Os Retirantes/III/I
A cidade da Fortaleza está situada à beira do mar, sobre um extenso cômoro de ondulações tão suaves, que se disfarçam numa vasta planície.
As suas ruas se cruzam com a regularidade das carreiras de uma tábua de xadrez, e de quando em quando vão desembocar em praças espaçosas, elegantemente arborizadas por longas filas de árvores gigantescas.
As casas, edificadas quase todas por um só modelo, térreas, com largas janelas muito rasgadas, portas muito altas, as frentes pintadas por um verniz especial, dão-lhes uma singela monotonia, que torna aprazíveis e bonitas as ruas calçadas sem arte e algumas vezes deformadas por altas soleiras e passeios não nivelados.
Do denso da casaria ergue-se a catedral da província; as duas torres caleadas sobressaem à cobertura da nave, como dois braços perpendicularmente erguidos. Está colocada ao lado de uma praça, onde termina uma rua que por outra extremidade desemboca em uma grande área despovoada nas três faces, em uma das quais, em frente à rua, está o cemitério.
Na face norte de uma das faces desta praça, a oeste da cidade, ergue-se o grande prédio da estação, neste tempo ainda não acabado.
Eulália esperou aí durante longas horas o aparecimento de sua família. Fora vista por Chiquinha, e contava que d. Ana, sabendo da sua chegada à capital, viesse procurá-la.
— Elas virão - pensava ela. - Devem logo ver que eu não sairei da estação sem que elas cheguem. Daqui até lá é boa distância, e é por isso que se demoram.
Para atenuar o tédio da espera, Eulália reparava no que se passava em torno.
Desse lugar, onde cemitério e o abarracamento de crautá, composto de cabanas esparsas, falavam de morte e de miséria, entrevia-se o quadro medonho das conseqüências da seca.
Quando o trem chegara, e depois quando partira, Eulália avaliou por alto a quantidade de retirantes que existia na cidade. Mais de 2 mil pessoas entraram e cercaram a estação e dessas mais de quinhentas disputavam entre si o carreto das cargas do pequeno número de passageiros que havia chegado no trem.
Na maneira por que o faziam, no baixo preço que pediam, via-se claramente que era a extrema penúria que os aconselhava.
Isto ainda mais se evidenciava com a presença de um crescido número de mulheres e de crianças, que sobressaíam na multidão. As crianças estavam quase todas nuas, e as suas faces escaveiradas, as barrigas monstros, as pernas muito finas revelavam que a estada na capital não lhes havia melhorado a sorte. As mulheres estavam em tão completo estado de miséria, que algumas delas mal podiam guardar a compostura e defender o pudor.
Agora, que todos tinham se retirado da estação, novos espetáculos tinham vindo desenrolar-se ante seus olhos.
Na rua que atravessava a praça, a alguma distância da estação, não cessavam de passar indivíduos conduzindo redes na direção do cemitério.
— Muita gente morre por aqui - pensou Eulália. – É medonho isto.
Entretanto o movimento contínuo, tão diverso do que se dava em B. V., quieta, preguiçosa, só se reunindo para as festas, causava-lhe prazer, e como que a sepultava ainda mais na semi-inconsciência em que a deixara a dor da grande decepção que experimentara.
Só à tardinha resolveu-se a ir procurar com quem se entender para que obtivesse casa e fixasse morada até que se entendesse com a sua família ou encontrasse Irena e seu pai.
— Não vieram - dizia entre si, pensando na família por minha causa. Egoísta que eu sou, devia ter ido ter com elas e esperei que fossem elas que viessem. Amanhã, porém, resolveremos.
Caminhou até a rua por onde, ao longe, via, sem intervalo de cinco minutos, passarem redes umas após outras, e aí quase que deu em terra. Um quadro medonho lhe saíra ao encontro.
Amarrados pelos artelhos, pelo ventre e pela nuca, espichavam-se dois cadáveres ao longo de um caibro. Iam, demais disso, completamente nus e estavam cobertos de pastas de imundícia. Os homens que os conduziam, muito andrajosos conversavam indiferentes, fumando.
— Quantas caminhadas nos faltarão ainda?
— Temos dado nove; para dez falta ainda uma.
— É o diabo; é um serviço que eu não gosto de fazer de noite; prefiro limpar canavial com sol quente.
— A verdade é que é um pedacinho daqui à Pimenta e, com o sol, só à força de muita necessidade é que me faz trabalhar.
— Homem, agora ainda é pior para romper estas ruas; os diabos estão com fome canina, e só com um terror de força a gente faz com que eles abram caminho.
Eulália cambaleou ao ver o medonho quadro, e só com grande esforço pôde conservar-se de pé.
A desilusão que experimentava era tão pungente que excedia incomensuravelmente a extensão das suas perdidas esperanças. Julgou que estava sonhando, porque só um sonho poderia fazê-la ver um espetáculo tão vergonhoso no lugar em que o governo da província residia.
