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Os Retirantes/I/VI

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O ato de Rogério para com os sertanejos não foi senão um lampejo da sua fidalguia moral. Vazado no velho molde dos primeiros povoadores e seus descendentes, o seu coração tinha a heroicidade sã da bondade e o desassombro calmo da justiça. Dois terços da paróquia agradeciam-lhe pão e agasalho, consolações na enfermidade, e a cova em que repousavam os entes queridos. Entre os dotes de Irena, a sua filha única, assinalava Monte as suas qualidades de enfermeira, a piedade com que pensava os doentes que vinham acolher-se muitas vezes ao abrigo desinteressado daqueles 16 anos.

Orgulhoso de ter calos nas suas mãos fidalgas, despreocupado da ambição de enriquecer, não podendo resistir ao impulso filantrópico e bom, que o levava a enxugar as lágrimas com que deparava em seu caminho, era chamado pródigo pelos seus amigos. Trabalhava de longa data, cerca de 40 anos, e, no entanto, a sua fortuna era apenas a sua fazenda de criação, fortuna precária que o sol do verão podia facilmente dissipar.

Os prejuízos do velho criador na quadra atual serviam de confirmação aos seus amigos, que, cheios de severidade, repetiam-lhe o rifão: quem dá o que tem a pedir vem.

— Mas encontra quem lhe dê também - respondia Rogério tranqüilamente.

Não era, porém, um ente privilegiado; o seu caráter tinha uma enorme falha. O respeito supersticioso pelos seus maiores fazia-o conservar, como relíquia sagrada, ódio encanecido, invencível, intransigente à família dos Feitosas. Sua alma evangélica negar-lhes-ia um gole de água. Quando, na intimidade, fitava o Engenho mal-assombrado, Rogério deixava perceber que a ponta do punhal do facínora da noite lendária atingia-lhe o coração através de dois séculos, e, como que para vingar a dor da esposa alucinada, historiava a longa série de vinganças, de sevos desforços tomados pelos seus antepassados, com a exaltação de quem aplaude.

— Não me falem em Feitosa - dizia ele. - Este nome faz-me ficar perverso.

E o seu rosto magro, os olhos castanhos desassombrados, os seus movimentos e gestos sempre afáveis mudavam de súbito para uma acentuação frenética, e, aprumando a sua estatura desenvolvida, acrescentava:

— Tenho sangue-frio suficiente para atravessar-lhes o coração a um por um e beber o sangue a essas feras.

A história da província explica, se não justifica, o ódio secular das duas famílias, hoje desmembradas e espalhadas pela vastidão do território cearense, balda de fortuna e de prestígio. Todo o século 18 reboou com o ruído das batalhas desses poderosos rivais, que, de par com os Lyras, foram os Deucaliões do sul do Ceará. Ramos do mesmo tronco genealógico, uma questão de terras separou-os para sempre, e ambos puseram-se em campo, em guerra fratricida, guerra em que as crueldades assombram, as devastações aterroram. As tribos selvagens, assoldadas por eles, foram os executores dos seus tremendos veredictos, e basta isto para perceber-se a monstruosidade das execuções. Ao anoitecer a quietação claustral das fazendas era perturbada pelo toque dos instrumentos guerreiros. Uma seta inflamada atirava o cartel fatal aos moradores, e as labaredas vermelhas de um incêndio, rompendo a custo novelos densos de fumo, apelavam para um, combate sem tréguas. E, no meio da confusão, do alvoroço e do terror, barulhando-se na treva ou arquejando ao calor insuportável do incêndio, os dois exércitos encontravam-se braço a braço, depois de se terem crivado por nuvens de flechas, por descargas de mosquetaria, e ferozes, sanguissedentos, disputavam linha a linha a vitória, cujo coroamento era o sacrifício de mulheres, de crianças e de anciãos. Debalde as justiças da Metrópole tentaram pôr fim a essas contendas ensangüentadas; as ciladas esperavam-nas, e a derrota das milícias era infalível diante dos poderosos sertanejos, senhores de barço e cutelo das povoações, influências invencíveis nos senados das câmaras, agasalho de perseguidos e facínoras. A rivalidade irreconciliável terminou por desmoronar essa grandeza colossal, intumescida de orgulho e de crimes, e no presente século as ruínas apenas sobrenadam ao vasto mar de sangue que teve por praias a extensão de um século.

