Os Filhos do Padre Anselmo/XXIV

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D. Aurelia, despedindo-se do padre Manoel, recolheu a casa, scismando nas palavras do sacerdote.

— Será realmente Helena de Noronha? — dizia comsigo — Julio de Montarroyo affirma que sim; mas o seu estado febril justifica em certo modo uma allucinação, que o fizesse tomar pela mulher que ama, uma sombra, talvez uma phantastica visão dos seus sentidos excitados... Emfim, o Manoel Mil-homens, que é arrojado e valente, encarregar-se-ha de verificar até que ponto são verdadeiras as affirmativas de Julio.

Ia deitar-se, quando no portão da casa soaram violentas pancadas.

Estranhou que assim batessem áquella hora, e calculou que não podia ser senão um estranho desconhecedor de que o portão tinha uma sineta que facilitava a chamada.

— Batem ao portão — disse ella para a criada. — Diga ao Francisco que vá vêr quem é...

D'ahi a pouco, voltava a criada, annunciando:

— Está lá em baixo um homem que pede para fallar á senhora com toda a urgencia.

— Que qualidade de homem é?

— Parece una homem do povo, minha senhora; mas não é d'estes sitios.

— Não disse como se chama, nem de mando de quem vem?

— O nome não disse. Diz que já foi a casa do sr. Julio de Montarroyo, mas que não o deixaram fallar com elle por estar doente, e por isso que deseja dar só uma palavrinha á senhora.

— Mande-o entrar, e o Francisco que fique de vigia, que não vá ser algum mal intencionado.

— Não me parece... Só se fôr algum desgraçado que use d'este meio para pedir abrigo por esta noite...

— Bem; vejamos o que elle quer.

Pouco depois, apparecia á porta da sala o mestre Tomba.

D. Aurelia tinha-o visto em casa de Julio de Montarroyo e reconheceu-o logo.

— Ah! é vocemecê, mestre Tomba?

— Sou eu, minha... Vossa incelencia perdoará eu vir trupar á porta a esta hora, mas ha um causo que não póde deixar de ser...

— Diga, mestre, diga! — exclamou D. Aurelia assustada com as attitudes e gestos solemnes do velho sapateiro — Occorreu alguma desgraça?

— Uma grande desgracia, minha senhora! E se vossa incellencia não acode e manda alguem comigo, a probe de Christo está aqui, está a dar o ultimo suspiro!... Já fui a casa do sr. Julinho p'ra lhe contar o assucedido.., Mas lá dixeram-me que elle támem estava de catrambias e atão eu lembrei-me de vir ter co' a senhora p'ra esta obra de caridade...

— Mas de que se trata, mestre? Falle.

— Trata-se de uma probe creatura, uma triste mulhersinha que eu topei alli adiante, cahida na estrada sem dar por burro nem por albarda!

— Uma mulher!?

— Sim minha senhora... Eu vinha p'ra cá e dava ó canello com toda a força, porque se me tinha feito escuro mais cedo do que eu pensava, e estava morto por chegar a casa do sr. Julinho, porque támen já trazia uma lazeira que nem via nada.. Vae n'isto, não sei como reparo e vejo estirado ao canto da estrada um burto preto que me parecia coisa viva... Cheguei-me, sempre com cuidado, que não fosse ser algum alma de cantaro que estivesse a infingir-se morto, p'ra me deitar as unhas e alimpar-me o que eu trouvesse, e vi que o dito burto não mexia com pé nem com mão... Accendi um phrophe, cheguei-lh'o á cara, e era uma mulher, coitadinha! Chamei por ella, abanei-a, mas, qual quê! a probe de Christo mal resfolegava... estava sem sentidos! Inda me lembrou de pegar n'ella ás costas e trazel-a comigo; mas a caminhada era mui bem grande e eu támem já vinha estafado, sem poder comigo... de modos que deitei a correr p'ra vir ó sr. Julinho contar-lhe o caso e pedir-lhe que mandasse alguem que me ajudasse a trazel-a... Mas elle támem está doente...

D. Aurelia, verdadeiramente commovida com esta narrativa, não deixou que o sapateiro terminasse.

Chamou os criados e mandou que fossem com o sapateiro buscar a infeliz.