"Ai! quanto havemos de sofrer!" - pensou Eulália. -"Só imensos padecimentos na vida explicam tamanho desrespeito à morte."
A grosseria dos dois carregadores de cadáveres não a impediu de perguntar-lhes onde moravam os comissários.
— Por aí; entre por esta rua a fora, vá em frente sempre, mas olhando para a mão direita. Quando vir povaréu em qualquer lugar, abique.
— E como hei de saber qual é o comissário?
— Perguntando; quem tem boca vai a Roma.
Não era prudente dirigir mais uma pergunta, e Eulália, compreendendo-o, afastou-se agradecendo.
À medida que ia se aproximando da face da praça reparava no movimento extraordinário de povo que nela havia. Dir-se-ia que se passava naquela hora um acontecimento extraordinário que agitava a cidade inteira. A rua que desembocava em frente, estava quase cheia de homens que desfilavam a toda carreira, e de mulheres que, carregando no braço uma criança, puxavam outras pela mão.
Quando afinal pôde entrar na rua e ver de perto o enorme concurso, entristeceu-se ainda mais, se é possível, do que ao chegar à estação e ao ver o saimento dos retirantes. Grande parte das mulheres e dos homens recatava-se apenas por meio de um saco de linhagem amarrado à cintura e tinha o resto do corpo completamente nu.
Homens, que pelos seus trajos mostravam que habitavam na cidade, postados na calçada, a fumar e a gargalhar, dirigiam graçolas às mocinhas que passavam, e divertiam-se em levar desatenciosamente a mão aos corpos destas e das mulheres seminuas.
— Olhe, aqui estão dez tostões, uma fortuna; valem mais do que dez rações de carne velha - diziam eles. - Se querem, não façam cerimônia.
E algumas das mulheres os repeliam, porém outras, cedendo prontamente à solicitação, paravam a pequena distância, à espera de que o oferecimento fosse repetido, para que o aceitassem.
Eulália sentia que a sufocavam no meio daquele ambiente, que lhe arrancavam o coração e o espezinhavam.
Que sorte lhe esperava no meio de tanta depravação e de tanta crueldade? E suas irmãs, e sua tia, e Irena? Teriam elas coragem para lutar, para arcar com a miséria e afrontar resignadamente a morte?
A verdade era que a cena excedia a tudo quanto a imaginação podia cogitar de mais degradante; e, o que era pior, a alma dos desgraçados, aclimando-se naquele meio corruptor, afazia-se a ele, e como que não se doía de ver-se contaminar por ele.
A própria Eulália, depois da primeira impressão, vendo repetido o mesmo procedimento em toda rua, começou a tolerá-lo, ainda que ela também fosse alvo dele; e só se impressionou de novo vivamente à esquina da rua da Palma, onde a multidão se adensara de modo a impedir-lhe a passagem.
Realizava-se aí uma das mais tristes e inacreditáveis cenas da seca, a distribuição dos socorros.
O novo presidente, empossado da administração, encontrou a província entregue à improbidade. Entre o retirante e o Estado havia um sorvedouro - as comissões de socorros.
Cresciam de par as despesas, a mortalidade e a penúria, porque indivíduos desnaturados, abusando da boa fé do ex-presidente, aproveitavam-se da miséria do torrão natal para enriquecer.
O retirante desolado murmurava a sua frase irônica:
— A seca tem sido inverno para muita gente.
Tomada de indignação, a autoridade administrativa, que não podia avaliar precisamente as circunstâncias da província, desfechou nos ímprobos um golpe certeiro: a suspensão da remessa dos socorros. Infelizmente o golpe feriu mais fundo do que o honrado administrador desejava: traspassando as comissões, encontrou no fio a massa dos retirantes alevantada até ele por vingança da improbidade. Todas as comissões extintas impeliram para a capital a população adventícia das suas localidades e, dentro em alguns dias, a cidade via-se inundada por mais de 100 mil famintos e maltrapilhos.
Entrou com eles a confusão. Para acomodar essa enorme quantidade de homens, não havia senão um pequeno número de abarracamentos, e estes, já antes do imenso acréscimo de população, estavam completamente cheios.
Todos os vãos aproveitáveis em diversos edifícios foram logo convertidos em hospedarias, mas ainda assim nem a cima parte da aluvião pôde ser alojada. Mais de nove partes ficaram ao relento, tendo por único teto a copa meio desfolhada das árvores das praças.
A distribuição dos socorros, em tais condições, era de uma iniquidade compungente e inevitável. Por maior que fosse o esforço do velho presidente, que, em pessoa, percorria as praças e assistia muitas vezes às distribuições, era impossível impedir que milhares de pessoas ficassem privadas de socorros.
O que era ainda mais para lamentar era que o maior peso da iniqüidade caía sobre os fracos: as famílias das viúvas e os pequenitos a quem a epidemia e a fome deixavam ao desamparo.
Uma distribuição foi a cena que Eulália presenciou ao chegar à esquina da rua da Palma.
O povo apinhado sussurrava como um enxame de varejas sobre um animal putrefato, e a especulação, postada em cada esquina, explorava-lhe a miséria.
