Os Retirantes/II/XI

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Poucos dias depois da retirada de Eulália e do vigário a vila alvorotou-se, como se dentro dela convulsasse uma revolução.

Feliz nos tempos normais da província, a pequena vila era agora uma das mais flageladas. A própria excelência do seu clima de outrora concorreu para agravar-lhe a situação, porque a convertia num hospital de moribundos.

A anasarca, que parecia ter assentado o seu quartel-general na cidade vizinha, emigrara dali para a vila, e batia a todas as portas com a fatalidade da morte. Acompanhavam-na as febres fulminantes e o grande cortejo de moléstias produzidas pela penúria em que viviam os retirantes.

Agora as condições tristíssimas agravaram-se, porque o novo presidente da província, indignado pelas delapidações escandalosas, resolvera suspender as remessas de gêneros para o interior e chamar para a capital e cidades mais próximas aqueles a quem a seca reduzira à miséria.

Tal ordem recebida na vila exacerbou os ânimos, e os adversários políticos e os interesses lesados, trabalhando na sombra, conseguiram dar começo a um movimento popular.

Os retirantes, em massa, acometeram o armazém em que se guardavam os socorros públicos, e à viva força dividiram os despojos do assalto, com os quais deviam prover-se durante a retirada para a capital.

Em vão as autoridades procuraram descobrir quem tinha sido o amotinador que havia conseguido emprocelar a onda estagnada dos famintos; vários nomes de influências políticas eram repetidos, mas a acusação contra eles não podia ser seriamente feita, visto que, era sabido, eles não se comunicavam diretamente com os retirantes.

Quem quer que era o motor do acontecimento inesperado, sabia esconder-se perfeitamente na treva.

Entretanto os cabeças do movimento andavam bem às claras pela vila. Eram dois indivíduos vestidos de couro, um de cerca de 30 anos, o outro ainda muito novo e que vestia luto. Os seus modos humildes e reservados não chamavam a atenção, mas quem cravasse perspicazmente o olhar nos seus semblantes reconheceria facilmente que os dois retirantes, muito novos na vila, em nada se pareciam com a massa geral.

As autoridades, porém, que durante o dia tinham-se exclusivamente ocupado em efetuar prisões daqueles que se mostravam mais exaltados, passaram descuidadamente por junto dos dois indivíduos, cuja extrema submissão captava simpatias longe de inspirar suspeitas.

— Se V. Sa. quiser - dirigiu-se um deles ao subdelegado -nós estamos prontos para qualquer serviço.

— Bem, fique com esses três homens guardando a cadeia. Revezando as sentinelas o trabalho não é grande.

Investido desta autoridade, o que se dirigira ao subdelegado aproximou-se do outro para comunicar-lhe o bom êxito da empresa.

— Vai tudo às mil maravilhas; dentro de poucas horas minha mulher estará salva.

— Se descobrem o que desejamos fazer? Não estamos de uma vez para sempre perdidos, Desempeno?

— Você está ficando medroso, Diabrete; tem calafrios por dá cá aquela palha. Vá embora se receia, eu cumpro com o meu dever.

— Você bem sabe que eu não temo, porém quando a gente está quase com o pescoço na corda do carrasco, é preciso muito cuidado. Se estivéssemos os dois lá dentro a tomar conta, não havia nada a temer, porém você só é difícil.

— Eu preciso mais de si lá fora, entre os retirantes, aconselhando-os que venham soltar os companheiros de barulho que foram presos; será nesta ocasião que eu tratarei de libertar a minha desventurada amiga. Conto consigo?

— Conte - exclamou o Diabrete, apertando estreitamente a mão de Virgulino. - Faça, porém, as coisas com jeito, porque eu tenho muito medo da justiça. Ainda não fiquei curado do último susto.

Virgulino, sorrindo desdenhosamente, murmurou:

— Criança.

— É verdade, e é bom de dizer quando se vê as coisas de longe.

As palavras do Diabrete referiam-se a sucessos que se haviam dado com a quadrilha dos Viriatos.

O ódio de Pedro passou da temeridade à loucura e dois grandes combates foram por ele planejados para aniquilar inteiramente os seus inimigos, que tinham conseguido o malogro do primeiro plano do roubo da venda e assassinato de Virgulino.

Emissários foram por ele mandados às autoridades para que se efetuasse a captura dos dois principais chefes conhecidos da quadrilha, e, como complemento desta medida, Pedro resolveu dar combate aos Viriatos no mesmo dia em que o sobressalto os pusesse em debandada.