— Levem um lampeão para se alumiarem... Deitem roupa bastante na padiola e tragam n'ella a pobresita com cuidado. De caminho, um que venha por casa do medico pedir-lhe para chegar aqui n'um instante. Vá, não se demorem... lembrem-se que é uma vida que vão salvar!

Estas ordens puzeram em movimento toda a gente da casa, e poucos minutos decorridos, seguia o Tomba, pela estrada, á frente do grupo, em soccorro da infeliz creatura.

Uma hora depois regressavam o Tomba e os criados de D. Aurelia, conduzindo na padiola o corpo quasi inanimado da desconhecida que o sapateiro encontrára abandonada no caminho.

A irmã de Gustavo, ao sentir o ruido dos homens que entravam o portão, acudiu á sala de entrada, e sem attentar na pessoa que elles conduziam, deu ordem para transportarem a enferma para um quarto onde já havia uma cama preparada.

A esta hora chegava tambem o medico que acudia solicito ao chamamento, julgando que se tratava de algum familiar da casa ou talvez mesmo da propria D. Aurelia.

— Então, quem temos por cá doente? — disse elle ao encarar D. Aurelia — Já vejo que não é v. ex.ª. E antes assim.

— Felizmente, doutor, não sou eu a que preciso dos seus soccorros. Trata-se de uma pobre creatura que foi encontrada cahida, sem accordo, na estrada, e que eu mandei buscar e recolher pelos meus criados.

— Onde está ella?

— Lá dentro, no quarto onde mandei arranjar-lhe uma cama.

— Vamos vêl-a.

E encaminhou-se para o interior da casa, guiado por D. Aurelia.

A infeliz estava já mettida no leito, mas ainda sem dar accordo de si.

Informou a criada que a despira, que a desgraçada trazia os vestidos rotos e sujos da terra da estrada.

Vinha andrajosa. Notava-se-lhe, porém, desusado asseio nas roupas brancas, humildes e pobres, mas em que havia o cuidado proprio de pessoa que está habituada á limpeza — que é o primeiro indicio de uma boa educação.

O medico e D. Aurelia abeiraram-se do leito e examinaram a desconhecida.

Trazia os cabellos em desalinho e na face macerada e pallida havia os vestigios profundos de mil soffrimentos e privações.

Com os olhos cerrados e a respiração quasi imperceptivel, a desditosa similhava um cadaver.

Não era ainda idosa, mas as rugas de uma velhice precoce sulcavam-lhe o rosto triste.

D. Aurelia fitou-a com uma compassiva curiosidade e não se recordou de ter visto entre os innumeros mendigos, que todos os dias lhe batiam á porta implorando a esmola da sua caridade, uma figura que se lhe assimilhasse.

— Esta pobre mulher — disse ella — não deve ser d'estes sitios.

— Tambem me parece — affirmou o doutor — Pelo menos, não é d'estas aldeias proximas onde exerço a clinica e onde conheço quasi toda a gente.

— O que tem ella, doutor? — perguntou D. Aurelia ao medico, que acabava de auscultar a doente.

— Frio e fome, talvez... — respondeu o homem de sciencia, fazendo uma careta — Esta mulher tem sido mal alimentada, a fadiga prostrou-a e seria esta com certeza a sua ultima noite, se a caridade de v. ex.ª a não amparasse. Vamos tratar de a restituir á vida, e encetaremos depois o tratamento que julgarmos conveniente... Creio, porém, que não teremos grande necessidade de recorrer á botica... Afigura-se-me que bastará apenas recorrer á cosinha...

— Vou mandar-lhe já matar uma gallinha! — acudiu D. Aurelia.

— Sim — approvou o doutor. — E tenha v. ex.a a bondade de mandar-me cá a criada, a Brigida, para me ajudar no tratamento a que vou sujeitar a doente.

— Eu estou aqui, doutor... Diga-me o que é preciso fazer...

— Não, não! A Brigida que traga um pouco de vinagre, para lhe dar uma fomentação nos pulsos e nas fontes, a vêr se assim conseguimos restituir-lhe os sentidos.

D. Aurelia sahiu a chamar a criada e a dar ordem para que tratassem a infeliz com todo o desvelo, seguindo as indicações do medico.

