Os Retirantes/I/XIV
O vigário, esporeado pelo pavor, esgueirou-se cautelosamente, ora recolhendo-se, ora arrastando-se, com receio de ser visto. Quase no fim do largo ficava a sua casa, alvejando o caio novo e deixando perceber luz no interior, pela porta escancarada. Paula afinal parou em frente e, colando-se ainda mais com o solo, pôs-se a escutar. Nenhum outro ruído lhe chegava ao ouvido, além do sussurro das vozes dos vizinhos reunidos no lugar do crime. Ergueu então a cabeça, observou: ninguém passava. A porta de casa, ali tão perto, asserenou-lhe o ânimo. Deu alguns passos, e... estava salvo!
Entrou pé ante pé com a batina muito colhida, penetrou na sala escura e silenciosa, e resfolegou longamente. Não o tinham visto, e nem os próprios criados deram pela sua prevenida entrada.
— José, traz-me luz - rouquejou com azedume.
Entrecerrou as bandeiras da porta, ficou à espera, e quando o pequeno, todo trêmulo, com os olhos apertados pelo sono e pelo choque da claridade, entregou-lhe o castiçal:
— Estão frescos guardas para a casa - disse. - Safe-se, moleirão!
Fechou-se cuidadosamente, enquanto o pequeno trancava a porta da rua e, pisando de manso, entrou no quarto de dormir, colocando o chapéu e o castiçal sobre a mesa, onde o velho Cristo quedava na sua perpétua escravidão de piedade.
Paula, encarando despreocupadamente com a imagem, foi deitar-se na rede; espreguiçou-se muito, escancarou um prolongado bocejo, ajeitou-se nos travesseiros e jazeu tão calmo que dir-se-ia ter adormecido.
Mas pouco depois, levantando-se de um salto, pôs-se a examinar miudamente a batina e em seguida o chapéu redondo de grandes borlas pretas. A roupa empoeirada e empastada pela terra da horta, úmida da rega vespertina, estava felizmente intacta; só alguns dos botões tinham desfiado um pouco pelo prolongado roçar. No chapéu não havia o menor vestígio, a não ser uma pequena mancha de sangue.
Dirigiu-se até o lavatório, improvisado com um alto mocho e uma bacia de ferro, sobre a qual refletia o polido embaciado de um espelho. Com a cabeça baixa, os lábios contraídos num sorriso, lavou tranqüilamente as mãos e a orla da manga da batina. Depois, pingando com a ponta dos dedos gotas de água no pêlo empastado do chapéu, demorou-se a esfregá-lo com a unha. Voltou então para junto do lavatório, onde, depois de enxugar as mãos, atirou desdenhosamente com a toalha. Calmo, foi a um cabide pendurar a batina e o chapéu, e resmungou finalmente com um sorriso mais franco e acentuado:
— Procurem agora pelo homem da capa preta!
Ao pronunciar a última palavra, porém, tinha suspendido a cabeça e os seus olhos depararam com a sua imagem no polido do espelho. Inclinou-se sobre ele, passou a mão aberta sobre as faces e, a estremecer como um friorento, veio buscar a vela que deixara junto ao Cristo, tornando a ir mirar-se ao espelho.
— Sangue! - disse com um sussurro gutural.
E, depositando a vela sobre o lavatório, pôs-se a lavar o rosto sofregamente. Enxugou-se com a mesma precipitação, levantou a tremer a vela e de novo olhou para o espelho. O sorriso voltou-lhe na inteireza da sua perversidade, mas não demorou muito a extinguir-se: um fio de água sanguinolento, escorrendo sobre a volta, molhara-lhe a camisa e aí deixara uma grande mancha comprometedora.
— Que teiró - resmungou desabotoando-as convulso e atirando-as com arrebatamento a um canto.
O ar fresco do quarto ladrilhado envolveu-lhe o tronco despido, e o frio momentâneo que lhe causou como que lhe pareceu o contato do braço de um agente da justiça, que o segurasse pela nuca. Encurvou-se todo e, trôpego, caminhou para uma caixa de folha, que estava por debaixo da mesa.
A postura em que se achava punha-lhe a cabeça na altura do semblante do Cristo. Paula, ao inclinar-se, roçou por ele e fez vacilar na pequena peanha a cruz negra, de verniz já deteriorado. O fraco ruído produzido bastou para fazê-lo recuar desvairado, e como olhando em roda de si nada avistasse, encarou irritado para a imagem.
— Não, não me assusto - resmungou com acentuado escárnio; - não tremo, olho-te de face.
Mas à proporção que o desvairamento lhe inspirava estas blasfêmias, a consciência punia-o tacitamente. Todo o corpo tremia-lhe, a garganta vasculejava as palavras, os olhos esgaravam-se, os cabelos ouriçavam-se. Malgrado seu, os joelhos dobraram-se-lhe na atitude da prece, enquanto as mãos trêmulas seguravam o crucifixo. Então as lágrimas e os soluços romperam-lhe em quentes borbotões, deslizando-se pelo corpo frio do Cristo, que ele, mordido pelos remorsos, apertava contra o seio.
— Perdão! Perdão!... - soluçou contritamente. - Eu não era mau, Senhor; fizeram-me perverso; vós conheceis a minha dor... Oh! meu Deus! Ocultai a minha vergonha, escondei o meu crime para sempre!
Quem o visse, prostrado, sufocando-se em soluços, afogando-se nas lágrimas, cheio de arrependimento momentâneo, julgá-lo-ia resgatado.
As lágrimas do remorso lavam na imaginação dos crentes a mancha dos maiores crimes. Venha embora a miséria bater à porta da vítima a pedir-lhe as filhas para o alcouce, os filhos para os quartéis, a viúva para o nivelamento tristonho do hospital, não importa; a onipotência divina volta as costas aos que sofrem, e prepara os caminhos estrelados do céu para o criminoso arrependido!...