O plano audacioso foi posto em prática e produziu em parte o resultado que inimigo irreconciliável tinha em vista.

A perícia do Onça, porém, evitou que a quadrilha fosse aprisionada, e, ainda que a liberdade dos seus companheiros lhe custasse a vida, o Onça a conseguiu. No campo do combate ficaram os cadáveres dos dois chefes Pedro e Onça, que, travados em um combate singular, disputaram palmo a palmo a fama dos seus dois criminosos grupos.

O resto da quadrilha dos Viriatos salvou-se ganhando as alturas dos Cariris, enquanto que o Diabrete, desligado dela pela morte do pai, veio juntar-se a Virgulino na vendola das vizinhanças de B. V., onde partiram em procura da família do segundo.

A rápida sucessão dos acontecimentos causou ao rapazola um temor inexplicável, porque sabia que para toda parte tinham sido expedidas precatórias a fim de que fossem capturados os bandidos da quadrilha. Era por isso que recomendava a Virgulino a maior discrição no plano, que haviam tramado para libertar a infanticida, que tanto horror causara à vila.

Tinha razão para assim insistir. Estava com Virgulino quando este soube da inqualificável desgraça que sobreviera à sua família, e tamanho foi o seu abalo que a pessoa que lhe comunicara o fato ponderou-lhe:

— Homem, o caso é de espantar e causar pena, mas para incomodar tanto é preciso que seja a uma pessoa da família.

— Nem a conhecemos - interveio prontamente o Diabrete.

— O sentimento do meu companheiro é nascido das muitas dores que a sorte o tem feito sofrer.

Quando a sós com o Diabrete, Virgulino tomara uma resolução tremenda. Entendeu que o crime de sua mulher devia ser logo punido e quis ir imediatamente à prisão para atravessá-la com a sua faca de bandido. Muito custou ao Diabrete conter-lhe este primeiro ímpeto, que não deu lugar a mais uma cena lastimosa porque o rapazola proferiu uma terrível ameaça.

— Mate-a, está no seu direito, mas saiba que irá substituí-la na prisão, e aos seus filhos não ficará na terra nem mais um protetor, e a miséria e a fome será o futuro de todos eles. Faça você como entender melhor.

Virgulino moderou-se e, fundindo em lágrimas parte da grande dor que o alucinava, ficou a pensar no destino que devia tomar e que devia dar à sua mulher.

— Se eu pudesse arranjar algum meio de a salvar... -pensava ele. - Se eu a pudesse furtar, se eu ao menos a pudesse envenenar...

Todas as idéias que lhe acudiam, breve se dissipavam, porque eram de todo inexeqüíveis. No entanto a mais ousada, a mais audaciosa, que lhe atravessou o espírito, foi a que dominou-o e por fim foi posta em prática.

O desgosto popular contra a ordem do presidente da província, mandando suspender os socorros públicos, cresceu com as horas que se escoavam. Todos murmuravam, censuravam, e. alguns já cheios de um entusiasmo que vinha mais da paixão partidária que do amor pelos seus semelhantes, propalavam calúnias contra as intenções presidenciais.

Havia um ponto em que todos os calmos, como os exaltados, concordavam: que era de todo impossível terminar bruscamente com os socorros, porque equivalia a condenar toda a população retirante à morte pela fome.

A comissão incumbida do serviço, porém, entendeu justamente o contrário do modo de entender geral.

O presidente não tem confiança na comissão, e a esta cumpre abandonar desde logo o cargo. Demais, o que ele quer é que os retirantes vão todos para a capital, para que o trabalho da distribuição de socorros seja feito sob os seus próprios olhos.

— Mas isto não quer dizer que, havendo no armazém do Estado gêneros, vocês não os queiram distribuir com os retirantes, que se querem pôr a caminho.

A comissão não atendeu, ferida nos seus brios, sabendo além disso que o novo presidente não fazia a respeito da generalidade dos comissários senão um justo juízo: que o patriotismo já tinha produzido demais e o móvel da persistência devia ser agora alguma coisa bem diversa ao amor à pátria.

O que pelo menos era verdadeiro e incontestável era que a mortalidade dos retirantes crescia na razão direta do dispêndio com os socorros, o que de alguma sorte justificava a fama de que as comissões eram os verdadeiros retirantes socorridos.