Pouco depois, a criada vinha annunciar á D. Aurelia que a pobresinha voltára a si, olhara espantada á roda do leito sem reconhecer pessoa alguma e sem soltar uma palavra; que o doutor lhe receitára um cordeal e que, tomado elle, cahira n'um somno profundo e reparador.

O medico, passados instantes, confirmava estes dizeres, promettendo a D. Aurelia voltar no dia seguinte.

— Deixem-n'a socegar — aconselhou elle — e amanhã veremos o tratamento a que temos de submettel-a.

— Parece-lhe, doutor, que o seu estado é de inspirar cuidados?

— De certo, minha senhora. Convem não lhe fallar nem obrigal-a a grande esforço de memoria. A pessoa que lhe servir de enfermeira deve apenas limitar-se a ministrar-lhe o que fôr necessario, sem a obrigar a fallar mais que o indispensavel. Mas por esta noite não acordará nem necessitará de outra coisa mais que o descanço. Amanhã voltarei. Boa noite.

— Boa noite, doutor, e peço-lhe que tome a seu cuidado esta infeliz que não conheço. Seria para mim um grande desgosto que ella viesse morrer a minha casa...

— Não morrerá, minha senhora, a não ser que outra doença mais grave sobrevenha. Por emquanto, o mal é este: frio e fome.

— Coitadita! — murmurou compungidamente a irmã de Gustavo — E pensarmos que ha gente que morre pelas estradas abandonada de toda a caridade!

— Minha senhora — volveu o medico philosophicamente, encolhendo os hombros — o mundo compõe-se de tudo... Ha gente que morre de fome e ha gente que morre de fartura... Os extremos tocam-se.

E sahiu, embrulhado no seu capote á cavallaria, e com um cache-nez enrodilhado desde o pescoço até á ponta do nariz.

— Que barbeiro! — disse elle, ao sentir no rosto a aragem cortante da noite, para o homem que á porta o esperava com o lampeão acceso afim de o acompanhar no trajecto até casa — Este barbeirinho é o tal das pneumonias!

No dia seguinte voltou. A doente recuperára os sentidos, mas apresentava-se n'um estado de abatimento e de fraqueza extraordinaria.

A febre consummia-a. Delirava.

Phrases entrecortadas e sem nexo escapavam-se-lhe dos labios, n'uma confusão que não deixava perceber-lhes o sentido.

O medico observou-a longo tempo e por fim receitou um calmante, prohibindo que dessem de comer á enferma.

— Então, doutor? — interrogou D. Aurelia.

— Enganei-me, minha senhora — disse o medico — julguei que um caldo de gallinha e algum socego reconfortaria a nossa doente, mas vejo agora que o remedio não está só na cosinha, está tambem na botica.

— É então grave o estado d'essa infeliz?

— Gravissimo. A febre é muito violenta e desconfio bem que tenhamos de nos vêr a contas com uma pneumonia...

— Pobre mulher!

— Se v. ex.ª quer, e isso parece-me o mais sensato, é pregar com ella ás costas de dois homens que a levem ao hospital de Guimarães.

— Oh! isso não! — fez D. Aurelia com vehemencia. — Acaso o doutor não terá recursos na sua sciencia para valer a essa desgraçada?

— Oh! minha senhora! não se trata de mim, que estou prompto a soccorrel-a conforme sei e posso: o alvitre tem por fim unicamente evitar a v. ex.ª os incommodos e cuidados que taes casos sempre acarretam...

— Doutor, o destino quiz que essa pobre mulher fosse recolhida em minha casa. Aqui será tratada com os cuidados que o seu estado requer.

— Faça-se a sua vontade, minha senhora.

D. Aurelia deu logo ordem para que ficasse constantemente a velar a enferma a sua criada de quarto, que era uma enfermeira distincta.

— Que não falte nada a essa infeliz — disse a irmã de Gustavo — Não lhe façam perguntas indiscretas, não inquiram coisa alguma do seu passado, e façam-lhe comprehender que está entre pessoas amigas que se interessam pela sua saude e que desejam vêl-a restabelecida.