Não obstante, os velhos descendentes não mudavam na adversidade a paixão dos tempos felizes.

O vigário Paula sintetizou um dia o caráter de Rogério numa das suas frases de fino espírito:

— É um bom homem, que há de ir parar no inferno a dar esmolas.

Queiroz, ouvindo-o proferir esta sentença contra o seu velho amigo, repeliu-a com azedume, admirado de que fosse Paula quem tal dissesse de um homem cujo valimento dera-lhe a paróquia.

— O que quer você, Queiroz? Eu digo o que sinto. A maior virtude do homem é o perdão, e Rogério não sabe perdoar.

— Ora, adeus, homem - respondeu-lhe o professor.

Mas, impressionado pelas palavras do vigário, tentou remover do coração do amigo aquela mancha, que tinha herdado aos seus maiores. Vão propósito: o ódio de Monte estava dissolvido no seu próprio sangue.

Tal era o homem, que não se arreceou de agasalhar a "corja de ladrões" com aplauso de Irena e Eulália e do bondoso Queiroz.

Os paroquianos, comentando a cena da igreja, mostravam-se arrependidos. No fim de contas aquela gente era desgraçada, merecia compaixão, e tanto que soube corresponder à bondade de Rogério cavalheirosamente. Desde o dia seguinte foi instalar-se no Engenho, na vizinhança do Feiticeiro.

Abonançada a inquietação dos primeiros momentos, ninguém mais se lembrou de chamar temerário ao velho Rogério Monte, e a paróquia recaiu na sua vida monótona, dividida entre os comentários dos acontecimentos dos últimos dias e as antevisões dolorosas do seu destino, entre a devoção matinal e o sono letárgico logo ao cair da noite.

Paula continuou a dizer tranqüilamente as suas missas a meter-se três vezes à mesa durante o dia, a consolar o queixoso Marciano, a passar as tardes no casebre deste, a dar o seu quarto de hora de manhã à palestra e duas horas por noite à bisca na casa de Queiroz.

Estas duas horas e pouco eram o seu maior tormento e o seu maior prazer. Via Eulália, sempre confusa diante dele, como que amedrontada, a querer abrir-se em uma fraqueza, e a hesitar. O seu despeito folgava com essa tortura lenta, agravada pelo pudor de Eulália; mas o coração repercutia-lhe dolorosamente aquele sofrimento, que já ia alterando a fisionomia santa do seu ídolo, e então Paula custava a domar o desejo impetuoso de ajoelhar-se junto à moça, pedir-lhe que o perdoasse ou desprezasse, mas que vivesse feliz, despreocupada como outrora. Porém o hálito morno do beijo que lhe embalsamava a mão, sempre que entrava ou saía da casa do professor, alucinava-o de novo, e acordava-lhe, ruidosa como um temporal, a paixão que se estorcia na sombra como as torturas do Ugulino dantesco, venenosa como as serpentes, feroz como as panteras. Lábios que tinham hálito tão perfumoso, de uma tepidez tão suave, deviam dizer carícias angélicas, enquanto as mãos delicadas desfiassem afagos de fazer estremecer, como o rolar de uma gota de água pela medula. E que temeridade, que energia heróica não teria aquele amor, erupto de um coração que acordava com a violência da mocidade, depois de um sono cataléptico de quatro anos, consagrados somente à piedade filial? Não; não podia deixar que outrem fruísse os gozos que a fatalidade, aquela batina cruel, que ele sacudia com as raivas do tigre, lhe proibia. Não seria sua, mas também não seria de ninguém!

E todos os dias, preocupado com a sua vingança recalcada pelas conveniências, frio como as escamas das cobras, calculava como irritar os brios de Eulália, e afastar para sempre Augusto Feitosa, ainda que para consegui-lo fosse preciso vê-la morta.

Uma tarde, a conversar com ela, na horta, achou ocasião de apunhalar-lhe pela terceira vez o mísero coração.

— Por que foge sempre de mim - perguntou-lhe -, ou fica tão contrafeita quando me vê?

