Os Retirantes/I/V

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As consolações do sr. vigário, na sua manhã de inexplicável bom humor, dissiparam-se como líquido volátil. A desolação veio sentar-se silenciosa no meio da paróquia, enquanto os últimos dias de março rolavam como avalanchas de luz, deixando após si um rastro de desilusões e pânico.

A população nem mais ousou implorar; a última esperança terminou o seu sonho de prosperidade no vestíbulo da miséria, e o céu pareceu impenetrável como um edifício bloqueado pelo incêndio. Para que levantar preces, que não voltariam à terra convertidas na piedade divina, como os vapores da terra em chuvas benfazejas? Os espíritos afizeram-se ao horror do seu destino, semelhantes às revoadas dos corvos, os hóspedes negros da podridão, ao mau cheiro da carniça. A dor atrofiou os corações, e a sensibilidade enlerdou-os com a anestesia nojosa dos cães, que morrinhavam a digestão de carnes podres, em sono pesado na areia morna do terreiro.

— É tempo de desarmar a rede e arrumar o mocó - já se dizia baixinho. - Não se pode mais esperar.

— Amanhã, infalivelmente amanhã! - exclamavam, sempre que ouviam o soturno clamor do vento da tarde, lúgubre como se fosse o uivo longínquo da fome.

Mas a terra do berço não perdia o seu encanto; despida das galas da fortuna, adquiria o prestígio da desgraça, e os pobres paroquianos deixavam-se ficar no meio da tristeza dantesca, esmagadora, que os rodeava, como os braços de mãe moribunda. A saudade descobria sempre um pretexto: junho ainda vinha longe; os cajueiros ainda tinham uns farrapos de copa com que farfalhassem ao vento agoureiro; à sombra do carnaubal ainda se respigavam frutos.

Tais eram as condições da paróquia em meados de abril, quando foi acabrunhada por mais um presságio da próxima calamidade, objeto dos prós e contras de um grupo que espairecia conversando à porta de Antão Ramos.

— A prova da seca é aqui o sr. inspetor com o preço dos seus gêneros.

— É - desculpava-se Antão -, vocês se esquecem que daqui ao Aracati é um queijo, e paga-se bom dinheiro para ter quem ponha cá os gêneros. Deus os livre dos freteiros!

— Por isso é que Vossa Mercê carrega nos pobres; eles são a sua tropa.

— Negócio é negócio, mas eu não sou o que vocês dizem de mim; uma bolacha para os pobres, com a graça de Deus, sempre hei de ter.

— Que os anjos digam amém, porque, até hoje, ninguém lhe viu os cunhos à moeda.

— Ó sr. Antão, diga-me cá, não está à espera de um cargueiro?

— Olaré, e de bem boa soma.

— Veja se aquilo que ali vem não faz parte da carga.

Voltaram-se todos e olharam para a banda ocidental da praça. Dois homens caminhavam aceleradamente pelo meio do largo e, de um grosso pau atravessado sobre os seus ombros robustos, bojava uma rede de algodão enegrecida pela poeira.

— Muito boa graça! - exclamou amuado todo o grupo. -É algum doente ou defunto: é muito boa graça!

Puseram-se então a observar para ver se conheciam os homens que transportavam a rede; e como eles tomassem a direção da igreja, Antão e os seus conversadores seguiram também para lá. À porta do templo os dois homens depuseram no chão a sua pesada carga e, arfando de cansaço, limpando com o indicador a testa, de onde borbulhava suor a lhes escorrer pelas espessas barbas negras, cortejaram os curiosos. O inspetor e os seus companheiros olharam-se assombrados e apiedados corresponderam. Os homens, empoeirados, maltrapilhos, emagrecidos, semimortos de fadiga, pareceram-lhes dois destroços do medonho desmoronamento do sertão.

— Vossas Mercês me inculcam onde mora o sr. vigário? -perguntou um dos recém-chegados.

— E acolá - ensinou-lhes Antão Ramos, assinalando com o dedo a casa do Paula. - O mais certo, porém, é que ele esteja ali.

E mostrou o casebre em que residia o sacristão.

