Os Filhos do Padre Anselmo/XXV
Julio de Montarroyo melhorara um pouco da febre intensa que o acommettera. O restabelecimento, porém, fazia-se tão lentamente, o seu estado de fraqueza era tal, que o medico prohibira-lhe que sahisse do quarto e recommendava-lhe insistentemente que se abstivesse de longas conversas com quem quer que fosse.
Todavia, o Tomba lograra fallar-lhe e informal-o de que madre Paula era viva e podia ser encontrada no Porto.
— Fallou-lhe, mestre Tomba?
— Fallei, snr. Julinho... saberá vossa incellencia que fallei... Fui ás Sereias préscural-a e não estava lá... Mas eu taes intrujices armei, que me mandaram ó Carvalhido ter co'ella... E está ainda fresca que nem parece a edade que tem... Aquellas bochechas não se criam só com auga benta, essa lhe juro eu! — commentou o sapateiro.
— Fallou-lhe de Helena de Noronha?
— A esse respeito nem pio... Tive medo que ella soubesse ó que eu lá ia e se espantasse... Nada! Eu infingi que ia de mando da prima de vossa incellencia, a snr.ª D. Lucilinha de Villaverde...
— Ah!
— Ella ficou toda estifeita e tratou-me com muito bô agrado, mas a respeito de comer e beber... nem burro queres tu auga?! Eu támem não precisava — accrescentou — e indas que ella me offerecesse, não era o filho do meu pae que acceitava... Emquanto me lembrar a arriosca que me armaram no Sardão, não cômo nada da mão dos frades e das freiras nem que me matem... P'ra lição, bonda uma vez... Mas ó menos queria que ella tivesse um migalho de cortezia commigo...
Julio ficou silencioso sem parecer ligar importancia aos queixumes do sapateiro escandalizado.
— Precisava de ir ao Porto para lhe fallar. Mas estou tão fraco, tão abatido, que não posso por emquanto fazer a viagem — murmurou.
— Mas o snr. Julinho queria ir ao Porto para fallar co'ella?
— Sim... unicamente para fallar com ella...
— Mas, o snr. Julinho, porque não lhe escreve uma carta, que eu levo-lh'a?
— O que desejo dizer-lhe não é coisa que se escreva em carta...
— Deixe lá! O preto no branco falla como gente... Sendo uma carta bem notada e com quatro cantigas que lhe eu cante, a mulher responde...
— Não, não... É preciso ir eu...
O Tomba encolheu os hombros, n'um protesto mudo e disse por fim:
— O snr. Julinho lá fará como entender... Eu cá estou p'ró que fizer minga. E se vê que é coisa que não se póde arranjar sem vossa incellencia lá ir, sabe o que lhe eu digo? Coma e beba, bote as paixões p'ra traz das costas, que co'ellas ninguem medra, ponha-se rijo e teso, que a freira faz o mesmo, e ella lá está á espera...
— Vá, vá, mestre Tomba — despediu Julio. — Deixe-se andar por ahi, que póde ser-me preciso de um momento para o outro...
— Eu cá estou, sr. Julinho... Os amigos são p'rás incasiões...
E sahindo dos aposentos do doente:
— Este, se não trata de metter p'ró bucho alguma coisinha de sustancia, está aqui, está prompto... E foi o ladrão do padre Inxelmo que o pôz assim!...
De repente bateu na testa, exclamando:
— Ai, a minha cabeça! E eu que não lhe dei novidades d'aquelle ladrão!
Voltou atraz, bateu á porta do quarto e perguntou:
— Dá licença, snr. Julinho?
— Entre, mestre Tomba — respondeu o enfermo, da cadeira em que se achava sentado.
— Trazia no sentido p'ra lhe dizer que a respeito de padre Inxelmo, é raça de patife de que ninguem me soube dar relações...
— Já sei... já sei que esse homem ha muito que não reside no Porto — volveu Julio com um fundo suspiro.
