Os Retirantes/I/X

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O vigário, retirando-se da casa de Rogério Monte, fora dar os bons dias e levar a honrosa nova ao professor. Francisco de Queiroz, porém, respondeu-lhe com os mesmos escrúpulos de Monte, e recusou formalmente a distinção que lhe era dada pelo governo.

Paula, que não achava decentes num professor público semelhantes razões, ponderou-lhe que era uma desculpa sem valor e concluiu por disfarçar uma ameaça:

— Se o governo souber que você negou-se à comissão sem um motivo justo, pode tirar-lhe a cadeira.

— Paciência - respondeu o professor -, serei castigado por ter brio.

Paula não perturbou-se com esta outra negativa, e calmo, escarninho:

— Fazem bem - disse a franzir os lábios; - já vejo que era até impossível servir com vocês: os escrúpulos deitariam longe.

— Já vê que procedemos bem; confesse-os você ao seu gosto e proceda como entender.

— E o procedimento há de ser aplaudido por todos. Ouça: um grupo de virgens se incumbirá de tratar das crianças e dos enfermos. Que lhe parece?

— Bom - respondeu sinceramente o professor -, muito bom.

— Então espero que a sua falta de religião não impedirá que suas filhas façam parte do grupo.

— Certamente.

— Eu contava com esta resposta; vamos a ver o que dizem as meninas.

Eulália e Chiquinha mostraram-se entusiasticamente dispostas a aceitar a tarefa, e a primeira acrescentou:

— É uma obra de caridade; assim é que devem ser tratados os infelizes, e não como naquela noite da expulsão da família chegada de Inhamuns.

Desde a vez em que Paula insinuara a Eulália que ela era uma doida, nunca mais tinham trocado palavras, exceto as de cumprimento à entrada e saída do vigário que, ao sentir o hálito morno do beijo habitual da moça, maldizia-se de haver-lhe provocado a frieza hostil. Eulália por sua vez pensava em Paula, mas com o desejo de vingar-se, de humilhá-lo, ferindo-o no seu crédito, desprezando-lhe a amizade. Olhou, pois, em face o vigário, para ver o efeito produzido pelas suas palavras.

— A caridade não deve exagerar-se ao ponto de proteger ladrões - respondeu Paula com máxima serenidade. - É verdade que os apóstolos de hoje pregam o contrário, mas em compensação fogem ao menor sacrifício.

— Não é por ser apóstolo que eu estranhei; é que sou sincera - replicou Eulália meio embaraçada.

— Deus a conserve sempre assim. Bem! Vou ao Antão Ramos.

A conversação passou de chofre para os comentários acerca do encontro do inspetor diante do cemitério.

— Ele vai melhor? - perguntou o professor.

— Deve estar bom já. Dormiu sempre ontem.

— Parecia estar doido; falava em incêndio, em serviço a Deus, nos retirantes...

— Era um delírio - interrompeu Paula, um pouco perturbado -, mas passou.

— Esteve mal o pobre homem; dizia que você o tinha mandado incendiar o Engenho. Que trapalhada! Que febre!

— É - ponderou o vigário -, talvez já estivesse doente quando lhe contei o sonho que repeti ontem na prédica; impressionou-se demais. Até logo, vou justamente à sua casa convidá-lo para fazer parte da comissão.

— Até logo.

Eulália e Chiquinha beijaram a mão do pároco, que batendo-lhes carinhosamente na face, agradeceu em nome do céu o favor que lhe iam fazer.

Em meio da sala das aulas, porém, o vigário foi obrigado a retroceder. Monte, que entrava na ocasião, pediu-lhe para servir de companheiro a Eulália até que entrasse em sua casa.

— Irena está tristíssima com a partida, e pediu-me para lhe levar a amiga. Faz-me este favor? - perguntou Rogério.

— Com todo o gosto.

— Ó Queiroz, deixa a tua filha ir ficar alguns minutos com a minha! - exclamou Rogério entrando na sala de jantar.