— E o lugar mais certo - justificaram os outros com malignidade; - é a toca.

— Doença ou morte? - perguntou Antão Ramos apontando para a rede.

— E morte, sim senhor - respondeu o recém-chegado -, e nós queríamos ver se o sr. vigário encomendava e mandava fazer o enterro.

— Pois é ir acolá, enquanto é dia - ponderou o inspetor; - é ir num pé.

O sertanejo partiu.

Começaram logo as perguntas habituais na província, onde a fraternidade é um sentimento profundo, e o outro sertanejo, que ficou de guarda ao cadáver, desfiou ingenuamente as respostas:

Eram de Inhamuns, mesmo do interior do sertão; tinham abandonado um pedacinho de terra que possuíam, porque Inhamuns era hoje o mesmo que uma fornalha. A gente, de alpargatas, sentia tanto calor nos pés como se estivesse descalço sobre brasas. Ia para 30 dias que o defunto, a quem Deus falasse na alma, tinha chegado a Inhamuns. Era de muito longe; morava lá para Maria Pereira, por esses bibocões do mundo, e, muito sabido no entendimento do tempo, não quis mais esperar para ver em que dava o verão. O velho meteu a cara e veio de cabeça baixa, navegando por esses estradões fora que até, Virgem! era um desconforme. Ele vinha a ser sogro daquele que foi chamar o vigário, que era irmão do narrador. Contara o velho que lá em Maria Pereira estava tudo que era uma desgraça, e por isso tinha vindo de mudança. Pelos seus cálculos o Ceará estava perdido. Há duas pedras na serra Grande, a Itaquatiara e a que ele chamava Rei do Fogo. Quando a Itaquatiara fala com a sua voz de pedra, há inverno; mas quando por alta noite o Rei do Fogo acende o seu penacho de luz muito azul e cor de ouro, é um ano de seca. O velho soube que por três vezes brilhou a chama do facho que ninguém acende, e fugiu aos três anos de seca, de epidemia e de morte. Inhamuns, porém, estava já muito crestado da seca, e o pouco que o narrador e seu irmão tinham dava mal para sustentar as suas famílias. Extinguiu-se logo depois da chegada do velho com a sua gente, e então para fugir à fome resolveram partir. O velho coitado, não pôde resistir às longas jornadas, e nesse dia pela madrugada tinha morrido, deixando uma ninhada de dez filhos.

— Mas já está tudo tão mau por lá, que é preciso fugir? - perguntou Antão Ramos.

— Já para um ano - continuou o narrador - não pousam em bando sobre as ramagens da oiticica as nuvens de papagaios e periquitos, e há mais de seis meses come-se a farinha ralada do miolo da carnaúba. A terra está rachada de secura, e da gadaria não resta mais do que a ossada branca. Nós só deixamos a nossa terra, quando não tínhamos nem mais uma cabeça de bezerro; o último boi que apuramos é que nos tem servido para comer na viagem. Está tudo num desespero, e vem aí para baixo um povaréu de meter medo.

— Que desgraça! Santo Deus, que desgraça! - repetiram os ouvintes.

O narrador ia prosseguir para satisfazer o crescido número de curiosos que o ouviam comiserados, porque a sorte de Inhamuns era a da sua paróquia, e, talvez, a de toda a província. Mas o vigário acabava de chegar, e força era interromper-se a narração.

Os recém-chegados colocaram de novo a rede sobre os ombros e, precedidos pelo vigário, seguidos pelos curiosos, entraram na igreja, cujas portas foram no momento abertas pelo sacristão, com o seu mau humor habitual.

Dentro em pouco Paula voltou, e parando junto ao cadáver, em cujo rosto a convulsão da morte estampara o último soluço, principiou a encomendação com os gestos maquinais do homem de ofício, que tem pressa e quer aviar-se. Manejando o hissope com rudeza de pintor a sacudir a brocha, engrolou, com o adjutório do velho sacristão, a mesta solenidade, e rapidamente pronunciou, já de costas para o cadáver, o requiescat in pace.

— Que pitada deu-me o bicho! - disse voltando-se para o sacristão. - E que cara tem ele!