Esta ordem foi cumprida rigorosamente, e ao cabo de tres dias, tendo diminuído a febre, a doente encontrava-se sensivelmente melhor.

— Está salva — disse o medico a D. Aurelia — Agora o que precisamos é ter muito cuidado com a alimentação.

— Tel-o-hemos.

Prescreveu o regimen a seguir e tão rigorosamente foi obedecido que, oito dias passados, a desconhecida entrava em franca convalescença.

Durante este tempo, o padre Manoel vinha todos os dias informar que o João Mil-homens não lobrigava viva alma na Senhora do Porto.

— É escusado! — dizia o bom do parocho — aquillo foi tudo sonho do nosso Julio. E quem sabe mesmo se foi visão da febre que o consummia. Pobre homem! Eu bem lhe disse que não cahisse na asneira de se metter a caminho com uma noite d'aquellas... Não quiz attender, ainda é dos que dão credito a tolices e invenções da gente rude do povo, e o resultado foi cahir de cama e ficar para alli entre a vida e a morte ha uns poucos de dias...

— Disse-me o doutor que o encontra muito melhor...

— É verdade. Até já lhe deu ordem para receber o Tomba, que esteve hontem mais de uma hora em conversa com elle... E o que é mais curioso é que o doente, hoje, quando todos esperavam que peorasse, appareceu muito melhor, mais animado e com um semblante alegre e risonho.

— Não pude ir vêl-o n'estes dois dias, mas talvez vá logo visital-o.

— O que eu não sei é que diabo de intimidade é a do Tomba com elle. Um homem ordinario, de baixa esphera, gosa de uma tal consideração em casa d'aquelle homem, que chega a espantar. Alli ha mysterio por força!

— Não ha mysterio nenhum, snr. padre Manoel. Os humildes tambem teem direito á estima e consideração das pessoas superiores, quando possuem qualidades de honradez e honestidade que os recommendam...

— Sim, sim... Mas não se vê isso muito frequentemente... A não ser que v. ex.ª queira attribuir ao Tomba qualidades unicas e até hoje nunca vistas e apreciadas em remendão portuguez.

— Não lhe attribuo qualidades nem defeitos, sr. padre Manoel... Acho natural que o sr. Julio de Montarroyo proteja e estime um pobre homem do povo, e nada mais.

O padre fez uma carêta significativa.

— Sim, sim, minha senhora... V. ex.ª é uma santa, acha tudo muito natural porque não conhece o mundo... O Tomba é bom homem, não digo que não, mas ha muitos bons homens como elle, e não encontram o acolhimento de que este se póde gabar...

— Nem era possivel, sr. padre Manoel... Eu, por exemplo, recolhi em minha casa uma pobre mulher que foi encontrada moribunda a um canto da estrada... Dispensei-lhe todos os cuidados e carinhos compativeis com os recursos de que disponho e nem sequer sei ainda quem ella é...

— Quem ha-de ser? Alguma pobre mendiga, alguma desgraçada sem eira nem beira... Ha tantas por esse mundo!

— Justamente. Ha tantas por esse mundo, e comtudo é esta a primeira que, em taes circumstancias, encontra abrigo em minha casa.

A este tempo, appareceu a creada encarregada de tratar a desconhecida.

— Minha senhora — disse ella — a nossa doente...

— O que tem? Peorou?

— Não, minha senhora. Até está muito melhor. Mas ha pouco perguntou-me onde estava, que casa era esta e quem é que a tinha trazido para aqui...

— O que lhe respondeu?

— Cumpri as ordens de v. ex.ª, disse-lhe que estava em casa de pessoas amigas e que não se affligisse, que não lhe havia de faltar nada... Mas ella quiz por força saber como se chamam os donos da casa... e eu disse-lh'o.

— E então?

— Mostrou-se muito inquieta e pediu para fallar á senhora...

— Para me fallar a mim! — disse D. Aurelia — Pois bem; diga-lhe que vou já vêl-a...

E voltando-se para o padre Manoel:

— Tenha paciencia, meu amigo, se lhe roubo uma parte das attenções que lhe devo... Bem vê, a enferma está melhor, aliás teria pedido antes o seu soccorro espiritual...