— Eu preciso de conversar, e Irena está inconsolável. O vigário ficou à espera para acompanhar Eulália.

O sobressalto da moça não deu lugar a que se acentuasse a contrariedade que lhe causava a companhia de Paula. Não hesitou; apenas demorou-se a consertar as tranças, e saiu muda e apressada.

O vigário, apertando um pouco o passo cadenciado, envolvia-a com a lubricidade do seu olhar. O seu vestido e cassa, muito justo no tronco e escorrido sobre as saias sem goma, iludia o recato virginal e deixava completamente desenhados os contornos luxuriantes, a altivez feérica dos seios impolutos, e a tumescência escultural dos quadris das Pomonas de mármore.

O sussurro do roçar das saias no chão arenoso da praça chegava-lhe ao ouvido com a sonoridade dos coros das lendas orientais: música suave, que era a surdina das frases quentes e das exuberâncias de gozos de paixões estimuladas por encantamentos de fadas. Paula, sentindo-se só na vida, como que queria dissolver-se nesse mágico som, como os palácios solitários, que eram o abrigo daqueles amores, dissolviam-se com as névoas nos primeiros rumores do dia, prestes, como se fossem eles os materiais com que a aurora construísse o vestíbulo cambiante que dá entrada ao sol no domínio absoluto do firmamento. Trêmulo, ofegante, delirando, o vigário seguia a jovem arrebatado pela paixão, a querer pedir-lhe um gesto, uma palavra, e no entanto mudo e automático. Os lábios secos pelo acesso violento de fascinação embebiam-lhe a voz como a esponja seca embebe a gota de água, e ao passo que o seu andar rítmico devorava a distância, a celeridade desse turbilhão de formosura e pudor punha-lhe no crebro a vertigem da perdição.

Eulália percebia o esforço de Paula para colocar-se ao seu lado, e por isso mesmo esmerava-se em malográ-lo acelerando cada vez mais os seus passos. Maltratara-a muito, sem que lhe desse causa; era mister castigá-lo com a mesma crueza, deixando aos olhares da perspicácia maligna verem uma posição equivoca para o vigário, que não gozava de bom nome. Isto bastaria para sua vingança.

Mas entre a casa de Queiroz e a de Rogério Monte ficava a do velho sacristão, ao fundo de um pequeno terreno ensombrado por grandes cajueiros. Ao passar em frente, Eulália encarou com a Mundica, a rainha da formosura aclamada pelo povoado inteiro.

— Entre um instantinho, Eulália; há que tempos não a vejo - gritou Raimunda correndo para a cancelinha da cerca. E dirigindo-se a Paula: - Bom dia, sr. vigário; está também se tornando fruta.

— Não posso; vou com muita pressa - respondeu Eulália, que se limitou a acenar-lhe com a ponta dos dedos.

Mundica encostara-se à cancelinha e estendeu a mão ao vigário, detendo-o.

— Por que não veio ontem? - perguntou meigamente, repreensiva.

— Pelas ocupações, filha; até logo.

— Sim? - murmurou a voz suave de Mundica - Olhe que eu tenho ciúmes.

— De quem? - perguntou Paula afastando-se.

— De todas...

— E as outras todas nem se lhe aproximam..

Raimunda, que havia intrometido no engradado da cancelinha a cabeça sedutora, como um ideal de deusa pagã, contraiu os finos lábios num muxoxa; depois levando à mão a boca:

— Vá depressa; creio que o vento já está soprando para aquele lado - disse.

E assinalou Eulália.

A beleza oriental de Mundica fez espairecer um pouco o vigário, que, reportando-se à frieza habitual, seguiu no seu passo ordinário. Eulália diminuiu também a celeridade do andar; por duas vezes voltou-se disfarçadamente para trás, e, mordendo os lábios, seguiu ainda mais devagar como para se deixar apanhar. Mas o adiantamento que levava tornava impossível o vigário aproximar-se, sem que ela parasse, antes da casa de Monte, que estava à distância de uns vinte e tantos passos. Cada vez mais percebia-se no andar da moça a dissimulação da vontade de ver-se alcançar, descrita pelo poeta nas ninfas da ilha dos Amores. No entanto prosseguiu até que chegou à porta da casa, de onde via ainda a cabeça encantadora de Mundica.