Os parentes do morto choravam sentidamente, limpando os olhos vermelhos nas mangas sórdidas da camisa. Paula olhou-os com a sua frieza marmórea, e com a mais acentuada indiferença:

— Venham daí - disse-lhes; - falta ainda o assentamento e... pagar a cova - acrescentou baixinho, dirigindo-se ao sacristão.

Os homens acompanharam-no até a sacristia, onde sobre uma velha mesa um Cristo amarelecia o corpo e empoeirava as chagas ao desabrigo.

— Sabem que têm de pagar a cova? - perguntou Paula, recostando-se no espaldar da sua cadeira.

— Sim, senhor; mas nós vamos de viagem, e só temos dez tostões para as despesas.

— Isto é pouco - refletiu o vigário, olhando para o tinteiro e batendo com a caneta na beirada da mesa -, com dez tostões não se enterra um homem em sagrado.

— Mas é o que nós temos.

— Pois, meus ricos, o que querem que lhes faça? Vocês podiam ter enterrado o homem no caminho: punham-lhe uma cruz em cima, e livravam-me de incômodos.

Os dois sertanejos fundiram-se em lágrimas, e um deles, com uma acentuação triste, respondeu:

— É que a gente, com ser pobre, pensa que deve ser enterrado como cristão.

— É, mas precisa pagar a cova. Eu já dispenso a encomendação.

Os infelizes, com os olhos baixos e fazendo girar nas mãos os seus chapeirões de couro, calaram-se, abafando os soluços que lhes rompiam em bando. Paula, porém, não mudou de atitude; tamanha dor não teve força para impressioná-lo.

— Em que ficamos? - perguntou depois de algum tempo de espera. - Está quase a anoitecer, e não posso estar aqui até amanhã.

O genro do morto meteu a mão precipitadamente dentro de um bornal, que trazia a tiracolo. Quando a tirou, trouxe suspenso um pequeno cordão de ouro, de cuja extremidade pendia uma cruz.

— Isto chega para pagar a cova, sr. vigário? - perguntou timidamente. E acrescentou. - o mais que eu tenho.

O vigário tomou desdenhosamente o objeto, e depois de examiná-lo por miúdo, escovando na lila da sua batina a pequena cruz:

— Chega! - disse molhando a pena. - Ficará para Nossa Senhora da Piedade, e sairá da minha algibeira ~ dinheiro da cova. Diga o nome.

Pôs-se a lançar o assentamento, e depois, dirigindo-se ao sacristão, fez-lhe sinal para acompanhar os dois fregueses.

— Avie-se, Marciano; eu fico esperando-o aqui.

— É num pulo - resmungou o velho sacristão.

Paula foi debruçar-se à janela, cantarolando e enrolando um cigarro descansadamente.

As últimas claridades do dia confundiam-se já com os primeiros brilhos do luar. Pairava no ambiente uma tristeza sobrenatural, que se podia chamar a melancolia de Deus. O carnaubal distante, já invadido pela noite, vergando com uma branda flexão aos assopros do vento vespertino, espalhava uns frêmitos convulsivos e tristes, como se ele fosse a boca por onde se espalhassem os soluços da esterilidade. Os bois magros e trôpegos desciam para o leito do Jaguaribe à procura de água, semelhantes a um bando de esqueletos recolhendo-se a vala mortuária, e junto das poças, com as ventas muito dilatadas, bebendo a longos haustos e ruminando a não satisfeita gula do pasto, mugiam longamente a sua fome, entristecendo ainda mais a hora melancólica da tarde.

O vigário, porém, indiferente ao que lhe ia em torno, fumava a longas baforadas, imerso numa distração profunda. Tinha os olhos pregados na casa de Queiroz, onde Eulália e suas irmãs apascentavam também a sua curiosidade no grupo formado à porta do templo. Esse olhar agudo, cheio de lubricidade de sátiro, como que rompia todos os arcanos do pudor de Eulália, e mergulhava o observador no delírio de uma festa orgíaca. Balançando-se nas pernas encurvadas e bambas, acendendo cigarros uns após outros, o seu semblante reproduzia o contentamento do tigre aspirando o cruor quente da vítima. Sentia-se bem naquela preguiça que o deixava na posse inteira do seu desejo, sem que o mais leve temor o perturbasse e o desviasse da sua contemplação. Vendo diversas pessoas correrem para o lado da igreja, sorriu agradecido: era um novo fomento à curiosidade da moça, e mais algum tempo de gozo que lhe era dado ao coração de condenado. A noite, porém, interpôs-se, e o encanto rompeu-se bruscamente.