Era o mercado da fome.
Os retirantes que haviam recebido as suas rações iam trocar grandes pedaços de carne por um punhado de farinha, ou por uma xícara de arroz. As crianças, esfaimadas e nuas, tentando romper a aglomeração compacta, eram maltratadas e atropeladas; as mulheres, não podendo caminhar, choravam e maldiziam. Do meio desse pandemônio de lágrimas, de maldições, de ais doridos, sobressaíam de quando em quando gargalhadas estentóreas, assovios e gritos perseguindo ladrões.
Mas o que principalmente chamou a atenção de Eulália foi um grupo de indivíduos, que, pelos seus trajos, mostrava não ter sido vítima da calamidade.
Protegidos pelo crepúsculo e pela confusão que reinava entre o povo, esses homens divertiam-se em insultar a desgraça das famílias, oferecendo-lhes pão em troca do sacrifício da honestidade.
Tentando em vão continuar o caminho e lembrando-se da indicação dos homens, que encontrara carregando cadáveres, Eulália parou a olhar estupefata.
Uma mulher passava, levando nos braços uma criança.
— Pode me dizer onde moram os comissários? - perguntou Eulália. - Chego hoje e não conheço ninguém nesta cidade.
— Há 15 dias que aqui estou - respondeu a infeliz - e ainda não pude falar a um deles. É uma desgraça; vou a todos os pontos em que se dão esmola e nunca posso chegar a falar com os homens. Já tenho visto morrer dois filhos e este, veja!
A mulher levantou a cabeça da criancinha pendida sobre o seu ombro. Fazia chorar aquele indescritível semblante. Com os dedos metidos na boca, a mísera já sem forças tinha um olhar estagnado, que parecia a cristalização de uma súplica. Os ossos do rosto, muito salientes, faziam-na parecer uma caveira coberta por uma pele seca..
— Que doença tem ela? - perguntou Eulália, comovida.
— A mesma que matou os irmãos; a doença dos retirantes: fome! - soluçou a desventurada mãe.
Eulália, aturdida pela honrosa declaração, uniu as suas às lágrimas da mulher e levando a mão ao bolso:
— Eu também sou muito pobre, mas não deixarei morrer seu filho à míngua. Como eu, encontrará muitos que a socorram; tenha coragem, peça.
— Tenho pedido, minha senhora. Vê aquelas casas? Estão todas fechadas, e assim ficam sempre que para elas se dirige uma de nós. Deus a conserve, minha senhora, adeus!
As palavras da infeliz chamaram ainda mais a atenção de Eulália para a tremenda realidade que a cercava e se impunha aos seus olhares. Entretanto tamanha desgraça como que atenuava a sua e foi com um sobressalto que ouviu a despedida da mulher.
— A senhora não me conhece - exclamou Eulália -, mas pode avaliar que eu não sou uma perversa. Consente que fique por esta noite na sua casa?
A mulher sorriu tristemente e, meneando a cabeça, disse com uma entoação irônica:
— Na minha casa podem ficar todos: estamos nela agora, rua.
"É medonho, meu Deus, é incrível: o que terá sido feito de Irena, e que destino espera as minhas pobres irmãs?" - pensou Eulália. - Eu endoideço.
— Se quer vir comigo, terá um lugar junto a mim no lugar onde durmo. Terá ao menos uma amiga junto a si. Olhe, é ali.
O dedo da retirante assinalou a catedral, cujo corpo enorme se alevantava em frente, na extremidade da rua.
— Vê aquela igreja? Tem uma praça em frente; e daí vai uma rua para o mar, na qual está o quartel. Foi ali que eu pude arranjar meios para dar alguns dias comida aos meus filhos. Tomei amizade àquele lugar; é infame, mas sou mãe.
— Não; eu ficarei aqui mesmo.
A mulher retirou-se e Eulália acompanhou-a com a vista até que ela perdeu-se no meio da multidão.
— Desgraçada; quanta amargura nas suas palavras. E eu?!...
A interrogação como que lhe arrebatou os sentidos. Afigurou-lhe que o solo balançava, e as casas, inclinando-se e agitando-se com ele, iam bater umas de encontro às outras. A multidão começou a girar com a rapidez de um corrupio e fundir-se num único corpo, descarnado, nu, coroado por centenas de cabeças e ouriçado de milhares de braços.
Chamou em vão pela sua coragem, pelo seu sangue-frio. Não os tinha mais: as pernas fraquearam-lhe, enturvaram-se-lhe os olhos e, cambaleando, foi cair junto a uma das faces da rua.
— Estou perdida - exclamava ela dentro em si -, morro. Uma injúria pungentíssima, veio acabar de turbar-lhe inteiramente a razão e deprimir-lhe as forças. Um dos indivíduos do grupo que tanto impressionara Eulália, veio parar junto dela e, dando-lhe com a ponta da botina no quadril, exclamou:
— Olhem este diabo: está completamente bêbada.