— Anda muito - disse Paula reunindo-se-lhe a sorrir; - é em tudo a Diana caçadora.

— Muito obrigada pelo favor de trazer-me - respondeu Eulália.

E tomando-lhe a mão, inclinou-se para beijá-la.

Paula reteve na sua a mão de Eulália, e fixou nos dela os seus olhos, que fitavam-na com a magia de 15 anos de domínio. Amável, abandonada a uma força que era superior ao seu desejo de vingança, Eulália deixou-se ficar com os olhos baixos sob o magnetismo desse olhar invencível.

— Temos estado com os papéis invertidos - murmurou o vigário; - quem deve beijar-lhe a mão sou eu.

E fez menção de beijá-la; mas o pudor da mulher reagiu contra a fraqueza da menina de outrora, e Eulália, arquejante de vergonha e de energia, repeliu-o bruscamente, e entrando:

— Eu não sou a Mundica, ela ficou mais para trás -resmungou quase a chorar.

— Já tem ciúmes? - perguntou Paula baixinho.

E alteando a sua voz autoritária, acrescentou:

— Lembranças à Irena, ouviu?

Eulália em bicos de pés e despercebida, entrou até a sala de jantar.

O sol, debruçado por sobre a janela que dava para a horta, parecia um ladrão escarranchado no peitoril, com o pulo já firmado no pé fincado no solo. Um grande quadrilátero de luz punha um tom alegre no fulvo sombrio do enxadrezado do ladrilho. As cadeiras desarrumadas lembravam pessoas tresnoitadas, adormecidas aqui e ali, no desleixo do torpor.

Sobre uma corda, amarrada por uma das extremidades à parede da casa, um terno de roupa cheia de dobras e muito preta, aquecia-se, para ser desempoeirado. O abandono e a tristeza, congraçados no silêncio apenas quebrado pelo ferver pouco ruidoso das panelas, na cozinha próxima, davam a tudo um aspecto desolado.

A porta do quarto de Irena, apenas encostada, cedeu ao delicado impulso da mão de Eulália, e a claridade da sala rompeu o crepúsculo em que a janela cerrada mantinha o aposento.

Irena, toda vestida, estava atirada sobre a rede, a cujos pés uma cabocla velha, com o braço apoiado sobre um joelho, sentada no chão, cochilava e cabeceava. Eulália parou e inclinou-se diante da rede, e depois de contemplar o rosto pálido, as pálpebras roxas, as veias azuladas muito visíveis nos punhos e no colo de Irena, sentou-se em frente à cabocla, e encostou a cabeça à fronte lívida da amiga, que resfolegava demoradamente o seu pesado sono de prostração e de angústia.

Esteve muito tempo assim, até que em uma das contrações que de quando em quando obrigavam-na a exalar um longo suspiro, Irena abriu os olhos muito azuis, e conchegando a sua face à de Eulália, prorrompeu num choro histérico, arquejantemente soluçado.

— Vá Matilde, vá cuidar das coisas - disse Irena à cabocla; - eu não tardo também.

— O que é isso, minha filha? - perguntou Eulália pela terceira vez. - Que desespero! Não sabe ter um pouco de paciência?

— Ah! Você não pode calcular o que nos aconteceu! Seu pai não lhe contou nada?

— Disse-nos que você ia amanhã lá para casa, porque seu pai vai ao Aracati a negócios.

— Não, não é só isto.

E interrompendo-se a cada instante, para dar curso ao crebro soluçar, Irena desfiou a história do repentino descalabro da casa paterna.

— Mas não vale a pena você afligir-se tanto - disse-lhe Eulália. - Moraremos todos juntos; meu pai há de gostar de poder retribuir ao seu as muitas finezas que lhe deve.

