Os Retirantes/II/XII

Wikisource, a biblioteca livre

A agitação da vila não cessou, apesar da comoção que a todos causou o pungente espetáculo dado pela família do bandido. Longe de acomodarem-se, os retirantes, mais exacerbados pela desgraça daqueles companheiros de infortúnios ameaçaram levar a fogo e a ferro várias casas da vila e só se acalmaram com a promessa formal de que todos os gêneros que restavam lhes seriam entregues.

— É do imperador - gritavam eles. - Mandou que nos dessem, é nosso.

A prudência das autoridades conformou-se com a exigência e todos os gêneros foram distribuídos, mas sem que presidisse à divisão a eqüidade que só a calma poderia manter.

Só 36 horas depois dos medonhos sucessos que puseram fim ao estádio dos retirantes na vila, partiram estes, a princípio unidos como um exército, e enveredaram pela estrada que leva a Baturité.

Para aí dirigiram-se também Eulália e o vigário Paula, e este já começava a trilhar as terras afortunadas da serra, que pareciam um grande oásis perdido no meio do imenso deserto da província.

À medida que subia, Paula rejuvenescia e revigorava-se. Os males dos meses passados dissolviam-se no verdor embalsamado dos plantios, que lembravam uma parasita disforme vicejando às expensas da maioria da vegetação morta da província.

Aquele amontoado de morros, que se sucediam com a gradação dos cones de uma pinha enorme, muito verdes, cintados pelos vastos leitos fulvos das estradas, afogados numa abundância palaciana de luz, acordavam no coração deprimido do vigário imagens em que ele já nem ousava pensar.

A viração, brincando nos cafeeiros, punha no ar, de mistura com o soar rítmico dos farfalhos, um banho de perfume em que aquele espírito conturbado lavava-se e bracejava numa aspiração de sensações tranqüilas. E coisa singular: a lembrança de Eulália, que até então encarnara-se-lhe no pensamento, como que ia amortecendo, como se ela fosse uma aparição da noite, que se dissipasse com a claridade triunfal da aurora.

Uma transformação muito semelhante apoderou-se de Eulália, desde que pisou o solo da serra. Em caminho perguntara pelos seus e deles tivera indícios e, mais do que isso, uma esperança risonha.

— Pode seguir em paz; daqui a Baturité ninguém morre de fome.

— Chegarão, pois - pensava Eulália. - Lá ou no Ceará reunidos, todos poderemos fugir à tortura que o destino nos infligiu.

E o coração dilatava-se-lhe num bem-estar insólito. A voz dos pássaros filtrava-lhe no espírito e aí entoava uma aleluia às suas alegrias; diziam-lhe que estava terminado o martírio, que em poucos dias receberia o prazer de ter junto de si, senão no mesmo teto, ao menos ao alcance dos olhos, a caçula, as irmãs e a velha tia.

Só uma dúvida vinha turbar-lhe o contentamento; era uma pergunta que insistentemente subia-lhe da consciência aos lábios:

— E receber-me-á minha tia?

Não resolvia por si; a maneira por que a honrada senhora pensava acerca da honestidade fazia-a estremecer e, na deficiência de uma resposta cabal, apelava para o acaso. Tomava raminhos à beira da estrada e, desfolhando-os a repetir ao despegar cada folha - sim ou não - alegrava-se ou entristecia-se com o horóscopo.

As impressões porém, não tinham estabilidade, boiavam e afundavam-se na inconsciência feliz, que era o resultado da brusca mudança das perspectivas, que lhe enlevavam os olhos e o pensamento.

No último dia de jornada, Eulália, que já havia parado em alguns povoados, demorou-se por algum tempo na Conceição e aí teve indícios da família. Havia dois dias que passara; devia, portanto, estar com certeza em Baturité.

Todo o longo sofrimento indenizou-se com esta certeza, e foi quase alucinada de alegria que à tarde desceu em demanda da cidade.

A noite, porém, a surpreendeu em meio caminho, nas alturas da Cruz. A sombra, que lançavam na estrada os cafezais e as matas, causou-lhe medo, e Eulália experimentou de novo a incômoda impressão de quem se vê só numa estrada.