— Está pronto, sr. vigário; lá ficou o homem - disse Marciano.

— Bem, vamo-nos embora; leve aquele cordão para a sua Mundica e diga-lhe que me guarde o café logo mais.

— Muito obrigado, muito obrigado - repetiu o sacristão, que estava acendendo uma vela -, Deus é quem o há de pagar.

Na parede caiada, a sombra do velho esgroviado reproduziu-lhe com um desenvolvimento gigantesco a zumbaia da desonra.

E saíram ambos. Marciano na frente, deixando retinir uma cambada de chaves, alumiava e fechava com estrépito as portas e janelas da sacristia. Paula seguia-o a alguma distância com o seu chapéu redondo na mão. As pisadas rijas do vigário e o chap-chap demorado, raspado pelos chinelos do sacristão no soalho tosco, reboavam.

Quando a chama da vela abriu-se, semelhante a uma pupila enorme, na escuridão da nave, aumentou-se um burburinho que vinha da porta principal, e no corpo da igreja ressoaram passadas em tropel.

— O que teremos mais? - perguntou Paula. - Quer ver que nos trazem outro demônio a encomendar?

— Macacos me mordam, se eu duvido - respondeu o sacristão. - Os homens disseram-me que a sua gente vinha pousar na freguesia, e como estão todos a morrer de fome..

— Entendem que eu hei de estar aqui às ordens para encomendá-los um por um! Não se façam bestas.

A claridade esbateu-se em cheio sobre parte dos que entravam, enquanto os outros formavam círculo em torno do vigário e do velho Marciano. Destacava-se da massa um grupo de vinte e poucas pessoas, entre as quais dois sertanejos já conhecidos do vigário. Dir-se-ia um volvo da miséria trazida ao templo acintosamente, e ao vê-lo misturava-se a comiseração com o nojo. Nos rostos escaveirados, a máscara da fome estagnava-lhes os olhares numa quietação comatosa, e dava-lhes às fisionomias a acentuação do idiotismo. O desleixo enxovalhava a mocidade; envilecia a velhice e deformava a meninice. Uma velhinha de pele pergaminhada, já não podendo suster-se nas pernas fatigadas, sentou-se covando um colo e mostrando os pés inchados, com profundos vincos das correias das alpargatas. Pestanejando silenciosa, com os braços descaídos, lembrava-se a gente das parcas sombrias que o cinzel assenta sobre os túmulos. Duas mulheres, que traziam nos braços os filhos cobertos com uns farrapos, esforçavam-se debalde por acalentá-los: as crianças, ao contato daqueles seios muxibentos, vagiam com o ruído fraco e triste dos sapos magnetizados. As moças, meio corpo em camisa, deixando a descoberto os colos queimados pelas soalheiras e empastados por escuras mascarras de suor e poeira, pareciam as personificações do desânimo. Os seus olhos cearenses, olhos cheios de erupções de altivez, ou de humildades de escrava, conservavam-se baixos, como se quisessem defender-lhes os seios virgens, que tufavam no morim encardido das camisas puídas. As crianças completavam o quadro: vestidas com umas camisolas que mal lhes cobriam os ventres hidrópicos, cabelos emaranhados e piolhosos, olhos ictéricos, o tórax deprimido, braços e pernas atrofiados, pés inchados até os artelhos, assemelhavam-se a rãs mortas. Perfiladas e seguras aos vestidos das mulheres, chupando gulosamente os dedos, narravam no seu semblante bisonho uma longa história de sofrimento.