— Não é possível, minha filha, e esta é a causa da minha aflição; meu pai quer mudar-se da paróquia e ir para o Ceará, para não viver humilhado aqui. Já vê que eu tenho de partir também.

— Partir ... - repetiu Eulália.

E confundiu as suas com as lágrimas da amiga.

Conchegadas as faces, e misturando o pranto e os hálitos, jazeram por largo tempo. Cada olhar que trocavam era um fermento ao padecimento e fazia recrudescerem os soluços, e redobrar-se o amargor do choro.

— Mas, não; eu não parto!

— E seu velho pai, Irena?! Há de você desobedecê-lo, quando ele sofre tanto?

— Nunca pensei em proceder assim, mas é o meu destino.

— O desespero é quem está falando por você: pense melhor.

— Parece que você deixou de ser minha amiga, Eulália - disse a filha do criador, sentando-se de improviso no bojo da rede.

— Eu?!

— Sim, não era de admirar; o vigário, que se mostrava tão amigo de meu pai, soube indiferente da sua desgraça.

— Está bem - balbuciou Eulália sentidamente -, eu já dei motivos para ser igualada àquele ser abjeto!

As palavras da amiga, pronunciadas com o amargor do ressentimento, como que acabaram de alucinar a desditosa Irena. Descendo precipitadamente da rede, foi sentar-se junto de Eulália, e abraçando-a, pousando a cabeça sobre o seu ombro, suplicou-lhe a arquejar:

— Não me queira mal, minha amiga; eu nem sei o que digo!

Estava como doida; o coração tornara-se insensível para tudo que não fosse Augusto, que não viesse dele, que não tendesse para ele. Olhando para o fundo da consciência, via todos os seus sentimentos estrebuchando aos pés do seu amor triunfante e bárbaro na vitória. A amizade por seu pai e Eulália ia a pouco e pouco afastando-se-lhe do coração, triste como ao pôr do sol retiram-se das bordas do açude as garças assustadiças. Tinha tido um sonho medonho. que era a tradução fiel de sua alma: Feitosa tinha saltado a janela do seu quarto, e, trêmulo, carinhoso, tinha-a tomado nos braços. Ela madornava, e só acordou traspassada pela frialdade da noite e pela claridade indiscreta do luar, mas nem sequer teve o menor estremecimento. O brilho sereno dos seus olhos pediam-lhe perdão e prometiam-lhe um mundo infinito de alegrias imaculadas, feito de constelações de beijos e das irradiações ardentes do seu amor. Passaram as horas a conversar venturas, a fazer castelos. Tomavam a vida entre os dedos, como a criveira a sua agulha, e com ela bordavam os relevos de um paraíso de amor no tecido de lágrimas do passado. Ao nascer do dia, ela tinha-se vestido de branco, cercado a cabeça por uma coroa de flores de laranjeira e ensombrado o rosto com um véu de escumilha; Augusto, vestido de preto, dera-lhe o braço, e sozinhos, absortos no seu íntimo contentamento, foram ajoelhar-se aos pés do vigário Paula e juraram amar-se até além da morte. A igreja estava solitária, e o Cristo, emoldurado pela claridade da banqueta acesa, tinha a quietação de quem duvida e espera. Ela e seu noivo subiram ao altar, e, depois de ajoelharem-se e rezar, levantaram-se para casar para sempre as suas almas num beijo deposto aos pés do Homem-Deus. Feitosa tomou o crucifixo, e, conchegando o rosto muito descorado ao seu, que escaldava de rubor, aproximou o corpo do Cristo aos lábios de ambos. Porém, como neste momento levantassem os olhos, não viram na cruz o Deus que perdoa, mas Rogério Monte, de uma lividez transparente, deixando ver o coração a sangrar pela fenda de uma punhalada.

— Uma gota de sangue - concluiu Irena - caiu entre nós, e então uma força que eu não via começou a separar-nos sempre, sempre, até a morte!