Virgulino e o Diabrete, recém-chegados no lugar, aturdidos em parte não só pela notícia da desgraça particular, como pela ameaça tremenda que era feita à massa dos necessitados pelos comissários, puseram-se a observar miudamente, com o olhar e critério dos bandidos.

— Isto era um momento, se nós tivéssemos quem nos seguisse. Que bela presa, Diabrete!

— Faziam-nos em cisco.

— Se tivessem tempo; era fazer causa comum com os retirantes e tudo estava feito.

— Hoje é só haver quem dê um grito, que eles seguem logo. Virgulino, ao ouvir as palavras do Diabrete, teve um estremecimento demorado; tomou-o de uma comoção profunda, que não tinha nenhuma razão de ser na frase dita.

Diabrete reparou no abalo sofrido pelo companheiro, mas atribuindo-o ao próprio estado moral em que a notícia fatal o deixara, não o interpelou.

Caminharam na direção do abarracamento, mas sem que para lá os conduzisse outra intenção além da curiosidade.

Aí parecia que tinha transbordado um mar tempestuoso; havia um movimento geral, brusco e ameaçador; o vozear unia-se numa zoada ruidosíssima, e gritos de indignação partiam de todos os lados.

Todavia a falta de coragem e de iniciativa continha nos da ordem a população, e deixava às autoridades confiança bastante para que não tomassem providências.

Diante deste espetáculo, Virgulino comoveu-se ainda mais, então, como já não se pudesse conter, disse para Diabrete:

— Houvesse um homem de coragem que se pusesse à frente deste povaréu, e esta vila podia voar pelos ares.

— Infelizmente não o há, e estes desgraçados hão de esbravejar aqui à toa, até que morram todos de fome ou os lancem fora da vila.

— Eu estou perdido, não é verdade? - perguntou Virgulino depois de uma longa pausa. - Não sobrevivo à desgraça que me feriu sem que possa salvar Maria, para salvar o meu pobre filho...

— E o que quer você fazer?

— Pôr-me à frente dos retirantes, levá-los até o armazém, causar um rebuliço na vila para que durante ele possa salvar Maria.

Diabrete pareceu acovardar-se diante da ousadia da empresa, mas dentro em pouco a abraçava e com tanto entusiasmo, como se dela fosse o autor.

Os dois não demoraram o ousado cometimento. Embora desconhecidos, permearam a multidão e, comunicando-se com todos os grupos mais exaltados, chegaram a conseguir o que desejavam. A multidão arregimentada caiu como um raio dentro da vila e, precipitando-se de chofre sobre o armazém de víveres, fez voar portas e janelas em estilhaços. Os gêneros, tomados como despojos do assalto, foram arrastados para a rua, e aí divididos no meio de uma confusão que degenerou em conflito.

Virgulino e Diabrete, que só tinham em vista prender a atenção das autoridades para o lado do armazém, a fim de que eles pudessem assaltar a cadeia, dirigiram-se para esta.

O cálculo, porém, foi frustrado. A excitação pública, a que dera lugar a prisão da infanticida, obrigou o subdelegado a manter a cadeia sempre perfeitamente guardada, para que a mulher não fosse assassinada. As sentinelas tinham tido ordem terminante de matar a quem quer que ousasse querer resistir-lhes.

Diante da atitude das sentinelas, Virgulino e Diabrete recuaram, porque entenderam que não deviam perder a ocasião que tão azada se lhes oferecia, e esperaram que os acontecimentos lhes viessem em auxílio.

De feito, a confusão que produziu a divisão dos gêneros ocasionou a prisão de vários retirantes que se mostravam como cabeças, e a necessidade de reforçar a guarda da cadeia deu lugar a que Virgulino se oferecesse e fosse de boa vontade aceito para tal fim.

Embora a dificuldade da empresa, Virgulino começou desde logo a pô-la em prática, captando a simpatia dos companheiros por meio de oferecimentos, que são a maior recomendação entre aquele povo essencialmente hospitaleiro.

Diabrete, por sua vez, entregava-se ao seu trabalho, que, embora menos arriscado, era muito mais difícil do que o de Virgulino. A astúcia, porém, conseguiu o que parecia quase impossível. Diabrete pôs-se a espalhar por entre os grupos a nova de que estavam surrando na cadeia a quantos retirantes prendiam e que a vila já se estava armando para vir sobre os outros.

— O que é preciso fazer? - perguntavam todos.

— Assaltar a cadeia; arrasá-la se tanto for preciso para tomar os presos e depois sair logo da vila.