— Sr. vigário - disse Antão Ramos, que aproveitava todo ensejo de mostrar-se autoridade -, este povaréu pede uma pousada. É uma pobre gente de Inhamuns, lá para os confins daquele sertão.

— É uma obra de caridade dar pousada aos peregrinos - disse o vigário.

— Mas são 23 pessoas; custam a arranchar-se. Nós nos lembramos de Vossa Mercê, por ser na paróquia a pessoa que tem menor família. Eles pedem só para dormir.

— Lá está a casa - respondeu Paula, dissimulando a contrariedade com um sorriso -, mas não será só por uma noite, porque as crianças e os grandes mesmo não resistem a mais jornadas sem descansar, pelo menos, quatro dias.

Muitas vozes concordaram; estavam dizendo justamente isto. Se os retirantes não parassem para descansar, talvez não deitassem mais duas jornadas fora, sem ficar algum pelo caminho.

— O melhor, portanto - continuou Paula serenamente -, é fazê-los acomodarem-se no Engenho: ficarão à vontade, e o tempo que quiserem.

— Mas hoje não podem ir para lá - interrompeu Antão Ramos. - Aquilo está um monturo.

— Na verdade, aquilo está um monturão - repetiram os circunstantes -, até hão de morar cobras nos entulhos. Demais, o Feiticeiro é má vizinhança.

— A minha casa lá está, já o disse - acentuou o vigário.

— Somente hão de dormir sobre os ladrilhos, porque eu só disponho de dois armadores para redes.

— Três podem ser armadas na meia-água da minha casa, que já está às ordens - observou Antão Ramos.

— Mais de três podem ficar na minha bolandeira - disse Rogério Monte, que acabava de chegar.

— Graças - exclamou o vendeiro. - Está tudo arranjado...

E mais baixo:

— Fez-me não sei o que por dentro a cara desses cabras: isto é boa gente por força.

O sertanejo, que à tarde entregara ao vigário o cordão de ouro, teve um movimento brusco de contentamento, e, para testemunhar a sua gratidão, que era partilhada pela família inteira, inclinou-se e beijou a mão do vigário.

— Que lábia - resmungou o sacristão. - É que acha tolos.

O tom escarninho do velho impressionou profundamente os que o ouviram. Sabiam que Marciano era a crônica viva daquelas paragens, embora não tivesse arredado pé da paróquia havia mais de 30 anos. O pior é que dizia sempre a verdade, e que os seus olhos perspicazes como que viam, dentro de todos, os pensamentos os mais íntimos. Esta qualidade adquirira-lhe inimigos irreconciliáveis e antipatias invencíveis, no número das quais estava Antão Ramos.

O que é que está aí resmungando, velho Marciano? Lembre-se de que está com os pés na cova e tem filhas. Não e bom ser palmatória do mundo - disse o inspetor.

E, com mais severidade, acrescentou:

— Se você não escorropichasse galhetas, veria como não lhe sobrava o tempo para espiar a vida alheia.

Marciano caminhou direito para o sertanejo, e, pondo-lhe a mão na testa, exclamou, com um tom impertinente:

— Eis aqui por que eu falo; veja bem, sr. Antão, repare Vossa Mercê, antes de mostrar que tem quijila de mim.

A sua voz roufenha, incômoda, inclemente, alteou-se então, e, cortante como um punhal, fez ressoar esta tremenda injúria:

— É um ladrão que está aqui, uma corja de ladrões, uma ninhada de ladrões.

O efeito de tais palavras foi medonho; subitamente a piedade mudou-se em cólera, e os mesmos que pediam agasalho para os caminheiros gritavam agora que os pusessem fora e os acossassem até longe, como se faz às onças que não podem ser mortas.

O sertanejo, humilhado, cambaleando, levou maquinalmente a mão à fronte, como se quisesse apagar daí o sinal infamatório, mas retirou-a logo com ligeireza de quem se queimasse num ferro em brasa. O pânico e o desespero injetaram-lhe os olhos de sangue e deixaram-no boquiaberto.

— É tarde já para esconder - chasqueou o sacristão. - Todos viram. É uma cruz, por sinal que é feita por mão de mestre e por uma ponta de faca bem afiada.