— Minha pobre amiga.. ai! Nós somos bem infelizes.

— Eu; você não, porque não ama.

— É verdade - exclamou Eulália, dominando um tremor convulsivo -, não amo!

— Não sabe que dor profunda é amar - continuou Irena exaltando-se - sem poder dizer a ninguém que este amor vive, cresce, escraviza, e matará!

— Ai! Desgraçadas de nós! - soluçou Eulália com uma entoação desesperada.

Calaram-se, e cruzando as cabeças uma sobre o ombro da outra, quedaram abraçadas estreitamente, como se quisessem consorciar as suas dores gêmeas.

O isolamento dava-lhes uma investidura sobrenatural. Pensar-se-ia, ao vê-las, ter diante dos olhos uma dessas páginas rendilhadas dos bons tempos da cavalaria, em que os donzéis galhardos justavam lanças pela posse de nobres damas. Elas eram as castelãs requestadas, lacrimosas, inconsoláveis, no desvão desornado do castelo feudal, sem outra coragem do que enviuvar na virgindade e esperar resignadamente que a morte viesse entressachar de goivos as suas grinaldas puras.

De fora vinha a toada triste de uma canção sertaneja, muito prolongada em assonâncias contraltinas, e de quando em quando um arrulho de rolas, escoado dentre as copas das árvores. De mistura com eles ouviu-se dentro em pouco uma voz gutural, áspera, roufenha, arremedando a toada tristonha que os escravos do criador cantavam revolvendo nos canteiros a terra ressequida.

— Que voz tão feia - ponderou Eulália, desligando-se dos braços de Irena -; causa-me calafrios.

— Há de ser o Joaquim Maluco, que vem almoçar - disse Irena. - Ele também há de sentir muito, quando eu me for embora.

A toada e o arremedo continuaram, até que o doido, sacudindo-se na cerca, bradou num assomo de cólera:

— Calem-se, não cantem que podem acordar minha filha. Eu não quero que ela vá hoje confessar-se com o vigário; calem-se!

Uma gargalhada respondeu ao grito adoidado daquele coração de pai, sublime ainda na loucura.

— Cabocla, vai dizer lá fora que não zanguem o doido! - gritou Irena.

E pálida, desfigurada, voltando-se para Eulália, acrescentou:

— Eu morreria de dor, se meu pai enlouquecesse.

— Não fale, não fale assim... Esse homem é uma perseguição; antes morresse.

— Padece muito; ainda há pouco, desapareceu de casa, e só dois dias depois foi encontrado, porque souberam pelo vigário que ele estava no cemitério.

A toada sertaneja cessou, e o doido, deixando a cerca, acrescentou:

— Vamos, vamos ao outro anjo, ao anjo do velho daqui, meu amigo; quando a minha filha acordar há de vir também.

— Coitado! - murmurou Irena.

E levantando a voz, chamou pela cabocla.

— O que é que você vai fazer? - perguntou Eulália.

— Mandá-lo entrar para comer.

— Não, não o faça entrar; eu tenho medo, tenho vergonha dele.

— Você?

Eulália escondeu o rosto nas mãos, como que para ocultá-lo de si mesma, e murmurou:

— Sempre que o vejo, lembro-me do sr. vigário, e tenho medo.

— O sr. vigário é um perverso, frio como as cobras -acentuou Irena.