— Pois eu ia com meu receio de o topar lá por aquellas casas de santidade — disse o sapateiro, grifando a palavra com um sorriso — Que eu, se o apanhasse na rua, era home p'ra lhe rachar a corôa de meio a meio, como quem racha cinco tostões falsos... Mas lá dentro da seve de pedreiro é que eu não queria topal-o... Ninguem me deu noticias d'elle.
— É natural — respondeu Julio.
O sapateiro retirou desconsolado pela pouca importancia que Julio dera á descoberta.
— Parece que já não se importa muito com o padre... — resmungou — Támem, n'aquelle estado, ainda que o visse e lhe quizesse chegar duas galhetas, não podia...
Quando o medico soube que o Tomba se demorára em conferencia com o doente, exasperou-se e ameaçou de não voltar a receitar, se não fosse obedecido.
É que notára no enfermo um novo accesso de febre.
Julio mostrou-se indifferente aos preceitos do doutor.
— Era um favor — dizia elle — deixar que a doença acabasse com isto!...
Passaram ainda uns dias, e o Tomba faroleiro e mettidiço, não podendo ser admittido á presença de Julio, vingava-se indo para casa de D. Aurelia, a informar-se do estado da probesinha. Quando D. Aurelia o incumbiu de levar ao Porto uma nova carta a madre Paula, o sapateiro não pôde ter-se e, transgredindo os preceitos do medico, foi ter com Julio.
— O sr. Julinho quer alguma coisa para madre Paula? — perguntou.
— Porque? Vae fallar com ella?
— Não, senhor... É que eu vou ao Porto fazer umas mercas p'rá senhora D. Aurelia, e se vossa incellencia quizesse, eu, de caminho, levava qualquer recado para Madre Paula.
Julio ficou pensativo.
— Não... não quero nada — disse por fim — Tenho immenso desejo de fallar com ella; mas não posso pedir-lhe que venha do Porto aqui, ouvir-me. Alem de indelicado, seria inutil o pedido, tanto mais que o que tenho a dizer-lhe representa antes uma impertinencia da minha parte do que um serviço a prestar-lhe...
E dizendo isto, Julio cruzou os braços e deixou descahir desalentado a cabeça sobre o peito.
O sapateiro encarou-o com olhos compadecidos, e depois rompendo na sua natural expansibilidade, exclamou:
— Ameno, sr. Julinho! O que não se faz em dia de Santa Luzia faz-se ao oitro dia... O sr. Julinho inda ha-de ter pernas p'ro levarem aonde quer ir... Mais velho sou eu, que já cá tenho acaijo carro e meio d'annos, e inda, sendo preciso, vou d'aqui ó cabo do mundo a pé...
E concluindo:
— E se fosse causo que eu fallasse co'a tal freira e a arresolvesse a vir por ahi arriba, assim como coisa minha?
— Como é que você havia de fazer isso, mestre Tomba? — interrompeu Julio com um sorriso de quem achava disparatada a hypothese do sapateiro.
— Como? Isso agora não sei eu... Mas se fosse eu que lhe pedisse como coisa minha... sem lhe dizer quem é que lhe quer fallar... A mim, já se sabe, que não me fica mal pedir uma coisa que não seja assim lá muito de grande inducação... Eu sou p'rá aqui um probe sapateiro, fazem á de conta que eu não sei o que digo... e ás vezes pegam as bichas.
— Não, não, mestre Tomba, não pense n'isso, que é uma coisa que não pode fazer-se...
— Está bô! Vossa incellencia que o diz, lá sabe a rezão porquê...
O Tomba partiu para o Porto muito resolvido a envidar todos os esforços para conseguir que madre Paula visitasse Julio de Montarroyo.