— Eis aí a pobre gente que, sem mais nem menos, queriam meter-me em casa - disse o vigário sorrindo. - Mais cuidado para outra vez, mestre Antão, quando oferecer a casa alheia.

O inspetor, olhando de revés para o sertanejo, apenas pôde responder humildemente:

— Tem Vossa Mercê toda a razão, sr. vigário, enganei-me.

— Eu juro por Nosso Senhor Jesus Cristo - soluçou o desventurado, a quem visavam as acusações. - Não sou um ladrão.

E, caindo aos pés do impassível Paula, ajuntou:

— Deus, que nos está vendo, fulmine-me com um raio se eu minto...

A impaciência dos espectadores interrompeu-o: não queriam ouvi-lo, estavam fartos de lamentações iguais; que se pusesse fora com todos os seus e bem longe do povoado.

Em vão as mulheres sufocavam-se em soluços, e o Cristo, muito branco e triste, abria no lusco-fusco do templo o seu abraço de perdão: a palavra de Marciano tinha empedernido todos os corações.

Todos os episódios do quadro comovente daquela família fugitiva desapareceram para deixar lugar apenas à cruz infamatória, que se lhe desdobrava agora por toda a altura do porte e pela extensão dos seus braços abertos.

— Não acha que é hora de desatravancar a igreja, sr. vigário? E já noite fechada - ponderou o velho impiedoso.

Paula meneou afirmativamente a cabeça e tentou seguir; mas o sertanejo, caindo de joelhos, abraçando-se-lhe às pernas e insistindo no juramento, constrangeu-o a parar. Quando viu que eram vãos os seus rogos, apelou para as crianças: não tinham culpa da sua desgraça; por ele nem pediria, mas as pobrezinhas tinham fome, precisavam descansar, e agora era impossível caminharem mais.

— As crianças - concluiu ele - não roubam.

O velho sacristão, sorrindo escarninhamente, aproximou-se de um dos meninos, e, segurando-lhe o queixo, resmoneou:

— Estezinho, pelos olhos, já devia ter também a sua cruz; já pode furtar galinhas.

O sertanejo levantou-se com a elasticidade de uma espiral de aço que deixa de ser comprimida, e, cego de cólera, mudada em delírio a resignação, precipitou-se sobre o provocador brutal. Braços possantes, porém, subjugaram-no, enquanto o seu irmão defendia a família das selvagens ameaças.

— Fora, assassino ! Fora, ladrão - gritavam impelindo-o brutalmente.

O desgraçado cedeu ao seu destino de precito. Desde que se lhe estampou na fronte aquela cruz aviltante, a sua sorte era amargar afrontas. Todas as portas negavam-lhe agasalho, todos os corações, piedade. Nem as suas lágrimas, nem as de todos os seus conseguiram apagar o estigma, que lhe circunscreveu todo o horizonte da vida. Em toda a parte ensinavam-se até às crianças a chamarem-no - ladrão!

Saiu, pois, trôpego e humilhado, seguido pela vergonha dos companheiros dos seus padecimentos, da impiedade dos paroquianos e da indiferença do ministro da religião, do perdão e do arrependimento. O céu desnublado vestia-se de um luar deslumbrante; uma viração benfazeja refrigerava o ambiente cálido ainda das irradiações do sol; uns cajueiros esgalhados agitavam os ramos seminus como fazendo um sinal de convite.

— Vamos para acolá - disse o sertanejo -, talvez não nos ponham fora.

— Não - exclamou Rogério Monte, batendo no ombro do precito -, vamos para ali.

E apontou a sua casa, que alvejava em frente, modesta como a bondade.

Duas vozes feminis coroaram a piedade do velho Monte, que se viu colhido entre os seus braços.

— Muito bem, faz muito bem! disseram-lhe Irena e Eulália. - Não há de morrer por aí à toa.

— É como eu entendo também a caridade - disse Queiroz, que, atraído pelo barulho, conduzira as duas moças até a igreja. - Faze o bem e não olhes a quem.

— Está um lindo luar - observou o vigário, que se aproximava do grupo venerando -, dava-se agora um ótimo passeio.