— Sinto-me lezado nos meus direitos de confessor — replicou o padre Manoel gracejando. — Realmente, v. ex.ª com a sua extrema caridade faz que os infelizes esqueçam que só aos ministros do altar devem confessar-se... Porque ninguem me tira da cabeça que a sua protegida quer fazer-lhe revelações intimas...

— Talvez. E se assim fôr, creia o sr. padre Manoel que serei tão escrupulosa em guardar rigoroso sigillo como v. s.ª o costuma ser...

— Quer dizer com isso que escuso de tentar saber o que ella vae confiar-lhe.

— Oh, decerto! Se ella me pedir segredo, com certeza que o guardarei...

— N'esse caso, minha senhora, não quero fazer esperar a sua confessada... E se o caso fôr de consciencia, estou bem certo que v. ex.ª lhe aplacará os escrupulos tão bem ou melhor do que o mais auctorisado mestre de casos...

— O sr. padre Manuel é sempre demasiado lisonjeiro para mim — replicou D. Aurelia sorrindo. — Não tenho pretensões a arvorar-me em sacerdotisa. Faço o bem que posso e valho ao meu semelhante sempre que elle precisa do meu soccorro, quer temporal quer espiritual.

— V. ex.ª é inquestionavelmente uma santa! — affirmou o padre sahindo.

D. Aurelia passou ao quarto da doente. Ao vêl-a entrar, a desconhecida fitou n'ella os olhos marejados de lagrimas.

A dona da casa abeirou-se do leito. A meia obscuridade do quarto não lhe permittia analysar as feições da enferma.

— Então, como está? — perguntou a irmã de Gustavo com voz doce e carinhosa.

— Muito obrigada, minha senhora... sinto-me melhor — replicou a doente com voz debil. O som d'aquella voz, porém, impressionou a dona da casa. Parecia-lhe que já a tinha ouvido alguma vez, que o seu timbre lhe não era estranho.

Voltou-se para a criada e disse-lhe:

— Deixe-nos sós — ordenou.

— Sim, minha senhora — replicou a criada. E sahiu.

— Disseram-me que queria fallar-me... — interrogou D. Aurelia com os olhos fitos na doente — Poderei ser-lhe util em alguma cousa?

— Queria — tornou a doente — que tivesse a bondade de abrir um pouco aquella janella e attentar no meu rosto...

D. Aurelia satisfez o desejo á doente e ficou-se fitando-a, sem poder reconhecel-a.

— Não me conheces, Aurelia? — balbuciou a infeliz por entre lagrimas. — Tens razão! Estou tão mudada que nem meu proprio pae me reconheceria, se fosse vivo e me visse agora!

E escondendo o rosto entre as mãos, desatou n'um choro convulso e abafado.

Como se as palavras e o choro desesperado da desditosa lhe tivessem levado um raio de luz ao espirito, D. Aurelia gritou n'um indescriptivel alvoroço de espanto:

— Helena de Noronha! serás tu?!

— Sou eu, minha amiga! sou esta desgraçada, rôta e faminta, que vem receber, como supremo castigo de seus crimes, a esmola da tua compaixão!

Estas ultimas palavras foram já proferidas nos braços de D. Aurelia, que estreitava a sua infeliz amiga ao coração, cobrindo-lhe o rosto de beijos e orvalhando-lh'o de lagrimas.

— Vamos! não chores, minha querida — disse por fim D. Aurelia. — Quiz Deus que viesses a esta casa que é tua e onde encontrarás a mesma amisade sincera de sempre.

— Obrigada... obrigada! — murmurou Helena de Noronha — Peço-te apenas que me deixes morrer aqui, ignorada de todos, como uma pobre mendiga que a miseria arrojou nos ultimos momentos ao suave aconchego do teu lar bemdito, da tua santa caridade!...

— Não, minha amiga, não! Tu viverás, tu acharás ainda n'esta casa, que é tua, no meu coração que é sempre o da tua amiga d'infancia, o conforto e os affectos de que necessitas e de que os teus soffrimentos te fazem tão digna.

— Sinto-me morta, minha amiga... Pouco poderei importunar-te... Mandei-te chamar e quiz que me reconhecesses e me ouvisses, porque não desejo levar para a sepultura, com o remorso de tantos erros e de tantos crimes, ainda mais este cruciante espinho de uma ultima ingratidão...