Seguiu quase a correr, descendo a íngreme ladeira como se fosse intento seu não parar. Embaixo um panorama esplêndido desdobrou-se diante de si. Uma situação perfeitamente cultivada estendia-se com os seus canaviais viridentes, cheios de ruído, com os seus cafezais e mandiocais verde-negros dominando um grande espaço. Sobre um pequeno tabuleiro a casa, iluminada, surgia sonora de gargalhadas e gritaria de crianças. Próximo a ela, num curral espaçoso, o gado meneava os chocalhos, ruminando tranqüilamente. A pouca distância do curral, um vasto telheiro mostrava-se inteiramente iluminado por enorme fogueira.

— São felizes - pensou Eulália. - Não negarão uma telha a quem precisa.

Caminhou até o telheiro, que ficava mais perto da estrada e em que oscilavam diversas redes, impelidas por pessoas que conversavam.

— Sabem dizer-me se o dono da casa dá pousada? -perguntou Eulália.

— A quem pede - respondeu um velho que estava sentado sobre um forno de bulandeira. - A casa é de quem quer dormir.

— Posso então pousar aqui?

— Sem cerimônia, moça - tornou o velho -, e principalmente se for bonita.

Todos riram-se, e a própria Eulália sorriu da jovialidade do velho, que, sendo o dono do sítio, julgava-se obrigado a vir todas as noites alegrar por um momento os seus hóspedes forasteiros.

— Pois foi o diabo; ontem saiu uma leva que parecia um pedaço do mundo. A tal ordem do presidente há de dar-lhe na cabeça; cai a província inteira na capital e Deus queira que não haja muito que lastimar.

— Mas quem sabe se não é história dos comissários?

— Não, eu também recebi ofício; é a verdade. Baturité não tem hoje duzentos retirantes.

Eulália estremeceu. O seu coração anteviu logo que a família Queiroz não ficara na cidade, uma vez que os seus recursos não lhe davam para viver independentemente dos socorros.

— Foi um alvoroço dos meus pecados - continuou o velho.

— Estavam na cidade mais de 8 mil pessoas e de uma hora para outra ficaram sem um grão de farinha.

— Virgem!

— Aquilo estourou como um morteiro; quase que vai tudo pelos ares; as mulheres então cortavam o coração.

— Que calamidade!

— Mas também não havia outro meio; os retirantes não comiam nem metade do que lhes era enviado.

— Ah! A seca tem sido inverno para muita gente.

— É a verdade. Deram-se cenas muito tristes; ontem e hoje pela manhã encontraram-se muitas crianças abandonadas pelos pais, e algumas até recém-nascidas. Parece que já não há sentimentos no povo.

— É a desgraça, meu senhor.

— Hoje quem vai para Baturité precisa de ter coração duro; senão volta de lá sem um dez réis. Gente que tinha com que passar está aos paus.

— Mas aqui ao pé da serra?

— Pois então! A serra não dá para todos e nós que aqui moramos já não podemos. Fomos forçados até a impedir que subissem retirantes para cá. Daqui para baixo, para cima ninguém, que não vá de passagem. Se não fizéssemos assim, morreríamos também de fome.

A conversação, como era natural, desfez a alegre impressão que o aspecto da serra, a sua vegetação sadia e forte Causara a Eulália.

A imaginação pintava-lhe, no meio do torvelinho da revolta, a sua desventurada família, sem pão, sem amparo, ao alcance da mão do primeiro ousado que entendesse desrespeitá-la.

Não havia exagero nessa dolorosa previsão; as infelicidades tinham descido sobre as fracas mulheres em cardume, como enorme revoada de corvos. As afrontas, as injúrias como que as elegeram por campo de manobras e de espanejamento de seus horrores.

Não era, pois, muito que no meio de um tumulto, quando.. de par com a cegueira da indignação, anda a perversidade escolher vítimas, d. Ana e as indefesas meninas fossem escolhidas.

Trabalhada por este pensamento, Eulália não cerrou as pálpebras durante a noite, e ergueu-se com os primeiros raios da aurora. Embora para si, filha do sertão, o romper do dia tivesse na serra atrativos infinitos, não se demorou a partir. Cantavam os pássaros alegremente, vinha um longínquo rumor de cachoeira embalar numa sensação de paz e de confiança os habitantes e os hóspedes do sítio e convidá-los ao descanso mas para Eulália o próprio festejo da natureza era uma intimação de retirada.