— Eu armo-lhe uma intrujice e ella cae logo — pensava elle. — Entrego-lhe a carta da snr.ª D. Aurelia e logo vejo na cara os himores de que ella fica... Estas freiras são amigas de saber e de tirar nabos do pucaro... e eu a paginas tantas ferro-lhe com a pêta de que a Lucilinha está muito mal e que lhe manda pedir de bocca — porque não póde escrever — se ella faz o favor e a esmola de a ir visitar, porque tem umas coisas de muita importancia a dizer-lhe e não queria morrer sem a vêr alli ó par d'ella... A freira vem, e eu, em vez de a levar p'ra Villaverde, ferro com ella em S. Martinho do Campo... Depois digo que me enganei no caminho e passe por lá muito bem...
E contente d'esta esperteza, o Tomba achava impossivel que a sua lembrança não produzisse resultado.
— Coitado do snr. Julinho, que está p'ra alli, que é mesmo uma dôr de coração, morto por desabafar, e não vê meio de fallar c'oa madre Paula, senão indo elle aonde a ella... Pois vamos a vêr se eu tenho labia p'rá trazer cá... Ella inda está bem rija e fera, póde melhor andar do que elle... Ora deixa que eu sempre quero vêr se uma coisa que se me mette em cabeça hade ficar assim em augas de bacalhau!
Chegado ao Porto, o Tomba encaminhou-se á Bandeirinha, bateu á porta da casa conventual das Sereias, e pediu para fallar a madre Paula.
A madre porteira informou-o de que a superiora estava no campo, a ares; e que não era esperada ainda por aquelles dias...
Atravessou a cidade em direcção ao Carvalhido onde já fallára com a madre Paula dias antes, e disse ao criado que veio abrir-lhe a porta:
— Faça favor de dizer áquella senhora com quem fallei oitro dia que está aqui o homem de Villaverde com uma carta para ella.
O criado foi e voltou pouco depois.
Na mesma sala em que já fôra recebido uma vez, estava madre Paula. O sapateiro reconheceu-a o cumprimentou-a festivo e humilde, com grande profusão de zumbaias.
— Ora atão vossa reverendissima e incellentissima madre como passou? Passou bem?
— Obrigada, passei bem — respondeu madre Paula com risonho semblante.
— Pois eu támem passei bem, muito aguardecido á senhora... A menina de Villaverde manda muitas bugitas á senhora madre e mais esta cartinha...
E entregou-lhe a carta de que era portador. Madre Paula abriu-a e com grande surpresa leu:
«Minha querida Paula:
«Lembras-te ainda d'aquella desgraçada irmã Dorothêa que no seculo se chamou Helena de Noronha? Se da tua memoria não se deliu ainda o nome da tua pobre amiga e desejas receber d'ella o supremo adeus, vem depressa, antes que a morte lhe gele nos labios as revelações que deseja fazer-te e que só tu poderás receber.
Não te demores, minha querida! Sinto que a vida me foge, e, se não vens immediatamente, receio bem que apenas possas abraçar o cadaver da
Tua Helena.»
— Minha pobre Helena! — murmurou attonita madre Paula, fixando na carta os olhos turvos de lagrimas.
E voltando-se para o sapateiro:
— Onde está ella? — perguntou.
— Quem? A menina de Villaverde? Está em S. Martinho de Campo, que é alli adiante da Povoa de Lanhoso... — principiou o Tomba, pondo em prática o seu plano de arrastar a religiosa á presença de Julio. — Ella deu-me essa carta muito afflicta p'rá vir trazer á senhora madre, porque ella foi p'ra lá tratar de uma probe senhora que está lá a morrer... E díxe-me de bôcca: «Diga á madre Paula — e senhora na presencia — que lhe mando pedir se ella me póde fazer o favor de cá vir fallar commigo, que eu pago todas as despezas de camboio e de carro p'ra cá e p'ra lá, que é um negocio de muita circumstancia e de muito interesse p'rá santa religião, o que lhe eu quero dizer... Agora a senhora madre lá verá... Mas ella dixe-me isto co'uma cara tão afflicta, que eu inté lhe dixe: — Esteje descançada, menina, não se affleija, que a snr.ª madre Paula não tem caratle de dezer que não a uma coisa d'essas...»