D. Aurelia tentava socegal-a e reanimal-a com a sua amisade, com seu carinho.

— O medico disse-me que estás melhor... Agora, o que é indispensavel, é muito socego, muita tranquilidade de espirito... e o restabelecimento far-se-ha breve e por completo.

Um sorriso de amarga tristeza vincou os labios de Helena de Neronha.

— Para que eu me encontre aqui, na tua casa, minha amiga, foi preciso que as forças me fugissem e a vida estivesse proxima a abandonar este misero envolucro... por tal modo desfigurado que nem tu mesma o reconheceste... Não te illudas, Aurelia... eu não poderei viver mais que alguns dias, e durante elles, deixa que eu te confie a historia das minhas desgraças, afim de que, ao recordal-as, tenhas ainda uma lagrima de compaixão para a memoria da tua desditosa e infeliz amiga d'infancia.

— Eras tu a penitente da Senhora do Porto? — interrogou de repente D. Aurelia.

— Era! Como soubeste que eu estava alli?

— Não o soube. Alguem tinha a fundada suspeita de que eras tu, se é que não possuia a intima certeza...

— Esse alguem era...?

— Julio de Montarroyo...

A enferma soltou um grito.

— Ah! tu conhecel-o? Então sempre é certo que era elle... não foi uma allucinação dos meus sentidos?

— Não, minha amiga, não! Julio de Montarroyo, ouvindo dizer que na Senhora do Porto apparecia alta noite uma penitente desconhecida e que ninguem lograva ver de dia, teve o presentimento de que essa penitente eras tu... Partiu para a Senhora do Porto, e alli te surprehendeu, ou antes, adivinhou-te nas trevas da noite...

— Sim... sim... eu vi um homem encostado á hombreira do portico, e quando eu, julgando-me só, elevava áquella imagem, a minha fervorosa prece, ouvi uma voz que chamava por mim. Fugi espavorida e durante muito tempo ouvi repetir o meu nome... E a voz que o repetia parecia-me a d'elle...

— Não te enganaste... Era elle, era Julio de Montarroyo que te chamava.

— Como veio elle para aqui, para esta terra, que não era a d'elle e onde não me recordo de o ter visto nunca, nos tempos da minha mocidade?

— Trouxe-o para aqui o coração, o desejo ardentissimo de se vêr rodeado de tudo o que pudesse fallar-lhe do passado da mulher que tão infeliz e desditosamente amou... Viver na mesma terra em que ella viveu e foi feliz, respirar o mesmo ar que ella respirou out'rora, amar os mesmos sitios que ella amou. O desgraçado julga viver assim mais perto d'ella, mais identificado com o pensamento e com as saudades da mulher que foi toda a sua esperança e que é todo o seu martyrio. «É impossivel — disse-me elle um dia — que ella algumas vezes não pense com saudade n'estes sitios, que foram o berço da sua infancia descuidosa e feliz. E n'esses instantes de dolorosa recordação, consola-me a ideia de que os nossos pensamentos se unem no mesmo objecto, através a distancia que os separa».

Helena de Noronha chorava silenciosamente, apertando com ambas as mãos o coração, que parecia querer saltar-lhe fóra do peito.

D. Aurelia proseguiu:

— Assim, o desditoso adquiriu por todo o preço a casa que foi de teu pae, — que foi tua, — e n'ella vive, ou antes n'ella vae morrendo lentamente, ralado de dôr e de saudade...

— Meu Deus! quantas victimas eu fiz! — bradou Helena de Noronha angustiadamente, estorcendo-se n'uma dôr incomportavel.

— Vamos, minha amiga! — tornou-lhe D. Aurelia, querendo confortal-a. — Quiz Deus que viesses ainda a tempo de reparar o mal que fizeste áquelle desgraçado. A maior felicidade para elle será o tornar a encontrar-te.

— Ah! não! não! — bradou Helena de Noronha, pondo as mãos supplicante: — Pelo amor de Deus, por tudo quanto mais tens amado n'este mundo, não lhe digas que eu estou aqui!... Morreria de vergonha, se me encontrasse na sua presença... Eu não sou digna d'elle... Deixa-me morrer ignorada de todos, minha querida Aurelia!