“Estarão ainda em Baturité?" - pensava. – “Elas são tão medrosas. Talvez tenham seguido, ou estejam prestes a partir."

A dúvida fazia dobrar a velocidade da caminhada e tornava-a indiferente para o que via em torno. Não se demorava a olhar para as perspectivas que as subidas e descidas de ladeiras desenrolavam por todos os lados.

Não reparava, à margem das estradas, nas casas de palha dos moradores, que, surgindo de entre o verdor das folhas das canas, e atapetando-se com a folhagem das batateiras e das aboboreiras viçosas, falavam de fartura e de tranqüilidade.

O seu alvo era a cidade, o seu desejo era atingi-lo já, se fosse possível, e apenas quando a ingremidade das ladeiras obrigava-a a demorar-se encarava com os ribeiros para invejar-lhes a rapidez extraordinária com que coleavam por entre as plantações e sumiam-se para logo surgir adiante com a mesma celeridade.

Só depois de longas horas de caminho, com os pés magoados pelos acidentes do solo e pelas dificuldades da estrada pedregosa e bronca, Eulália pôde desafogar num suspiro de satisfação. Ao dobrar uma das curvas da estrada sinuosíssima, apareceu-lhe de improviso a cidade.

O sol matinal, tornando ainda mais negra a encosta da montanha, a cujo sopé, sob uma pequena elevação, jaz a cidade, fazia sobressair a cor dos telhados e de algumas fachadas da sua casaria, alinhada em poucas ruas. A estrada até agora quase sempre silenciosa e solitária enchia-se de rumor de cargueiros, que subiam, cantando numa toada tristonha, muito pausada, estrofes inspiradas pela vida agrícola e pastoril.

“Vou saber notícias da cidade" - pensou Eulália, e dirigiu-se ao comboieiro.

— Lá embaixo está uma epidemia respondeu o homem; - a doença tem atacado muita gente.

— Tem morrido muitas mulheres?

— É onde a doença faz o seu roçado, e nas crianças então não falemos.

— Santo Deus ! - exclamou Eulália, e foi com as lágrimas a merejarem-lhe que perguntou: - E como se chama essa doença?

— Ora, é muito de ver! Quem vem de cima não sabe o nome da doença dos retirantes?! É a fome...

E o comboieiro afastou-se cantando num barítono afinado:

O sol nasce igual p’ra todos,
Mas o home' o dividiu;
Para o pobre o sol em pino
Foi o quinhão que caiu.

Eulália, sobressaltada com a lutuosa nova, desceu, quase correr, a ladeira e, ganhando a estrada larga que vai desembocar na cidade, dirigiu-se para uma ponte, formada de um grosso tronco atravessado sobre um ribeiro que passa pela base da elevação em que assenta a casaria.

Um homem, vestido como os sertanejos, de camisa sobre as ceroulas, com um grande chicote na mão, tomou-lhe o passo.

— É de cima? - perguntou secamente e como recebesse resposta afirmativa: - De que lugar da serra?

Eulália hesitou na resposta. A presença do homem na entrada da cidade explicava que ele estava ali de sentinela, ou que era talvez algum malfeitor. Respondeu, pois, mentindo serenamente:

— Do alto da Cruz.

— Bom, pode subir a ladeira; se fosse retirante passava aqui por baixo; hoje deitamos fora o resto dessa praga.

— Como? - perguntou Eulália dolorosamente impressionada.

— Ora, como? Não havia o que dar-lhes para comer, estavam ai a fazer motim e a referver como bicharia. Manda-mo-los andar; quem for dono da alhada que os ature.

— Mas, puseram para fora todos, todos?

— Todinhos, moça, e você que é da terra deve gostar disso e não estar aí quase a chorar. Olhe que lá diz o ditado: livra-te dos ares que eu te livrarei dos males.

— Desgraçadas - murmurou Eulália -, o que será feito delas?

Deu alguns passos, mas de chofre voltou e perguntou ao guarda da ponte:

— E hoje puseram para fora muitas mulheres?

— Todas quantas estavam aí por essas baiúcas. Talvez pelo mato estejam algumas acoitadas.