O plano foi imediatamente acolhido, e a onda da miséria, ululando o seu rancor concentrado contra os comissários, foi bater de encontro à cadeia.

Virgulino, ouvindo a grita dos assaltantes, correu para o interior da cadeia, que era uma casa baixa, cujos quartos serviam de prisões.

Os guardas vendo-o correr pensaram que ele ia proteger os fundos da casa e um dos três seguiu-lhe no encalço, enquanto os outros trancavam as portas.

Virgulino, porém, já havia parado diante da prisão da sua mulher e entre ela e ele trocaram-se os primeiros cumprimentos:

— Você aqui? - perguntou Maria.

— Eu, sim - respondeu ele. - Avie-se; arranje a criança é preciso....

As pisadas do outro guarda não o deixaram acabar a frase e o mergulharam num despeito profundo.

— Estamos perdidos - pensou ele -, não é possível salvá-las.

— Todo cuidado com esta, pensou muito bem - exclamou guarda. - Que se safem todos, não importa, porém esta, não; vá ver se guarda os outros, esta fica por minha conta.

— Sim, sim - respondeu Virgulino automaticamente; recobrando logo o sangue-frio. - Duvidam, porventura, de mim? Não serei eu bastante corajoso para defender esta entrada?

— Como quiser, ficaremos então os dois; sempre faremos muito mais.

Não havia nada a objetar e tanto mais porque o guarda cortou logo toda a evasiva de que Virgulino se pudesse servir.

— Os outros são retirantes que se meteram no barulho, não podem ficar presos senão alguns dias; têm sempre de sair, e se há de ser amanhã, seja hoje.

— Mas...

— É o mesmo; estamos perto um do outro; ali é a prisão da ladra, de uma tal a quem chamam Mundica. Eu vou para ali.

Estava irremediavelmente malogrado o plano de Virgulino; qualquer movimento seu seria percebido pelo outro, que, segundo ordens recebidas, podia disparar a arma sobre quem ousasse querer tocar na assassina.

Um milhão de pensamentos revolutearam-lhe no cérebro, e qual deles o mais temeroso. Afinal decidiu-se por um que, por ser o mais horroroso, era o mais eficaz. O companheiro, conforme se depreendia das suas palavras, tinha inteira confiança em Virgulino e este podia portanto aproximar-se dele. Assim o fez. De um salto, dado com a elasticidade e a certeza de um último recurso, Virgulino caiu sobre o guarda com a polida faca desembainhada, a qual enterrou-lhe no lado esquerdo. O companheiro não teve forças senão para soltar um ai soturno e deu em terra com todo o peso do corpo.

O bandido não perdeu tempo; enquanto a sua vítima arquejava nas últimas contorções da vida, meteu o ombro robusto à porta da prisão, e como esta não cedesse logo retirou-se a alguma distância e dai correu e atirou-se com toda a força de encontro à porta, que estalou e abalou-se.

O esforço do infeliz duplicou-se com o terror que a própria ação lhe causava.

Ouvia-se o barulho dos assaltantes às portas da cadeia, e o som dos seus empurrões hercúleos para arrombar as portas e as janelas. Dentro também começara um barulho infernal, porque os presos, e principalmente Mundica, pediam socorro e clamavam que já havia morrido um guarda. — Cala-te, infame mulher, cala-te, ou morres também -gritou Virgulino, a quem já parecia inteiramente impossível a salvação da mulher.

A ameaça produziu felizmente o efeito desejado, e afinal o bandido pôde tirar da prisão a malsinada esposa.

Uma nova dificuldade veio amedrontá-lo. Doida sinceramente pelo crime praticado, Maria não tinha tomado alimentos durante os dias que tinha estado na prisão e o sobressalto, a comoção, reunidos à fraqueza em que se achava, não permitiam-lhe dar um passo.

Virgulino tomou-a nos braços possantes e saiu a correr com ela, mas justamente neste momento a onda assaltante acabava de penetrar na cadeia e já embarafustava pelo corredor para dar liberdade aos companheiros.

Ao vê-la, ainda Virgulino teve um assomo de sangue-frio e exclamou:

— Eu já levo aqui uma, que quase morreu de susto; vamos aos outros.

Falando à medida que corria, chegava ao fim de uma pequena cerca de pau-a-pique, e levantou sobre ela a mulher.

— Atire-se com Deus, Maria, ganhe forças, ou estamos de todo perdidos.

— E o nosso filho, Virgulino, o nosso pobre filho?