Eulália confirmou e continuou a maldizer do vigário. Parecia deleitar-se em torturá-la sempre. Desde a procissão de prece, nunca entrou em conversação consigo sem acerar no fim uma grosseria que a ficava pungindo cruelmente. Mas o pior, o que a assustava, era que as suas insinuações já como que lhe compraziam; eram como um remédio sobre uma chaga prestes a cicatrizar. E certo que lhe doíam muito, mas era uma dor que passava rápido, uma nuvem negra que se desfazia logo, para deixá-la mais claramente ver o passado que era todo de Paula. Lembrava-se das suas afabilidades de então, e via-o muito carinhoso, chamando-a para junto de si inclinando-se cheio de ternura e beijando-a nas faces. Nesse tempo, o vigário não a maltratava. Tinha, ao contrário, por si desvelos de pai. Queria saber se tinha estudado, como ia cosendo, como já crivava e, sempre que havia portador para o Aracati, mandava-lhe vir bonecas bonitas, com os cabelos louros como os de Irena. Agora que, sem razão, não tinha a dizer-lhe senão palavras desabridas, ela voltava-se para o passado, onde ouvia aquela mesma voz repassada de ternura. Ah! Se pudesse esquecê-lo, se houvesse o que lhe suprimisse da memória os 15 anos de bondade e de carinhos, como seria feliz!

Irena, que se ia impacientando à medida que Eulália confiava-lhe o segredo do seu pensamento para com Paula, teve um movimento brusco ao ouvir estas últimas palavras.

— Mas então esse vigário continua a fazê-la sofrer?

— Muito, muito!

— Oh! Meu Deus! - ponderou Irena receosamente. - Quer ver que você o ama!

— Eu?! - interveio Eulália, profundamente enleada. - Amo-o sim... como sua filha.


À esta mesma hora o vigário conversava com Antão Ramos.

Paula sentia-se bem, tinha tomado uma sangria para se desencalmar, pois viera soalheira em fora, para não dar ao inspetor o azo de pensar que ele se esquecia dos amigos. O quarto, ainda que estivesse com as janelas fechadas, era fresco, atraía pelo asseio e além disso pela presença da mulher de Antão. Era uma trintona de carnes luxuriantes, muito afável, rindo a mostrar toda a dentadura sã, e deixando cair a cabeça para trás, movimento que lhe mostrava o pescoço roliço como um estipe, braços fortes e principalmente olhos prometedores. Estava aleitando uma criança robusta, que, já meio saciada, brincava, ora abandonando, ora pegando de novo no seio nu, moreno, que ele sustinha entre as mãos pequeninas. Paula para a enquijilar, ia de espaço a espaço meter-lhe os dedos entre os lábios e afastar o bico do seio, que depunha na face próspera da criança a gota de leite pendente, essa pérola sacrossanta do eterno diadema da mulher. A criança, revirando-se no colo, voltava-se para o vigário, mas em vez de enfadar-se sorria, e Paula então, cravando com um delambimento hipócrita os seus olhos negros nos da senhora, gabava tamanha mansidão.

— Não foi coisa de cuidado, e ainda bem, porque faria agora grande falta - ponderava o vigário, de quando em quando.

— Hoje, sr. vigário; mas ontem quando este homem entrou em braços, pensei que os meus filhos iam ficar sem pai.

E a sra. d. Teresa passava a mão pela testa do marido, como se temesse ainda perdê-lo e não quisesse regatear-lhe carícias.

Alguns minutos depois da chegada, Paula tinha ferido o ponto principal da sua visita, e recebera de Antão Ramos a resposta que esperava.

— Muito agradecido pela honra, a Vossa Mercê; conte comigo.

— As pequenas compras de gênero hão de ser feitas na sua casa... Felizardo ! - acrescentou o vigário - Vai ser milionário...

— Qual, sr. vigário! A farinha e a carne não dão para isso.

A conversa estancou de pronto, porque o sr. vigário tinha ainda de ir arranjar um terceiro comissário. Queria que ele fosse o Augusto Feitosa; era um rapaz que tinha algo de seu e pelos modos parecia bom procedido. Retirou-se, portanto, o presidente da comissão de socorros em direção à casa do indigitado.

Contava com o efeito das suas visitas àquela hora, porque importava um sacrifício. O sol no meridiano lançava sobre a terra os raios potentes, como o tigre as suas unhas tremendas nas carnes da presa. O solo irradiava o calor de um ferro em brasa, e nem um sopro de vento refrescava a atmosfera. Os grandes como os pequenos dormiam nas suas redes, sem ousar pôr pé fora de casa: seria apanhar febre maligna, que era andaço e que não tinha cura. Só o vigário ousava afrontar a canícula, por amor da caridade, e isto impunha a aceitação do que pedia.