— Não as encontrarei, pois; desventurada de mim, talvez não as torne a ver.

— Não vale a pena ter dó dessa gente; é uma canalha -exclamou o guarda. - Demais podem estar no Ceará em três dias, e o mato ainda tem muito croatá e raiz de mandacaru para que eles comam.

— Obrigado; não quero ouvir mais nada - exclamou Eulália.

E acrescentou baixinho:

— Que homem sem coração l

Entrou na cidade, que mergulhava no silêncio que segue as grandes comoções. O olhar dos guardas e das autoridades, mais do que ele a própria desconfiança, fizeram-na recear que lhe fizessem alguma violência.

Percorreu a rua em que havia diversas palhoças, residências marcadas aos retirantes, e viu-as fechadas. A feira, que era em todos os povoados o ponto de reunião dos esfaimados filhos do sertão, estava também deserta, e dois negociantes, conversando, deram-lhe uma noção exata do que se havia dado.

— Foi uma caçada em regra; hoje não se vê um só, nem se acharia um para remédio, ainda mesmo caminhando uma légua.

— Graças; eles eram capazes de fazer voar isto tudo.

Certa de que não encontraria ainda a família, Eulália decidiu-se imediatamente a partir, e mais uma vez recorreu à bolsa do bandido para comprar provisões.

A cidade, que tão agradável impressão lhe causara, parecia-lhe agora tristíssima e de um aspecto pronunciadamente hostil. A esperança que a embelezava, ao desvanecer-se envolvera a cidade na cor sombria dos padecimentos de Eulália que, sem poder conter mais a tristeza que a acabrunhava, pôs-se de novo a caminho apesar da soalheira.

Durante mais de 30 horas de jornadas sucessivas a mísera retirante caminhou, penetrando em cada povoado, e procurando neles a família.

Cada esperança dissipava-se numa desilusão, mas nem assim a coragem dedicada de Eulália extinguia-se: as decepções duplicavam-lhe a constância.

No terceiro dia chegou à vila de Pacatuba, que ao sopé da serra deste nome vegeta numa tristeza de cegonha.

Era a hora da chegada do trem: quase noite. O espetáculo da miséria desenrolou-se em toda a amplitude ante os seus olhos.

Dir-se-ia que o solo tinha-se aberto para expelir um vômito imundo nas cercanias da estação. O silvo da locomotiva semelhante às palavras mágicas de um evocador, acordava em toda parte seres de uma aparência fenomenal. Mulheres andrajosas, descuidosas da compostura, umas carregando crianças nuas, opiladas, com grandes ventres e braços e pernas atrofiados, corriam para junto do trem e, cercando-o com a impertinência e a gula das harpias de Virgílio, coagiam os passageiros a dar-lhes esmolas.

Era um coro tristíssimo aquele. A miséria exagerava as suas tristezas, pensando que era preciso ainda maior horror para que os felizes se comovessem.

— Veja, meu senhor, esta criança: eu já não tenho mais leite para dar-lhe.

— Eu tenho perdido aqui quase todos os meus filhos, mortos à fome.

— Esmola para um cego.

A polícia intervinha para conter a vozeria da desgraça, com a qual a inclemência muitas vezes se divertia, atirando moedas de cobre no meio da mó e deleitando-se com o alvoroto e as lutas, que se travavam tão encarniçadas que tornavam necessário o castigo.

— Quanta miséria, Santo Deus - meditou Eulália a ver esta cena compungente; - e ainda há pessoas que se distraem em torná-la mais evidente.

De pé sobre a plataforma da estação, espionava miudamente a multidão e, como sentisse o coração pulsar-lhe violentamente, interpretando este resultado da viva impressão que recebera como um horóscopo de que encontraria a família, demorou-se até que o ajuntamento dissolveu-se.

— Nada - disse ela, indo postar-se na rua que comunica a estação com o povoado; - ainda aqui não os poderei talvez encontrar.

O desalento avassalou-a então; temeu que a precipitação da viagem a tivesse feito demorar-se menos do que fora necessário para uma estreita pesquisa nos povoados intermediários a Baturité e Pacatuba.

Resolveu, pois, ficar o dia seguinte na vila para que a consciência não a acusasse de haver passado precipitadamente por aí.