— Sim... sim, eu vou! — exclamou madre Paula sensibiliaada — A que horas temos comboio?
— Temos agora ahi um da tarde, depois das quatro horas... Se a senhora madre quizer, inda hoje chegamos lá, porque a gente vae d'aqui dereito a Guimarães e de lá mette-se n'um carro, vamos pelas Taypas e quando forem oito ou nove horas da noite, estamos lá...
— Pois bem; vocemecê demore-se. Eu vou mandar que lhe deem de comer e...
— Comer? Nada, minha senhora! Muito aguardecido, mas á minha bocca é que não vae nada, seja pelo que fôr! — interrompeu o Tomba horrorisado, ao lembrar-se da cilada do Sardão.
— Porque? Vocemecê jantou?
— Não, minha senhora... eu cá não jantei nem janto... É costume que não tenho... já estou desafeito...
— O que! está desafeito de comer!?
— Quero dezer, minha senhora, eu jejuo... É uma promessia que fiz de jejuar dia sim, dia não... e hoje é o dia do sim...
Madre Paula, muito preoccupada com a extraordinaria carta que acabava de receber, não prestou attenção á estranha physionomia do sapateiro recusando a refeição que se lhe offerecia.
— Pois então, se jejua, não quebre o seu jejum, meu irmão. Mas tem de esperar que eu me aprompte para a partida...
— Ó reverendissima madre, eu espero o tempo que fôr preciso... Lá p'rá amor d'isso, não seja a duvida.
— Sente-se então ahi ou vá até lá fóra, á quinta.... Como quizer.
Dito, isto Madre Paula dirigiu-se a uma sala interior onde se encontrava o padre Filippe conversando familiarmente com Paulo de Noronha e Jorge de Gusmão.
— Sr. Padre Filippe — pediu ella — vossa reverendissima faz-me a fineza de me conceder alguns minutos de attenção em particular?
— Pois não, minha senhora! — respondeu o padre gentilmente.
Paulo e Jorge levantaram-se.
— Dêem-me licença, meus amigos — disse-lhes a abbadessa — que lhes roube por um curto instante a interessante conversa do snr. padre Filippe.
E dirigindo-se a Paulo:
— Vae, meu filho, vae até á bibliotheca com o teu amigo a quem pedirás desculpa da minha impertinencia...
Quando os dois sahiram, madre Paula, voltando-se para o Padre Filippe, exclamou:
— Helena de Noronha, a irmã Dorotheia, vive ainda!
— Como o sabes? — perguntou o padre Filippe surprehendido.
— Lê!
E apresentou-lhe a carta de Helena.
O padre Filippe leu, examinou detidamente a carta e disse:
— É a letra d'ella!
— É, não ha duvida... Minha pobre Helena!
— E o que tencionas fazer?
— O portador está lá fóra... E, pois que ella está a morrer, quero pedir-te, meu bom amigo, que me acompanhes a ir visital-a...
O padre Filippe, com a despreoccupada bondade que lhe era natural, respondeu sem hesitar:
— Do melhor grado te acompanharei, minha querida Paula. Quando queres partir?
— Hoje mesmo.
— Porém, Beatriz?...
— Beatriz ficará em companhia de madre Angelica das Sete Dores, que é, como sabes, austera e de são conselho.
— Pois sim.
— Vou mandal-a chamar já e dar-lhe as instrucções precisas... De resto, a nossa demora será curta, porque a pobre Helena acha-se moribunda, como ella propria o diz...
— Convem prevenir Paulo da nossa ausencia e pedir-lhe que se abstenha de vir visitar Beatriz emquanto nós não regressarmos...
Madre Paula sorriu.
— E porque não ha de vir?
— É preciso confiarmos nos sentimentos de nobre lealdade d'esse rapaz, e não o prevertermos com a suspeita que uma tal prohibição traduziria...
— Dizes bem.
— Minha pobre Helena! Que mysteriosa cadeia de soffrimentos a conduziu até ao leito de morte d'onde agora me chama na agonia do traspasse?