Foi, portanto, sem nenhum transporte que recebeu do moço a resposta de que aceitava a comissão.

Amanhã, pois, o senhor estará em nossa casa para fazer comigo a distribuição de víveres.

— Sem dúvida, sr. vigário; hei de fazer por cumprir o que me for ordenado.

Paula começou a discorrer longamente sobre o que tinham a fazer, as medidas para manter o moral entre os desgraçados, os cuidados com que teriam de lutar para bem distribuir os socorros. Concluiu pelo grande concurso que viria à comissão do auxílio de um grupo de moças que se incumbissem das crianças e dos enfermos.

Teriam neste número as filhas das maiores pessoas do lugar, o que era um exemplo às outras, e ao mesmo tempo a segurança com que trabalhariam. Entre essas graciosas belezas da paróquia estava Eulália, a filha do professor, uma flor de carne que exala perfumes do céu.

— O senhor conhece Eulália, não é verdade, sr. Augusto Feitosa?

— Conheço - respondeu Feitosa ingenuamente. - É para o meu modo de entender uma das boas almas daqui, um coração leal e dedicado, fidalga nas afeições.

— Então conhece-a bastante?

— Muito, muitíssimo. Porém, permita-me uma indiscrição: a Irena Monte faz parte do grupo?

— Não podia deixar de convidá-la: dou-me, há muitos anos, com Rogério, e hoje, que ele está próximo da miséria, devo ao menos salvar as aparências.

— Longe de mim a menor censura contra o seu procedimento, sr. vigário. De coração lhe confesso, estimo até que assim entendesse.

— É um nobre procedimento - disse Paula meneando a cabeça como quem está admirado.

Os olhos do vigário desmentiam-lhe, não obstante a aparente cordialidade. Revestia-os já o brilho felino habitual, e foi saturando de escárnio as suas palavras que reatou a conversação.

— Está definitivamente assentado; espero-o amanhã pelas dez horas.

E tomou o seu chapéu redondo para sair.

— Eu não me furtarei a nenhum trabalho; mande, sr. vigário.

— Para o inferno - resmoneou este -, raça de cães e assassinos

Depois acrescentou alto:

— Hei de aconselhá-lo.

O ódio recalcado de Paula, insurrecionado pela espontaneidade de Feitosa, pintou-lhe o movimento de caridade como indecente manobra para obter mais tranqüilas, mais fáceis, mais longas entrevistas. Cabisbaixo, vacilando como se estivesse tonto pelo ardor da soalheira, caminhava para casa com a celeridade dos seus pensamentos apaixonados. Não via, não atendia, não cumprimentava, e à porta de venda do inspetor não se demorou senão para certificá-lo da aceitação de Feitosa.

Mundica, que viera assentar-se a coser sob o arborizado da frente de sua casa, convidou-o em vão para descansar, mas ele respondeu friamente:

— Estou a arder com dores de cabeça.

— Há de ser cansaço; venha deitar-se na rede e verá como fica bom.

— É o que vou fazer.

— Mas por que não me faz a vontade, vindo descansar aqui?

— Prefiro o silêncio; adeus

Passou adiante e, vendo na sala da escola Queiroz e o velho Monte, limitou-se apenas a dizer que voltaria depois; agora precisava de repouso.

Mas em casa o primeiro cuidado de Paula não foi fechar-se no seu quarto para deitar-se. Sentou-se diante da mesa da sala de visitas e tirou de sob os papéis um canivete-punhal, cuja lâmina pôs a nu. Limpou-a cuidadosamente na manga da batina, provou-lhe o fio na palma da mão e, fitando-o com uma atenção de joalheiro, murmurou sombriamente:

— Ê preciso que estejas ao meu lado; quem sabe o que teremos de fazer!