Mas Paula não se conservou por muito tempo nessa postura de penitente; erguendo-se de súbito, com o crucifixo apertado em uma das mãos, caminhou direito à batina, cujos bolsos revolveu freneticamente.
— Não está - pronunciou guturalmente -, não está!
Pegou então na vela com um dos dedos da mão com que segurava o Cristo, e dirigiu-se à rede, de dentro da qual tirou toda a roupa, que sacudiu por terra.
— Não está, não está! - repetiu cada vez mais ofegante.
E caminhou para a sala.
Todos os papéis que estavam sobre a mesa foram remexidos com impaciência febril; em seguida revistadas atentamente todas as cadeiras; mas ainda uma vez desanimado, lacrimoso, proferiu na garganta o pavoroso desengano:
— Não está!
A busca minuciosa prolongou-se por toda a sala, pelo quarto e pelo corredor; nem por isso o vigário pede achar o desejado lenitivo à desilusão angustiada, que o estortegava nas suas garras afiadas.
— Deixei-o então ficar por lá! - exclamou soluçando aterrado. - Estou perdido, perdido inteiramente!
Tinha-se deixado cair sobre uma cadeira; mas, com a inconstância dos pensamentos horríveis que se encontravam na sobre-excitação do seu cérebro, levantou-se e abriu uma das janelas.
A vela apagou-se sussurrando a uma esfuziada de vento. Cercada por uma auréola cor de ouro vinha surgindo a lua cheia, rubra como se se houvera espojado em uma sangueira. Uma claridade mortecida enchia já a praça e empalidecia a serenidade do céu, por onde nuvens muito brancas desfilavam com a celeridade das locomotivas, e rentes com o azul como com o solo do hipódromo os ventres dos cavalos disparados. Vinha um ramalhar uivado e tristonho do arvoredo dos quintais, misturado com o chocalhar e o bufar dos animais, que raspavam nos cercados os últimos folíolos de erva.
Paula chegou-se à janela e espiou timidamente para todos os lados. A solidão era completa. Fez então um jeito de trepar; o castiçal ressoando deteve-o, e ele, apressado e trêmulo, veio colocá-lo à mesa. De volta, ficou imóvel por algum tempo, como se temesse que o fraco ruído tivesse sido ouvido por alguém. A claridade tornava-se a pouco e pouco maior, e o vigário pede ver na areia o rastro que deixara.
— Está tudo, tudo a condenar-me, meu Deus! - disse baixinho.
E olhando para o crucifixo, acrescentou:
— Senhor, defendei-me, defendei-me!
O luar, pondo em relevo a pujança daquele corpo seminu, parecia rir de tamanha fraqueza, assustadiça ao menor ruído, trêmula diante de um fraco vestígio sobre a areia.
O vigário olhou ainda uma vez para a extensão da praça, fechou a janela, e foi, tiritando mais de medo que de frio, mergulhar-se na rede, onde afinal adormeceu abraçado tenazmente com a imagem do Cristo.
Só no outro dia levantou-se estremunhado com o bater desesperado do pequeno, que vinha lembrá-lo de que eram horas de celebrar a missa.
Um sossego farisaico voltara-lhe já inteiro; apenas o semblante denunciava, pela morte-luz do olhar, a luta indescritível da sua noite de remorso.
Saiu, conforme seus hábitos, a cortejar com o sorriso de bonomia e escárnio os simples paroquianos que se descobriam à sua passagem, e quando na sacristia ouviu do velho Marciano o acontecimento da noite, não teve senão uma comoção muito natural. Vestiu-se e, quando ia conchegar a alva aos cordões, perguntou serenamente:
— E morreu?
— Felizmente ainda está vivo, mas todos dizem que ele não escapa.
— Pobre rapaz! Era digno de melhor sorte!
De volta do altar, desrevestiu-se, queixando-se do calor, e, sentando-se na sua cadeira de espaldar reatou a conversação sobre Feitosa.
— E aonde apanhou o golpe, Marciano?
— Rente com a espádua, sr. vigário.
— Muito largo?
— Não, senhor; parece que foi punhal.
— Então foi muito fundo?
— Deve ser, para que ainda hoje o moço esteja tão prostrado e em perigo de vida...
— Mas não há certeza então da arma?
— Cisma-se que foi com um punhal, mas não se achou a arma.
— E quem desconfiam que seja o criminoso? - perguntou resfolegando.
— Da paróquia Vossa Mercê há de concordar que não foi ninguém; o moço está aqui há pouco tempo...
— É exato.
— Não tem vexado ninguém.
— É verdade - continuou Paula sacudindo a cabeça.
— Há de ser por força algum desses ladrões, pelos quais Vossa Mercê apanha soalheiras e faz chorar a pobre Mundica.
— Bem, bem, Marciano, não é bom fazer juízos temerários. Há testemunhas?
— Infelizmente não; porque se houvesse o tinhoso havia de ser feito em postas.
Paula levantou-se e, espreguiçando-se demoradamente, exclamou entre um bocejo:
— Veja como são os juízos dos homens! Os nossos avós diriam sabendo deste crime: foi algum dos Montes. Você, Marciano, diz hoje que são os pobres retirantes. Ah! mundo, mundo!
E saiu com o seu passo imperturbável.
— E quem sabe se ainda hoje não se pode dizer o mesmo -resmungou o velho sacristão, pondo a mão sobre a casula que dobrava; - o ódio de Rogério é tão vivo hoje como o de seus antepassados!... Mas, não - exclamou continuando o trabalho -, não pode ser ...