Eulália admirou-se de ouvi-lo com uma entoação meiga e tanta bondade no olhar. Estava agora acostumada a outras maneiras, ao desabrimento brutal ou descortesia hipócrita, e por isso o tom manso e cordial do padre fê-la estremecer; mas logo, lembrando-se das palavras de Irena, alvoroçou-se de contentamento. Tratava-a, de feito, como seu pai, e por isso não percebia que às vezes a magoava muito.

— Eu? - respondeu-lhe. - O sr. vigário é que parece continuar mal comigo.

— Não hei de tratá-la com intimidade, quando a vejo esquivar-se...

— É desconfiança.

— É verdade; eu sou meio caboclo, e desconfio muito, principalmente de quem calcula.

— De quem... ? - perguntou a moça, que não ouviu bem a última palavra.

— Digo que - repetiu o vigário, sorrindo e sacudindo o seu longo indicador - não gosto de quem faz cálculos para fazer-se estimada.

— Mas é comigo que fala? - interrogou Eulália, corando muito.

— O padre sou eu, minha sonsinha - respondeu com bonomia. - Eu sou quem pode confessar; você apenas deve cumprir as penitências, de que precisa bem.

— Eu calculo, para ser estimada? ! Por quem?

— Há de ser por mim; pois por quem há de ser mais?. Aviso-a com o segredo do confessionário.

E retirou-se, deixando-a humilhada, perplexa, diante da acusação que o seu recato de virgem considerava esmagadora.

— Eis aí por que me maltrata - disse ela; - eu vi logo a ponta da intriga: hei de desfazê-la.

E perdeu-se num mar de conjeturas, para atinar com a origem da ignóbil difamação.

Toda a paróquia com as suas pequenas murmurações, com os seus dichotes à meia voz, desfilou-lhe pelo pensamento, num préstito sombrio e lúgubre, a olhá-la vesgamente como para um ente abjeto. Deixava de ser a santa filha de Queiroz, alegre como o gazear dos pássaros, para ser a mulher sonsa a calcular com os seus encantos - diziam todos talvez a essa hora. Quando passasse, ouviria o cascalhar represo das risadas malignas, provocadas pela infame calúnia, que se insinuara sorrateiramente no ânimo da paróquia, e, sem que ela própria o sentisse, estampara-lhe na fronte um ferrete ignominioso, quem sabe se indelével!

A calúnia era infame demais para que a revelasse e pedisse a seu honrado pai uma desafronta. Fora amargurar-lhe a existência, ferir-lhe no âmago a vida, enxovalhar-lhe a nobreza. Demais, o sr. vigário impusera-lhe o segredo do confessionário.

Não havia, pois, outro remédio senão ficar abatida aos próprios olhos, deixando-se devorar em silêncio por aquela amargura, até que um dia a justiça do céu se incumbisse da sua reabilitação.

Apressou o passo, e chegando-se timidamente ao vigário:

— Mas o senhor não acredita nessa mentira, não é verdade? perguntou com acanhamento.

— A mulher perdeu o mundo - respondeu sorrindo... - Eu sei lá ... . mas se diz que não...

— Juro que não, pela alma de minha mãe!

— Não é bom falar nos mortos, d. Eulália - replicou austeramente; - não se deve profanar as sepulturas; errar é dos homens.

As lágrimas rebentaram em fios dos olhos tristes da moça, e os seus lábios trêmulos mal puderam tartamudear:

— Seja o que o sr. vigário quiser.

— As lágrimas fazem-na tão bonita, Eulália, que eu não tenho forças para deixar de acreditá-la! - exclamou Paula com uma ternura infinita, apertando entre as suas a mão abandonada de Eulália.

Estremeceram ambos ao mesmo tempo, como se um olhar indiscreto os surpreendesse. A moça apertou o passo para entrar em casa, e Paula conservou-se imóvel a olhar para o chão, como se uma força ignota lhe violentasse o olhar.

Uma toada triste rumorejou então distante, com um eco soturno e lúgubre.

Era o Joaquim Maluco, pai inconsolável, que passava, cantando a sua desgraça na inconsciência da loucura.

— Será um aviso do céu?! - murmurou Paula perturbado.

Mas logo, sacudindo os ombros:

— Seja - continuou consigo. - Prefiro o inferno com ela!