A infeliz arfava afflictivamente, pondo na amiga os olhos turvos de lagrimas.

— Morrer! Não falles em morrer, minha amiga... Cobra alento e pensa que a tua vida é ainda precisa, porque pódes ser util a alguem. Julio de Montarroyo ama-te com um amor que só as almas essencialmente delicadas conhecem e avaliam. Desde que te viu e reconheceu na Senhora do Porto, sem poder fallar-te, porque lhe fugiste, cahiu prostrado no leito por febre intensa, e ahi agonisa, apenas animado da esperança de poder ainda encontrar-te. Todas as noites tem sido enviado, por sua ordem, um homem á Senhora do Porto, a vêr se póde lobrigar-te e seguirte de longe até ao sitio onde costumavas occultar-te de dia. E cada manhã que o vigia regressa sem dar novas da penitente, é para elle uma cruel angustia que o approxima da sepultura. Quererás tu condemnar á morte uma vida que tão nobre e desinteressadamente se te devotou? Se está na tua mão minorar tamanho soffrimento, se com a tua presença pódes fazer voltar a felicidade ao coração d'aquelle desgraçado e banhar de luz e de alegria os ultimos dias d'aquella existencia amargurada, porque o não has de fazer?

— Oh! não! não! É impossivel! Eu estou condemnada, minha amiga! Existencia maldita foi a minha em que, sem o querer, e guiada, por um genio infernal, só pude semear a dôr, a desolação e a morte em toda a parte por onde passei!... Se tu soubesses que horroroso pélago de crimes, de atrocidades e de infamias tenho atravessado desde que, filha ingrata, abandonei a casa de meu pobre pae, repelir-me-hias com asco e nojo! Não! não! eu não posso mais aproximar-me de quem quer que seja sem que o meu halito pestilencial o envenene, sem que o contacto impuro das minhas mãos, manchadas de sangue e de crimes, deixem em tudo o que tocam uma nodoa indelevel de corrupção e de infamia!... Oh! o miseravel! O maldito persegue-me sempre com o seu olhar de fogo, que me abrasa... com o seu infernal sorriso de demonio, percuciente como um punhal... corrosivo como um veneno! Oh! vêl-o?... vêl-o? Lá está elle, envolto na sua negra sotaina esfarrapada... as faces congestionadas... a bocca espumante de raiva... e os olhos, como carbunculos, sempre fitos em mim!... Desprende-se da cruz... estende para mim as garras... Oh! salva-me! salva-me!

E n'um estranho accesso de delirio, Helena de Noronha agarrou-se convulsivamente á sua amiga, tombando em seguida sobre o leito, sem sentidos...

Apavorada e attonita, D. Aurelia mandou immediatamente chamar o medico, a quem contou que a doente, commovida com o caridoso acolhimento que lhe dispensara, proferira algumas palavras de agradecimento e cahira em deliquio.

O doutor observou a enferma e attribuiu o accidente ao seu estado de extrema fraqueza.

— Devêmos evitar a menor commoção, o menor abalo — disse elle.

Tres dias esteve Helena entre a vida e a morte, de tal modo fôra violento o abalo produzido pelas revelações que lhe fizera a sua amiga.

A ideia de que Julio de Montarroyo estava alli a dois passos, vivendo na mesma terra, habitando a casa que fôra d'ella e sempre alimentando-se das recordações de um amor impossivel, sem remedio e sem esperança, matava-a.

A pobre filha de Norberto de Noronha tremia só com a lembrança de que havia de supportar os olhares de Julio, tão franco, tão leal, tão amante e apaixonado e tão cruelmente illudido e ludibriado nos seus amores.

Porque não lhe teria ella confessado francamente a sua situação, a sua desgraça, a sua queda irremediavel, quando no Sardão o mancebo lhe implorava de mãos postas que salvasse seu velho pae e confiasse no puro e desinteressado amor fraternal que lhe offerecia?