Ainda uma vez a desesperança veio enlutar-lhe o coração, porque, de par com a impossibilidade de encontrar a família, torturava-a a notícia de que mais de 100 mil retirantes enchiam agora a capital.

— Como encontrá-las no meio deles? - perguntava a si mesma, sem saber responder.

Entretanto, devia partir para chegar ao ponto terminal da viagem, que deviam fazer suas irmãs, onde contava achar lenitivo às suas saudades, ou desenganar-se para sempre.

Na manhã do segundo dia, Eulália, tomando o trem que gala para a capital, sentia ao mesmo tempo levantarem-se dentro de si duas grandes esperanças: o encontro com a família e o encontro com Irena e o velho Monte. Teriam eles sobrevivido à enorme desventura que os acometera? O seu infortúnio não podia ser tamanho que de um golpe a despojasse de todas as suas afeições.

O trem partiu com uma celeridade vertiginosa, quase tamanha quanto desejava a ansiedade de Eulália.

A planície, coberta de uma vegetação amarelenta, aqui e ali semeada de pequenos grupos de carnaubeiras, fugia para trás do comboio com uma rapidez inqualificável e, de espaço em espaço, uma estação; obrigando a locomotiva a silvar e a parar, como que lhe dava maior força para recomeçar a carreira.

Em uma dessas estações, em que sempre uma onda de retirantes vinha esmolar, o que desafiava muito a atenção de Eulália, o trem demorou-se mais do que em todas as outras.

Estava-se em Arronches, que parecia ser o quartel-general da miséria; meninas que teriam, no máximo 13 anos, tinham estampados nos rostos e nos colos descarnados os estigmas perdição. Grandes círculos dartrosos gravavam nos semblantes tristonhos daquelas infelizes a condenação eterna dos encarregados dos socorros!

— Veja - diziam os passageiros, chamando a atenção recíproca; - aquela menina não chega a ter 12 anos, e no entanto em que estado lá se acha.

— Aqui a perdição faz concorrência à fome.

Eulália sentia-se tão profundamente comovida, que já não podia olhar para o ajuntamento, e alegrou-se quando ouviu o primeiro sinal de partida. Estava debruçada em uma das janelas do vagão e relanceou ainda uma vez o olhar para aquele transbordamento da desgraça.

Soou o último sinal de partida e, de envolta com ele, um grito dolorosíssimo:

— Mana Eulália! Minha irmã!

Eulália voltou-se como doida, e respondeu por outro grito.

— Chiquinha! Eu vou já, eu vou já.

Quis dar um passo, mas o arranco de saída do trem fê-la cair sobre o banco. A alucinação da alegria fê-la, porém, insistir no seu propósito, e caminhou até a plataforma. Era já muito tarde; o comboio desfilava e punha entre ela e a irmã o obstáculo invencível do rápido movimento.

— Pare! Pare, pelo amor de Deus! - gritou Eulália com acentuação desesperada.

Uma gargalhada estrepitosa dos passageiros respondeu ao apelo insensato, e Eulália, atingindo ao último grau da alucinação, tentou precipitar-se.

O recebedor de bilhetes deteve-a, porém, segurando-a bruscamente e vibrando uma afronta à sinceridade do sentimento que motivara o temerário procedimento.

— Se está bêbada, vá cozinhar.

E impeliu-a para dentro do vagão.

Eulália foi cair sobre um dos bancos e ai ficou, inerte e perplexa, a encarar com um olhar estúpido o seu brutal salvador.

A violência da decepção que acabava de sofrer arrebatou-lhe os sentidos e, imóvel, muda, conservou-se até que o trem parou na estação terminal.

Aí o modo grosseiro pelo qual foi sacudida pelo recebedor fê-la acordar do espasmo.

— Ia fazendo-a boa; estava com o diabo no corpo em Arronches, bem?

Eulália não respondeu; saiu cambaleando e tomou o leito da estrada na direção de Arronches.

— Não pode andar por aqui - bradou-lhe um vigia; - se quer levar o diabo, é outro falar. Para fora, não seja besta.

Eulália, sentindo-se agarrada pelo braço, voltou e foi sentar-se, lavada em lágrimas e sufocada em soluços, junto à estação.