder pegar em nada... E quem metteu o probe do home, coitado! n'essas fofas foi o patife do padre... Vae óspois a D. Carlota esticou o pernil em Lisboa... diz que se matou... Tanto sei eu se ella se matou como se foi o padre que lhe deu cabo da casta... E vae n'isto, assim que se constou a morte d'ella, o João Ignacio salta em riba do Custoido co'as letras e leva-lhe tudo, que o deixou sem um fio! O Custoido barregava escontra o padre a dezer que foi elle que o metteu co'aquelle ladrão, que era uma coisa por demais! Mas o padre esguipou-se que ninguem soube mais d'elle!

Julio de Montarroyo relacionava mentalmente todos estes factos e procurava o fio mysterioso que devia explical-os.

— É singular! — disse elle — E o Custodio? Morreu?

— Qual morreu! Casou-se oitra vez e fez um bô casorio... Foi co'uma brazileira... co'a Anninhas das Travessas, que tinha ido p'ró Brazil ha um rôr de annos e que vêo de lá rica que não sabia o que tinha de seu... O home, como em Braga todos o conheciam, pegou e foi co'ella p'ró Porto, e acho que lá estão na santa paz de Deus... Porfilhou-lhe a filha que ella trouve e inda apanhou uma riquesinha bem bôa!

— De modo que — tornou Julio — você, mestre, não voltou mais a saber de Helena de Noronha?

— Eu, como a sr.ª D. Carlota e o sr. Alvaro tinham morrido... e o sr. Julinho támem não dava rumor de si... tratei mas foi de governar a minha vida... Os freguezes, como eu andei por lá todo aquelle tempo, sem dar nova nem recado, foram ó aprendiz buscar os sapatos e levaram-n'os a oitro... O senhorio, como eu não paguei o aluguer, tomou-me conta da farramenta do officio e poz-me o rapaz na rua! Veja lá o alma do diabo, que inté co'a tripeça me ficou! Vi-me desauriado! P'ra me tornar a estabelecer, eu já não tinha farramenta nem freguezia... estava desacuarditado! Peguei e fui-me inté Villaverde, á tia do sr. Julinho, contei-lhe a minha desgracia e ella teve dôr de mim e deu-me uma libra d'esmola!

— E você contou a minha tia tudo o que se tinha passado com respeito a Helena de Noronha?

— Eu não disse nada! N'estas coisas, antes carta de menos do que carta de mais... Peguei na libra que ella me deu, mandei arranjar este Santo Antonio e botei-me a pedir por essas terras de Christo fóra, tal e qual como o meu compadre Longuinhos que támem se arranjou muito bem co'este modo de vida... Tenho corrido todas essas Europias de Portugal, e louvado seja o meu rico padre Santo Antonio, sempre tenho tirado mais do que quando trabalhava pelo officio!...

— Diga-me uma coisa, mestre: você seria capaz de dar conta de uma incumbencia que eu desejo fazer-lhe?

— Ó sr. Julinho! que me pedirá vossa incellencia que lhe eu não faça?!

— Bem! Desejava eu que você fosse ao Porto e indagasse nas Sereias ou no Sardão, se ainda lá está como abbadessa uma senhora chamada madre Paula...

— Madre Paula... disse o sapateiro procurando reter na memoria este nome. — Eu vou lá e trago-lhe isso sabido, que é um regalo... O diabo é o Sardão que se lá me conhecem fazem-me pagar os açoites que preguei na freira velha... Mas da raça do diabo será ella se não estiver já a fazer tijolo!

— Não tenha receio, que lá ninguem o conhece... Eu mesmo, que tão de perto lidei comsigo, já quasi o não reconhecia, como hão-de conhecel-o pessoas que nunca lhe fallaram?...

— Bem! eu vou — decidiu o sapateiro — mas não levo o santo, porque se a policia do Porto me apanha lá com elle, é capaz de ferrar comigo no Asylio da Mendecidade, que, aquillo, pelo que me tem zoado cá pelos ouvidos, é peor do que estar nas profundas do inferno a arder!...

— Pois não leve o santo...

— Eu deixo-o cá ao sr. Julinho, mas faça favor de ter cautela, que m'o não estraguem, que é o meu ganha-pão...

— Vá descançado, mestre Tomba. O santo fica a meu cuidado... Ninguem cá lhe bulirá n'elle...

Atão quando quer o sr. Julinho que eu vá?

— O mais depressa que possa...

— Eu vou já hoje, se fôr preciso... É verdade: e se ella lá estiver, o que quer que lhe diga?

— Nada. Saiba só se ella está em qualquer d'essas duas casas.

— E se lá não estiver?

— Saiba se é viva e em que casa religiosa da provincia se encontra.

— Está bem! Vamos a vêr se ainda tenho geito para estas coisas — disse o Tomba radiante.

E n'esse mesmo dia partiu para o Porto.