Não quiz. Receou confessar-se indigna do nobre affecto que aquelle coração lhe tributava. E comtudo, n'esse tempo, ainda ella não passava de uma victima innocente, sem sombra de culpa, immolada á torpeza jesuitica. Como poderia ter coragem para se lhe apresentar agora, quando já não era só uma desgraçada a quem ludibriaram desfolhando-lhe a sua corôa de innocencia, mas tambem um sêr ascoroso e repugnante, manchado por toda a especie de crimes, semeando desolação e morte por toda a parte?

Filha, ingrata e desobediente, occasionara a morte de seu pae. Mulher, leviana e perversa, lançara-se imbecilmente nos braços de um monstro de sotaina, sacrificando o coração e a vida de seu primo, que a adorava, e deixando que, na embriaguez de um mysticismo absurdo, abusassem da sua innocencia e a convertessem na incestuosa e infame barregã de um jesuita. Mãe, abandonara seu filho, repudiara-o cruelmente e, peor que as feras, relegara-o á fome, á miseria e á morte talvez. Amada sinceramente por Julio de Montarroyo, mentira-lhe, ludibriara-o, lançara aquella alma no desespero, na tortura de todas as horas.

Adorada com louco frenesi pelo padre Hilario, convertera essa paixão n'um instrumento de morte. Fizera d'elle um parricida e ella propia manchára as mãos no sangue de um assassinio cobarde, embora justificado pelas monstruosas infamias e torpesas de que o miseravel a fizera alvo. Mas um crime não auctorisa outro e, seja qual fôr o sentimento que o dite, o remorso entra sempre mais tarde ou mais cedo no coração do criminoso.

Helena de Noronha, pois, debatia-se nas angustiosas recordações de tantos crimes e reconhecendo-se perdida para a rehabilitação n'este mundo, pedia a Deus, como suprema esmola, a morte, embora esta fosse seguida da condemnação eterna para a sua alma.

As penas do inferno pensava ella que não podiam ser-lhe mais tormentosas e afflictivas do que o peso d'esta existencia amaldiçoada que arrastava havia já dezeseis annos.

Ao fim do terceiro dia, chamou junto do leito a sua amiga.

— Aurelia — disse-lhe ella — tu não sabes a grande desgraçada que acolhes em tua casa e a quem nos ultimos dias da sua tormentosa existencia dás a esmola da tua compaixão.

— Helena! — volveu-lhe a irmã de Gustavo — peço-te que não voltes a atormentar-te com as recordações do passado. Fui tua amiga e tua companheira de infancia, e se isto merece recompensa, dá-me ao menos a consolação de te poder chamar minha irmã.

— Sim, minha boa e santa amiga! Acceito reconhecida os thesouros da tua bondade nas curtas horas que me restam de vida... É isso um signal evidente de que Deus se amerceia de mim e tem em conta as lagrimas e o arrependimento de tantos crimes...

— Helena! socega, minha irmã... Tem esperança na misericordia divina que ha de ainda conceder-te dias venturosos.

— Fazes-me um favor que te peço, Aurelia?

— Dize, filha! Tu mandas n'esta casa, não pedes.

— Desejava que enviasses alguem ao Porto, a saber se no convento do Sardão ou no das Sereias existe ainda uma superiora chamada Madre Paula... E se ella existir, que lhe entreguem uma carta minha...

— Madre Paula! — replicou Aurelia — Existe, minha amiga, sei que existe.

— Como o sabes? — interrogou alvoroçadamente Helena de Noronha.

— Porque Julio teve tambem interesse em o saber e mandou ao Porto informar-se um homem de sua confiança, o mesmo que te encontrou desfallecida na estrada e que aqui te conduziu.

— E esse homem viu-a, fallou-lhe?

— Fallou.

— Serás capaz de fazer com que elle volte a procural-a, minha amiga?

— Porque não!?

Fez-se um instante de silencio.

— Esse homem sabe quem eu sou? Conheceu-me?

— Não. Todos aqui, excepto eu, ignoram o teu nome.

— Não o digas a ninguem, por ora.

— Socega. Cumprirei a tua vontade.

Helena de Noronha pediu papel o penna, e escreveu algumas linhas, que fechou em seguida n'um enveloppe.

— Que parta sem perda de tempo! — disse ella, entregando a carta a D. Aurelia — Desejo que a resposta me encontre viva.

O Tomba partiu n'essa mesma noite para o Porto.