— Eu vou buscá-lo; agora não custa.

Mal acabara de dizer estas palavras, Virgulino ouviu desmentida a sua esperança; um grito uníssono partiu da multidão,

— Morra a assassina, morra a assassina, morra o infame que a quer salvar.

Felizmente para Virgulino, só aqueles que estavam para dentro da casa podiam saber onde estava a assassina, visto só eles tinham podido ouvir de Mundica a narração do sucedera. Isto fazia com que os assaltantes que estavam junto da porta não se precipitassem logo no quintal, o que teria como conseqüência a imediata captura de Virgulino e da esposa. Mas, ao contrário, todos querendo penetrar ainda para tomar parte no arrombamento das prisões, causavam uma enorme confusão, e impediam a prontidão dos movimentos, que era agora essencial.

— Pelo cercado, pelo cercado! - gritaram por fim, e repetiram por vezes o grito.

Já era tarde. Virgulino vendo-se ameaçado pelo grito -morra a assassina! - saltou também a cerca e, tomando nos braços a esposa, correu até que pôde deixá-la em lugar seguro na estrada geral que era caminho de Baturité.

— O nosso filho - murmurou ela. - Perderemos ainda este?!

— Não me fales nos filhos - arquejou Virgulino. - Deixe-os comigo e saberei fazer por eles o que você não soube.

Pôs-se a correr na direção da vila, e rápido e lépido como se não tivera acabado de transportar tamanha carga, e sempre correndo, veio incorporar-se à massa dos retirantes.

— Fogo! - gritaram na multidão. - Deitaram fogo na cadeia.

Virgulino, como se tivera um acesso de loucura, repetiu a fuzilar raios do olhar:

— Fogo! Deitaram fogo à cadeia. Não, não devem fazer, não é justo, não é direito.

E ia impelindo diante de si aqueles que não se afastavam para dar-lhe passagem.

Desta sorte abriu caminho até junto da cadeia, que já se enredava em vivas labaredas e cujo vigamento começava a estalar entre os braços rubros das chamas.

Virgulino olhou desvairado para aquele tremendo espetáculo, para aquela cena que punha em sobressalto a vila inteira, porque toda ela era ameaçada pela brutalidade do furor dos retirantes.

— Meu filho - exclamou finalmente o bandido. - Não morrerás sozinho.

Com a celeridade da alucinação internou-se nas chamas e nelas desapareceu com geral assombro dos circunstantes, que só depois tiveram voz para exprimir a sua comoção.

Passaram alguns minutos, longos como séculos, e afinal uma nova comoção mais violenta do que a primeira avassalou o coração da multidão.

Virgulino, semelhante a uma aparição das tremendas justiças religiosas, das medonhas punições de além-túmulo, assomou entre as labaredas e as rompeu de novo, com uma coragem indizível.

Fora das chamas que haviam-lhe queimado o rosto e em parte o tronco, o ousado pai entregou à primeira pessoa que dele se aproximou a criança que fora buscar e que trazia embrulhada na sua véstia de couro.

— Morta - exclamaram os circunstantes, olhando para a criança. - Está morta.

O pai tomou-a de novo nos braços e, aproveitando-se da perplexidade solene causada pela sua ação inqualificável, caminhou para o ponto em que deixara a mulher.

Grande número de pessoas o seguiu de longe, e, ainda que vissem claramente que ele era o marido da assassina ninguém ousou destratá-lo.

Virgulino parou finalmente junto de Maria, e com a voz muito sumida disse-lhe:

— Vê? Está aqui, fui buscá-la entre as chamas.

A mulher não respondeu, e o desgraçado insistiu na sua observação, agora sacudindo o corpo da mulher. O mesmo silêncio.

— Maria - exclamou ele, precipitadamente -, Maria!

Olhou em redor de si, e, como daí descobrisse as labaredas do incêndio, bradou lamentosamente:

— Oh! Ela adivinhou a nossa desgraça. E fui eu a causa de tudo.

Ajoelhou-se a chorar sobre os dois cadáveres e a comover os que se aproximavam do quadro tristonho. Assim jazeu por longo tempo, até que o subdelegado, mais para arrancá-lo de junto dos entes que lhe causavam aquela dor do que para cumprir a lei, chegou-se a Virgulino e deu-lhe voz de prisão como protetor de uma evasão.

— Sim - murmurou ele -, estou pronto. - E tirando do bolso um revólver, aplicou-o contra o ouvido, e desfechando-o exclamou: - Vamos!